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Governo eletrônico da vida cotidiana por aplicativos de gestão da saúde no Apple Watch

Governo eletrônico da vida cotidiana por aplicativos de gestão da saúde no Apple Watch

Autores:

Cristian Caê Seemann Stassun,
Santiago Pich

ARTIGO ORIGINAL

História, Ciências, Saúde-Manguinhos

versão impressa ISSN 0104-5970versão On-line ISSN 1678-4758

Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.26 no.3 Rio de Janeiro jul./set. 2019 Epub 16-Set-2019

http://dx.doi.org/10.1590/s0104-59702019000300013

Abstract

The objective of this article is to question the ways in which Apple Watch applications require users to manage their body and health. The survey describes the use of “smart watches” within a genealogy of the concept of capturing information, inducing and notifying users of activities that affect their behavior, placing users into achievable rhythms and routines, and creating the perception of better bodily management, all part of accepting the notion of granting control to machines. The results indicate that wearable technologies became “prosthetics” capturing information in real time, acting as a “confession mechanism” for governing and normalizing the body, and are managed by the market as biocapital.

Key words: governing device; health management; Apple Watch

Desde que os smartphones e outros gadgets chegaram ao mercado popular de consumo mundial e foram a eles agregadas funções de outras tecnologias existentes, mudou-se o cenário do uso de tecnologias móveis. Hoje, um telefone é o acoplamento de funções de microcomputador, câmera fotográfica, pagamentos bancários, jogos, editor de texto, comunicador em redes sociais, tocador de músicas, mensageiro instantâneo, bloco de notas e calendário. Mas, além do seu hardware permitir essas inúmeras possibilidades, o gadget virou a base para a criação de milhares de outras funções no formato de aplicativos (apps) multifuncionais que exploram ao máximo o potencial do aparelho.

Uma dessas empresas de smartphones e gadgets, a Apple, segundo estimativa, deve alcançar, no ano de 2020, mais de 5 milhões de apps diferentes (Sensortower, 2016), tendo registrado 180 bilhões de downloads em junho de 2017 em sua App Store (Statista, 2017). Entre esses apps, a Apple lançou, em setembro de 2014, o Health (em português, “saúde”), e, pela primeira vez, um aplicativo de saúde vira nativo de um smartphone, rodando em uma plataforma mobile uniforme para rastrear as métricas de saúde de seus usuários de maneira meticulosa.

O app Saúde ajuda a entender melhor sua saúde e começar a busca pelos seus objetivos ... está dividido em quatro categorias: Atividade, Sono, Atenção Plena e Nutrição. Cada uma delas cumpre um papel importante na sua saúde – e no app ... Antes você precisava ir a um hospital para realizar tarefas e preencher questionários. Agora você pode usar os sensores avançados do iPhone para realizar atividades que geram dados precisos onde você estiver (Apple, 2017, p.1).

Nesse momento, emergem os dois pontos-chave dessa problematização. Um é a criação do aplicativo Saúde pela Apple, e o outro é o desenvolvimento de aparelhos de captação automática de informações íntimas da saúde biológica, prática de atividades e escolhas cotidianas, o Apple Watch. O objetivo da pesquisa foi problematizar se as formas de governo da saúde requeridas pelos usuários do relógio da Apple exercem um governo efetivo sobre eles mesmos como educação das práticas do regime do corpo e de que maneira a empresa agencia essas informações para o usuário, seja comercialmente ou na produção de conceitos de “vida saudável”.

A pergunta seria se o relógio inteligente e o aplicativo de saúde têm condições de fazer parte de um processo de educação em massa para saúde, para um controle maior do corpo, cotidiano e atividades. A intenção foi entender se esse dispositivo de governo sistematiza comportamentos, valores e conduz condutas autoexecutáveis e induzidas pela estética atual, da forma como captura peso, consumo e metas para o corpo.

O fato é que, quando as tecnologias se tornaram objetos vestíveis, junto ao corpo, o ser humano passou a substituir seus objetos pessoais e adornos por ferramentas computadorizadas. Esse fenômeno atualmente atinge as crianças de forma intrínseca, como parte de sua educação material no mundo. Agamben (2007) aponta que, até no mundo animal, as concessões, os desafios aos instintos e as mudanças de perspectivas de uso das coisas mudaram. Um gato de apartamento que brinca com um novelo de lã em vez de um rato é a mesma criança que troca seus brinquedos e amigos da rua por um jogo de console. Os usos não são cancelados, são substituídos, e, junto a um novo aprendizado, uma nova condição humana oferece a constituição de um sujeito com menos relação com as pessoas e mais com as máquinas. Quando alguns comportamentos humanos começaram a ser desativados pela geração de conforto das novas tecnologias, abriu-se o questionamento se essas mesmas tecnologias geraram dependências maiores do que as que se tinha ou criaram necessidade de uso para tecnologias que nunca precisariam ser conhecidas.

Segundo Kahney (2008), no livro A cabeça de Steve Jobs, Jobs havia argumentado que “as pessoas não sabem o que querem até você mostrar a elas. Como disse certa vez Henry Ford: ‘Se eu perguntasse a meus compradores o que eles queriam, teriam respondido que era um cavalo mais rápido’” (p.28). As inovações que uniram as tecnologias da informação, a internet e os dispositivos móveis tiveram um tempo de maturação e, apesar da resistência ao uso por muitas pessoas, no Brasil, em 2016, 92,1% dos domicílios brasileiros acessaram a internet por meio do telefone celular, enquanto 70,1% dos domicílios o fizeram por meio do microcomputador (Agência Brasil, 2016). O uso do telefone celular se consolida como o principal meio para acessar a internet no Brasil. No mês de junho de 2017, a telefonia móvel registrou 242 mil linhas em operação (Anatel, 2017).

Esse questionamento acontece porque, quando estimamos o app Saúde como um agenciador de informações, localizações, práticas de sujeitos, confissões de intimidades, aparece uma denominação importante sobre esse conjunto de propriedades. Consideramos fértil para pensar esse objeto, e por consequência esse conjunto de usabilidades, a expressão “dispositivo de segurança”, cunhada pelo pensador francês Michel Foucault (2008). Pois, para ele, esse dispositivo é um dos tripés da governamentalidade moderna da população orientada pela lógica da normalização da vida. Compreendemos que um sujeito que faz uso dessa ferramenta não apenas cede informações, mas se submete a um uso novo no cenário das tecnologias da informação. Ao permitir que o aplicativo/gadget exerça um comando sobre os sujeitos que aderem a tal tecnologia, uma notificação acerca das condutas cotidianas de alimentação, sono ou atividade, sempre ancoradas em preceitos biomédicos do ideal de “vida saudável”, estamos na presença de um fenômeno inteiramente novo: a criação de um banco de dados em escala global e em tempo real sobre as condições da vida biológica dos usuários da marca.

Um governo que conduz as escolhas do indivíduo por meio de alarmes com marcas de objetivo, com regulagens de consumo exato, com a requisição de registros alimentares, traz também um domínio de visibilidade e vigilância constante sobre as condutas e circulações. As ordens a serem seguidas, mediante notificações, são apenas o sinal sonoro de um mecanismo muito silencioso que pode apreender informações sigilosas e adestrar seus adeptos.

Além disso, o desejo de saber mais a respeito de si, de suas conquistas, comparações de redução de peso, quantidades de quilômetros percorridos, ultrapassa a necessidade de ter informações próprias, para, além disso, projetar nas redes sociais a exposição dessas metas atingidas para um público muito maior. É evidente que esse processo de submissão de dados não tem apenas o foco na saúde, mas todo um alcance estético que o usuário faz de si, baseado em uma marca ou, até mesmo, na autorregulação grupal feita na internet. Trata-se de um espaço onde sujeitos tentam alcançar corpos de padrões estéticos preestabelecidos pela mídia, pela ciência médica (que muda de resultado a cada descoberta) ou pela cultura, que, baseadas no corpo, fizeram, de algumas pessoas, academias ambulantes. Stassun (2014) deu um nome peculiar para essa sociedade emergente, copartícipe desses agenciamentos tecnológicos e comerciais, de desejos estetizados e de buscas de reconhecimento grupal, a chamada “sociedade do espelháculo”.

Agamben (2009) alerta sobre a necessidade de resistir a essas máquinas de controle que se encontram na esfera espetacular da propaganda. Porém, ao mesmo tempo, não se desconsidera um fenômeno comum quando se exploram as questões de governo das condutas, de que as populações podem desejar o governo, ou, nesse caso, desejar o governo do aplicativo de saúde, pois sem ele não conseguiriam estabelecer uma rotina de comportamentos considerados saudáveis a partir dos preceitos atuais da biomedicina. “Não pode haver governo possível sem que aquele que governa não indexe sua ação, sua escolha, sua decisão, a um conjunto de conhecimentos verdadeiros, de princípios racionalmente fundados ou de conhecimentos exatos” (Foucault, 2011, p.222). Porque, justamente, quando se trata da exatidão dos dados de saúde do aplicativo, de exames e coletas que o sujeito indexa ao smartphone (ou outros gadgets), tem-se uma verdade científica que serve de guia de conduta, e, alicerçada a essa verdade, o automatismo do aplicativo gera, além de confiança, um governo espontâneo e o desejo de ser governado.

A verdade é um dos principais artifícios para gerar confiança para conduzir os outros com menos resistência. Essa prática não se restringe ao governo executivo e administrativo do sistema estatal ou da instância suprema de decisões de um político, mas habita e circula por meio de mecanismos para dirigir condutas de homens livres. Esse efeito que a verdade causa é propriamente a renúncia da vontade de controlar o outro. É o momento que, na vida de um ser humano, ele deixa ou escolhe outra pessoa ou outro dispositivo de confiança para exercer o papel de governo sobre sua vida. “Governo baseado na verdade se governa sozinho, sem político, utópico .... ideia que se os homens governarem sob as regras da evidência, não serão mais os homens que governarão, serão as coisas por elas mesmas” (Foucault, 2011, p.243).

Para tanto, como percurso metodológico, foi realizada uma genealogia para discutir os dispositivos de acoplagem como técnicas de vigilância dos regimes do corpo, monitoramento de notificações e controle das condutas, e como eles vêm inserindo a técnica no cotidiano das populações por meio do relógio. Entendendo isso, foi possível avaliar como a empresa Apple procede na coleta de informações para o HealthKit, a exemplo do trecho oferecido para os seus desenvolvedores:

Separando a coleta de dados, processamento de dados, e de socialização. A moderna experiência de saúde e fitness envolve muitas facetas diferentes, tais como a recolha e análise de dados, fornecendo informações acionáveis e visualizações úteis para o usuário, e permite aos usuários participar de uma comunidade social. HealthKit libera cada aplicativo da responsabilidade de implementar todos esses aspectos (Apple, 2016, p.1).1

Posteriormente, foi feita uma genealogia do que se refere à construção das práticas de medições e exames de saúde e como ela se transformou em uma sistematização automática escolhida pelo próprio sujeito usuário na atualidade. Com esse viés, busca-se entender se o instrumento de captura de informações pode se tornar um processo de educação em prevenção de doenças e auxílio na redução de gastos com políticas públicas.

A união de práticas discursivas, de poder e subjetivação constitui o que Foucault (2010) entende como “dispositivo de segurança”, presumido no objeto como orientado à gestão da saúde ou de educação de condutas para uma vida saudável. Ao entender que o método é um caminho a ser percorrido para apreender e problematizar o objeto pesquisado, o “dispositivo”, além de ser o mapa desse percurso, é também o próprio ponto de chegada. O dispositivo é o conceito que agrega as práticas sociais estudadas por Michel Foucault e, a partir de uma flexão do seu modo de pesquisar, cria um vetor que localiza e gera inteligibilidade para os objetos a serem investigados (Stassun, Assmann, 2010).

Não somente, portanto, as prisões, os manicômios, o Panóptico, as escolas, as confissões, as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas etc., cuja conexão com o poder é em certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e – por que não – a linguagem mesma, que é talvez o mais antigo dos dispositivos, em que há milhares e milhares de anos um primata – provavelmente sem dar-se conta das consequências que se seguiriam – teve a inconsciência de se deixar capturar (Agamben, 2005, p.13).

Dreyfus e Rabinow (1995) destacam que a tradução de “dispositif” do francês para o inglês, no caso do termo utilizado por Foucault, foi a palavra “aparelho”, podendo se aproximar da expressão “rede de inteligibilidade”, que reúne poder e saber em uma rede específica de análise, um conjunto de práticas coerentes que organizam a conjuntura social. Foucault (1994) elucida que o dispositivo define o nexo do jogo que pode existir entre elementos como discursos científicos, filosóficos e morais, instituições, leis, arquiteturas, medidas administrativas, superando a dualidade entre formações discursivas (saber) e não discursivas (poder). Deleuze (1990) expõe, nesses termos, que as dimensões de um dispositivo são as “curvas de enunciação e as curvas de visibilidade”, ou “máquinas de fazer falar e de fazer ver”. O dispositivo que possibilita o agenciamento de condutas não é separado de sua condição de sofrer a possibilidade contra condutas, resistências, transgressões e críticas.

Da biopolítica ao biocapital

O homem pós-orgânico que Pelbart (2003) apresenta comporta a próxima camada biopolítica do conceito de vida. A bioinformática invade o corpo e alinha o mindset de condutas e discursos sobre saúde, sociabilidade, imaginário e subjetividade. O corpo como via de entrada de tecnologia, e assalto de sua condição humana, de sua circulação e pulsação, vira um corpo que se sente obsoleto a cada inovação, repleto de necessidade das novas descobertas da técnico-ciência, principalmente das tecnologias vestíveis e de comunicação remota. O corpo como “pacote de informações” é a transformação intimista da metáfora homem-máquina para homem-informação.

É um novo modo de relação entre o capital e a subjetividade, subsidiada pelas informações do corpo. Nunca foi tão horrível pensar na solidão, sobretudo a on-line. Ser desplugado da rede é uma ameaça tão grande de desterritorialização e falta de pertencimento frente aos outros humanos possuidores de seu “eu on-line”, que ameaça “perder” a própria identidade do sujeito, que agora é dupla, a das redes sociais e a da vida mesma (off-line).

O capital é o próprio dispositivo maquínico que quer a formação de rede plugada, desde que vigiada e controlada. O capital, segundo Pelbart (2003), vampiriza a subjetividade, suga as formas de vida, os territórios onde as pessoas vivem, circulam e comercializam. Do conjunto arquitetônico das redes surge um caldo de multidão com sua própria inteligência coletiva, que inventa novos desejos e crenças e rejeita as políticas, mesmo vivendo sob o alento de uma, em uma economia imaterial, mas base do próprio capitalismo. Esse caldo produz uma fonte valiosa de valor ao capital, que vai além do invencionismo de novos produtos e serviços, mas pelas próprias informações que o movimento de pessoas produz sobre si mesmas. A imaginação, criatividade, força-invenção das pessoas já é absorvida pelo capital e se faz render em seu próprio benefício.

As estatísticas que generalizaram as populações a partir do século XVIII foram agregadas a substratos, camadas cada vez mais íntimas.

Centrou-se no corpo espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar; tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma biopolítica da população (Foucault, 1985, p.131).

Depois disso, o jogo de poder sobre a vida tornou-se ainda mais discreto, pois agora ele produz a própria vida, condiciona os comportamentos sem resistência, cria modelagens de novas condutas e faz do agregado indomável da multidão um intelecto geral da heterogeneidade, um caldo biopolítico. Capturar informações passou a ser a predestinação de empresas da internet. O governo que tem apenas informações globais estatísticas da vida da sua população é suplantado facilmente pelo governo das empresas on-line, que têm informações íntimas de cada pessoa. Caso do Facebook, que tem o maior banco de dados pessoais da humanidade: registros de comportamento, discursos e relacionamento. Nesse sentido, a Apple não quer ficar atrás. Enquanto o Facebook investe no maior banco de dados da história humana, da “personalidade do usuário”, recolhida por informações do cotidiano, a Apple se aporta nas informações dos seus gadgets para focar num banco de dados da “saúde do usuário”.

On-line no Facebook, um ambiente em que a lei pouco pode circunscrever, ter leis limitantes de comportamento e privacidade destaca-se como poder que não se reconhece. Quem leu os documentos legais de privacidade dessa rede social estará entre poucos. Muita liberdade para poucas regras conhecidas. As punições podem gerar exclusão do perfil pessoal como medida grave, mas não chega nem perto do que pode ser feito com as informações das pessoas e do que pode ser modelado em forma de comportamento estimulado dentro do próprio sistema. Para que punir um usuário se é possível manipular a conduta dele. Oferecer anúncios direcionados, fazer aparecer na timeline dele somente cenas que estimulem memórias, tristeza ou hobbies. Levar a atenção dos usuários para certas modas de roupa, ou provocar sede de Coca-Cola fazendo aparecer mais postagens de amigos que estão com a bebida em fotos e comentários. Sabendo de uma infinidade de informações íntimas, não precisa mais punir, pode-se produzir comportamentos nos usuários. Isso equivale a gerir a vida mais do que exigir a morte. Não se cobram as leis e regras, monta-se a arquitetura para o sujeito não agir mais em desconforme delas.

Com tudo isso pode-se gerir a vida, para alimentar de informações das pessoas e girar a roda do capital. Essa tomada de poder superou o poder punitivo e fez alcançar uma biopolítica que invade processos biológicos com aval social, travestido por todo estratagema econômico. Esse biopoder se ajusta ao capitalismo, sabendo que este “não pode se garantir senão ao preço de uma inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio do ajuste dos fenômenos de população aos processos econômicos” (Foucault, 2005, p.290). É a conexão do corpo-espécie, do corpo-máquina e do corpo-informação, tendo, então, um controle de ponta a ponta da vida.

Se houve uma primeira tomada de poder sobre o corpo feita sob o modo de individualização, apareceu uma segunda massificante, totalizante. A terceira tomada de poder será integral ao corpo, ao poder e à luta por informações íntimas, aferida pelos sensores que a Apple tem desenvolvido. “A vida e seus mecanismos entram nos cálculos do poder e saber, enquanto estes se tornam agentes de transformação da vida. A espécie torna-se a grande variável nas próprias estratégias políticas” (Pelbart, 2003, p.58). Uma biotécnica de governo. A tecnologia agindo diretamente sobre a vigilância do corpo biológico para depois agir sobre o comportamento humano. O corpo estará preso a um dispositivo muito mais maquínico que o próprio da sexualidade. O discurso da sexualidade durante a história formatou comportamentos e provocou condutas sobre o uso do corpo entre homens e mulheres em uma economia dos corpos e do desejo. Esses dispositivos tecnológicos medem a máquina social por meio de uma máquina virtual alinhada às estratégias mercadológicas.

Essa dimensão biopolítica da sociedade do controle invade a dimensão cognitiva, psíquica, física, biológica e até genética. Segundo Pelbart (2003), o que está em jogo nesse domínio de poder não se restringe tão somente ao controle do território e de suas circulações, mas se trata da própria produção de riqueza a partir da produção e reprodução da vida. O controle se estende à produção de comportamentos, e não mais à restrição dos movimentos (diminuir acessos e senhas) ou contenção deles (prisões, hospitais psiquiátricos). Deixa-se fluir os comportamentos em uma plena sensação de liberdade ao sujeito, mas uma liberdade vigiada, a exemplo de uma vazão líquida onde quem detém o controle da fluidez manobra a pressão, direção, transparência e vazão.

Mas, então, qual a necessidade de o sujeito cotidiano se preocupar com a liberdade vigiada? Primeiro, seria interessante entender por que tantas empresas e oligopólios comerciais se preocupam em saber essas respostas. Não basta controlar a gestão e produção de uma empresa. Pesquisa, desenvolvimento e criação em um mundo focado em alta tecnologia são essenciais. E é nesse ponto que empresas como Apple, Facebook e Google focam suas forças. Predição de comportamentos e a avaliação global dessa previsão de como as pessoas estão escolhendo no seu mundo, suas compras. Adivinhar e definir a escolha de uma pessoa não é mais sonho. Quando se tem um padrão de comportamento que se estende por anos, a probabilidade estatística é a repetição daquele comportamento. As máquinas de captura de informações hoje já processam melhor isso que o próprio sujeito, que não percebe por que age daquela maneira, pois ele não junta todas as informações e conduz grande parte da vida condicionado por um comportamento repetitivo e automático. Empresas que fazem isso não controlam apenas a venda de mais produtos, mas criam a própria previsão de demanda futura, criam os aparelhos a serem vendidos na forma e na quantidade em que vão gerar o desejo ao mercado, de acordo com as informações pessoais retidas em seus bancos de dados. Em suma, governam os corpos e a vida.

Criar a conexão dos produtos com as pessoas. Pelbart (2003) chama isso de capitalismo conexionista, onde o ideal é o capital mais enxuto, rápido e leve ligado ao máximo de informações, navegabilidade, descartabilidade, metamorfoses junto às pessoas. O mundo é uma rede de conexões em potencial em um capitalismo que negociou o desejo das pessoas, a venda dessas informações em troca de lucro. O desejo prostituído a partir de uma provocação da espetacularização da intimidade (Stassun, 2014), de sujeitos cada vez mais narcísicos perante sua autoimagem e necessidade de exposição caótica de sua existência. É na exteriorização que aparece a subjetividade e é assim que o indivíduo parece existir (Sibilia, 2008). No tempo das redes sociais, querer audiência é querer a sensação de existência, nem que ela simplesmente seja notada on-line. Essa chance de aparecer vira um desejo interminável em que o capital se torna um espelháculo (Stassun, 2014), o desejo de ser herói no “espelho” das redes sociais, a “espetacularização” da intimidade e “oráculo” em que o sujeito joga suas mazelas dentro do mundo on-line esperando consolo. Trata-se de um biopoder que “penetra em nosso corpo e em nosso alimento, em todas as esferas de nossa existência, desde os sonhos até o meio ambiente. O capitalismo contemporâneo tomou de assalto a vida numa escala nunca vista ... (incluindo) o inconsciente e a natureza” (Pelbart, 2003, p.209). Nem o sexo, nem a linguagem, nem a fé resistiram aos mecanismos de modulação da existência.

O sujeito sem margem de manobra é submetido ao modelo que essa mesma liberdade supõe como natural, em que a moda não vem do estilo do sujeito, mas do estilo no qual aparece discretamente ao sujeito, fazendo que ele escolha as opções restritas na qual foram criadas para ele escolher. É a captura do modo de vida do sujeito para depois lhe revender um modo de vida. “Uma nova metáfora bioinformática tornou-se dominante e tomou de assalto nosso corpo, reconfigurando nossos ideais de saúde, nossa sociabilidade, nosso imaginário, nossa subjetividade” (Pelbart, 2003, p.239). O digital, que seria somente o acessório de conforto do ser humano, está sendo instrumento de controle da condição humana.

O corpo tão obsoleto e vulgar em sua organicidade de alimentação, excreção, respiração, batimentos cardíacos aparece como suntuosa fonte de informações diante da nova matriz tecnocientífica. O corpo como pacote de informações gera a passagem do homem-máquina para o homem-informação, do orgânico para o informático (Pelbart, 2003). Brasil (2008) alerta que a vida está sendo feita de matéria passível de qualquer tipo de intervenção, impulsionada pela tecnologia, licenciada pela ciência, agraciada pelo discurso evolutivo e escondido por dispositivos de captura de informação cada vez mais sutis. O capital ditando as regras da subjetividade e os modos de vida ligados ao que consumimos, pensamos, moramos, sonhamos, vestimos, comemos, obrigando o próprio capital a nomadizar-se.

Segundo Rose (2013), essas complexas mercadorizações, autonomizações e responsabilizações são inerentes à política contemporânea da vida em democracias liberais avançadas. É nesse cenário que surgem a medicalização da vida, a lógica do corpo inscrita e tutelada pela biomedicina, comercializada por grandes empresas de medicamentos e indústrias de cura, prevenção e estéticas (de produtos de beleza a cirurgias plásticas), a vida objeto do mercado. Segundo Ortega (2005), surge aí um cuidado de si muito além da ascese que visava à bela vida ou à estética da existência. Esse outro cuidado de si almejava o corpo, a longevidade, as formas perfeitas, as próteses de silicone (mama), fórmulas químicas (produtos anti-idade), aparelhos eletrônicos (celulares) ou mecânicos (carros) buscando a idealização de si para satisfação erótica do outro, mesmo que ocorra o sacrifício da mutilação, do sofrimento ou da vergonha para provocar o espetáculo.

Um relógio de tecnologia tão avançada, pequeno e vestível, simbolicamente potencializado pela marca da maçã, a mais valiosa do mundo, além de fetiche estético da marca, ao ponto que pode deixar uma pessoa pobre mais perto do seu ídolo, que usa um desses relógios, faz com que o ser humano provoque em si a bioascese tecnológica, isto é, um processo de subjetivação calcado numa prática de si sobre si, tendo o relógio como confessor, oráculo e orientador de consciência tecnológico. O reservatório biológico de informações pode ser capturado pelos sensores do relógio e recebidos por uma lógica médica. Uma pesquisa feita por Ashley et al. (2017), da Faculdade de Medicina da Universidade de Stanford, aponta que o Apple Watch tem o melhor desempenho em estudo sobre monitoramento cardíaco e queima calórica. O estudo foi feito com sessenta pessoas (31 mulheres e 29 homens) e foram testados sete aparelhos de monitoramento de exercícios/saúde (Apple Watch, Basis Peak, Fitbit Surge, Microsoft Band, Mio Alpha 2, PulseOn e Samsung Gear S2). Todas essas pessoas usaram os sete dispositivos para andar/correr em esteiras e bicicletas. A frequência cardíaca de cada voluntário foi medida com um eletrocardiógrafo de grau médico; já a taxa metabólica foi estimada com um instrumento para medir o oxigênio e dióxido de carbono na respiração – uma boa forma para entender o metabolismo e o gasto energético. Os resultados dos dispositivos utilizados, então, foram comparados com as medições desses dois instrumentos.

Figura 1 : Comparação de precisão de aparelhos de medida de batimentos cardíacos (Ashley et al., 2017

A grande questão é que não é fácil para as fabricantes desses dispositivos criar um algoritmo preciso para uma grande variedade de pessoas, afinal o gasto de energia é variável com base nos níveis de aptidão, altura, peso. Trata-se de uma estimativa que varia de usuário para usuário; já a frequência cardíaca é medida diretamente. Na prática, isso representa que, dos sete aparelhos utilizados, seis deles mediram a frequência cardíaca com taxas de erro abaixo de 5%; já na estimativa de queima de calorias, os dados apresentados pelos dispositivos variaram de 27% a 93%, se comparados aos do medidor profissional/médico, que podem apresentar discrepância de, no máximo, 10%.

Pelbart (2007, p.60) explica que estamos com “o registro de uma vida biologizada, reduzidos ao mero corpo, do corpo excitável ao corpo manipulável, do corpo espetáculo ao corpo auto modulável: é o domínio da vida nua”. Apesar de o corpo não aguentar mais a mutilação biopolítica, a intervenção biotecnológica, a modulação estética, a digitalização bioinformática do corpo, o entorpecimento sensorial e o claro processo de mortificação que lhe transforma num “ciberzumbi” (Pelbart, 3 out. 2008), segundo Rose (2013), a novidade da biopolítica contemporânea mostra que está existindo um crescimento qualitativo em nossas capacidades de manipular nossa vitalidade, nosso desenvolvimento, nosso metabolismo, nossos órgãos e nossos cérebros.

Rose (2013) argumenta que vivemos cinco mutações significativas nos últimos anos, entre elas, as “economias de vitalidade”, onde o biocapital se tornou maleável a novas relações econômicas por meio de uma bioética cada vez mais flexibilizada. O corpo otimizado pelas tecnologias mudou até a norma do envelhecimento sexual corporal, com reposição hormonal ou Viagra, provando que a biotecnologia mudou até o que é o ser biológico. De um lado, a vitalidade foi aberta à exploração econômica e extração do biovalor, em uma nova economia política da vida, e, do outro, o mapeamento do risco criou novas formas de pensar e agir, que envolvem cálculos positivos acerca de possíveis futuros num campo de probabilidades modelado por esperanças.

Esse “novo regime do si-mesmo” ou essas “tecnologias de otimização da vitalidade” não buscam apenas curar uma doença, mas criar processos de intervenção, modificação e escolha, o que faz com que a natureza biológica deixe de ser pensada como destino. São tentativas de “otimizar ou de incrementar quase qualquer capacidade do corpo ou da alma humanos – força, resistência, longevidade, atenção, inteligência – para abri-la ao artifício e incluir seu gerenciamento dentro da remessa da biomedicina para a clínica e para o mercado” (Rose, 2013, p.123).

Aliado a esse diagnóstico, Foucault (2004) assinala que uma característica central do capitalismo capitaneado pelo neoliberalismo é a criação do homo economicus, isto é, da ideia de que é constitutivo de cada indivíduo ser gerente da sua própria vida. Nesse sentido, a responsabilização pela qualidade da vida biológica dos corpos passa a ser uma tarefa, um imperativo dos indivíduos, sendo que o corpo se torna o primeiro e mais premente objeto a ser gerenciado. Nesse sentido, as biotecnologias contemporâneas operam como mercadorias orientadas ao correto gerenciamento do corpo e da vida.

É nesse contexto que um relógio inteligente pode surgir como ameaça à intimidade das informações pessoais de saúde, mas também como um gestor pessoal que cobra que o usuário beba água, controle seu batimento cardíaco e gasto calórico, seja estimulado a fazer exercícios e paradas para respiração regular, cuidando, assim, melhor do corpo e imprimindo um regime educativo que visa à extensão da vida.

Apple watch e app Saúde em funcionamento

Em 2015, um dos pesquisadores experimentou um relógio da Apple, e desde então acompanhamos a evolução do WatchOS (sistema que gerencia os aplicativos e notificações do relógio) e faz testes empíricos de usabilidade de como é utilizar essa tecnologia vestível. O interesse era saber a extensão da captura das informações, o impacto das informações e o sistema de cobrança de atitudes de vida saudável notificadas. Tratava-se, à época, de um relógio de cinco mil reais que precisa ser carregado todos os dias na eletricidade, como um celular, e possui um sistema que acumula informações desse pesquisador. Um exemplo é o histórico de batimentos cardíacos registrado minuto a minuto, como visualizado na Figura 2, registrado por um sensor abaixo do relógio que pode, em pacientes cardíacos, ser usado no controle da doença, inclusive, contando com um botão de emergência mais uma notificação no caso dos batimentos apontarem risco ao usuário. A média mensal ou anual gera um índice para análise médica, podendo servir como diagnóstico.

Figura 2 : Batimentos cardíacos, contagem de passos e registro de atividade/ movimentos/atividade sexual (Apple Watch do autor) 

Na Figura 3, também é possível ver a média de contagem de passos, disponível pelo sistema do app Saúde, sensível em médias diárias de práticas saudáveis. Os dados são possíveis de compartilhar em sites de metas onde outros usuários podem lhe cobrar ou reforçar a repetir comportamentos, com o foco no autocontrole das informações e das metas. O aplicativo Cardiogram oferece uma comparação da média de seus usuários no mundo e compara com o usuário, relatando se está acima ou abaixo da média.

Figura 3 : Comparações do usuário do app Cardiogram com a média mundial dos usuários do aplicativo, usando a lógica de mais ou menos saudável de acordo com o total de usuários (Apple Watch do autor) 

As médias também se formam de qualquer movimento do usuário, desde exercício físico até o ato de ficar em pé, direcionado a quem trabalha sentado à frente de um computador, onde o sujeito permanece por horas na mesma função. O aplicativo recebe informações desde o ciclo sexual feminino até o número de relações sexuais, se foi com preservativo ou sem, até funções inusitadas e registro de formatos e textura de fezes humanas a fim de registro médico.

Outra soma feita é a contagem de respirações. Elas fazem parte de um conjunto de notificações que o usuário da tecnologia recebe a cada momento cadastrado, para sugerir ao sujeito ficar de pé, respirar, fazer exercício, movimentar-se e beber água. São notificações de conduta que formam ações vinculadas a quatro eixos do cotidiano do corpo: alimentação, sono, exercício e respiração (ver Figura 4).

Figura 4 : Novo relógio multifuncional Apple Watch – Gadgets de captura de informações específicas de saúde (Divulgação Apple) 

O relógio oferece um ciclo de reforço de comportamentos assertivos e saudáveis com a conclusão de objetivos, lembretes (notificações) e prêmios referentes a conquistas. O app Saúde é resultado da captura dessas informações do Apple Watch. Projetado para ser um sistema operacional de gestão de itens de saúde, ele agrega várias funções de apps independentes, como aqueles que servem para: contar passos, monitorar as fases do sono, queimar calorias, monitorar exercícios físicos, guardar exames e até alguns que trabalham junto de acessórios para fornecer dados como peso, índice de gordura corporal, frequência cardíaca, pressão arterial, nível de glicose, colesterol. O app Saúde tem um cartão de emergência na primeira tela do gadget com informações importantes; caso o usuário sofra um acidente de automóvel e tenha o celular próximo, o socorrista poderá saber o tipo sanguíneo, alergias e telefones de pessoas de referência do acidentado.

Ciclo de captura de informações do Apple Watch

O princípio estudado foi o do registro das informações do relógio da Apple. O interesse foi entender o ciclo de captura de dados do usuário. Autorização, captura, métricas ou ciência da interpretação dos dados, resultados e notificações para o controle ou indução dos comportamentos e a criação do hábito.

Segundo Debord (1994), quanto mais a vida do homem é transformada em produto, mais ela é separada da vida. O “eu on-line”, construído para existir nas redes sociais, é um desses marcos críticos que se fez presente com o advento dos aplicativos de perfil pessoal na internet. Um “eu” que se mostra melhorado, ganhando uma independência do sujeito real cheio de vícios e vicissitudes, quase como um “outro eu”, tão íntimo e espetacularizado, mas tão maquiado para se encaixar nos seus objetivos, assim como um ventríloquo. Já o outro eu, aquele capturado por instrumentos vestíveis, como o Apple Watch, habita na esfera do corpo, corpo “sugável” que se torna local de expropriação de informações íntimas de nutrição, digestão, micção, defecação, sono e sexualidade concedida para a regulação de um relógio.

O relógio que apreende as informações é o mesmo que promove o cuidado do corpo. Informando, por meio do processamento de dados, informações sobre saúde e exibindo na tela recomendações de saúde que criam hábitos considerados mais saudáveis. Seria esse um novo masoquismo, do usuário que se faz objeto de uso de outrem, só que dessa vez, a tecnologia e a necessidade de inovação/novidade tecnológica transformam o sujeito que “se faz fazer” num sujeito ativo em sua própria passividade? Até importaria que grandes empresas estão usando e processando informações pessoais de bilhões de pessoas e usando-as comercialmente, desde que isso fosse feito claramente. Mas o que acontece é que a necessidade que está sendo criada é a da dependência da informação que chega primeiro, da novidade primeiro em seu pulso e da possível angústia de receber mais chance de salvação.

Segundo Agamben (2017), o próprio caráter da técnica, remetida pela sua instrumentalidade, deve ser revista na sua natureza de desvelamento. Da técnica se fez um objeto diferente daquele que “serve” o homem. Assim como um dispositivo, a técnica tornou-se autônoma em relação a ela mesma, e o homem, que pensou servir-se dela, ficou não apenas subordinado a ela, mas, assim como um masoquista, desejando-a. O sujeito que prefere diminuir seu gasto por comida para comprar um celular da moda não só faz a escolha da moda, ele luta contra a maior arma do capitalismo, a vergonha de ser o único a não o ter. A máquina, mais moderna, faz do sujeito não mais a causa de um ligar de botão, mas também efeito do resultado daquele botão e refém de ligá-lo a cada vez, não mais uma obediência ilimitada da máquina, mas uma transformação resultante daquele instrumento. A máquina, mesmo não sendo um robô, tem uma sequência que repete funções e uma metodologia que sujeita o ser humano em sua trilha de funcionamento. O sujeito que manobra a máquina, na realidade, nada mais faz do que obedecer às possibilidades de comando prescritas pela máquina? Então, quem é o instrumento da técnica e da máquina? O instrumento atual transformou o “vivo”. A referência de uso passou a ser o homem, proporcional ao potencial de tanta tecnologia em máquinas computacionais cada vez menores, próximas ao regime do corpo, vestíveis, capturadores de informações e formadora de práticas de si.

E, finalmente, o corpo foi convidado a se confessar

Segundo Foucault (1993), as sociedades construíram complexas relações entre a individualidade, o discurso, a verdade e a coerção, usando a confissão como base de acesso à verdade de si desde a Grécia Antiga e de acesso da alma no cristianismo. Desde o final do século XVIII, sob a definição de “máquinas de curar”, as instituições médicas, psiquiátricas, psicológicas e pedagógicas transformaram o que era um ritual exclusivo do poder do pastorado em ritual recorrente nas relações de crianças e pais, alunos e pedagogos, doentes e psiquiatras, delinquentes e peritos. A necessidade de acesso à verdade do sujeito abriu espaço para outras técnicas, como interrogatórios, consultas, hipnose, narrativas autobiográficas, cartas, autoavaliações, fazendo com que as máquinas de curar, punir ou dominar agissem sobre o corpo, a mente, os vícios, os pecados e os crimes (Foucault, 1985).

Historicamente, as máquinas de cura ultrapassaram aquela que era a busca de conhecimento, o respeito de si próprio pelo autoexame, o exame de consciência e a confissão, e incluíram no sujeito a necessidade de dispositivos tecnológicos que acumulam informações, processam e geram subsídios para sua vida cotidiana. De forma mais sutil, permitiu-se confessar não somente ao especialista, mas amplamente para todo mundo que pudesse ver. Nas redes sociais, por meio da espetacularização da intimidade, passou a se confessar por fotos, comentários, vídeos, músicas, com os mais diversos objetivos, entre eles gerar sensação de acolhimento, atenção, aceitação e pertencimento de um eu on-line refletido no eu off-line (Stassun, 2014).

O surgimento de um relógio inteligente no mercado, responsável por gerenciar a vida do sujeito, captar informações que depois servem para quantificar comportamentos, notificar faltas e direcionar condutas, trouxe a um aparelho infinitamente menor, personalizado e eficiente que comporta elementos para ser possível penetrar a vida humana e extrair dela um controle ainda não mensurável de informações íntimas de saúde, controle de rotinas e deslocamentos, e principalmente sugestões de comportamentos estipulados por um saber externo, modelado pela empresa Apple. Uma máquina de curar com discurso de “vida saudável” muito provavelmente produzirá uma nova relação do sujeito com aparelhos de gestão da vida cotidiana, do controle do tempo ao controle dos comportamentos. Para Foucault (1985), trata-se da interseção entre uma técnica de confissão e uma discursividade científica, a passagem do sujeito que confessa seus pensamentos para uma ciência que extrai dele dados não apenas verbais.

A confissão automatizada do corpo para sensores do Apple Watch inicia um ciclo ativo de tecnologias de poder. Uma biopolítica que extrai sutilmente da população de usuários informações travestidas de uma discursividade com sentido humanitário de vida saudável e saúde controlada, em que o sujeito é supostamente transformado em um biocapital valoroso. Contudo, o relógio parece situar-se em um entre-lugar, como uma dobradiça, “entre o corpo dos indivíduos (disciplina) e o corpo da população (biopolítica)”, isto é, trata-se de uma tecnologia ao mesmo tempo individualizante e totalizante. Assim, também estamos perante um cenário de disciplinamento dos corpos, que remonta a práticas do século XVIII de monitoramento, normatização de comportamentos e um regime punitivo cotidiano com o fim na modelagem de condutas.

A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma ‘aptidão’, uma ‘capacidade’ que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita (Foucault, 1987, p.119; destaques no original).

Esses arranjos sutis de uma nova “microfísica do poder” vêm criando nos últimos anos dispositivos tecnológicos que obedecem a economias que, em vez de retirar, norteiam e “adestram” sujeitos; em vez de reduzir as forças deles, procuram torná-las maiores e utilizá-las num todo (Foucault, 1987). A punição em forma de cobrança para reforma do sujeito. O exercício é visto de forma comum como destrutivo, negativo, mas, por outro lado, ele cria, transforma e tem a condição de possibilidade de produzir sujeitos, talvez menos autônomos, mas em mais sincronia com o discurso e a prática de vida saudável.

O biocapital e a disciplina dos corpos caminham juntos às tecnologias do eu, pois um dispositivo só consegue mudar comportamentos de um usuário comprometido: “Os pontos em que as tecnologias de dominação dos indivíduos uns sobre os outros recorrem a processos pelos quais o indivíduo age sobre si próprio e, em contrapartida, os pontos em que as técnicas do eu são integradas em estruturas de coerção” (Foucault, 1993, p.207). Foucault (1993) explica que, nesse contexto, se dá a articulação de certas técnicas e de certos tipos de discurso acerca do sujeito, que evoluem para a inserção deles em aparelhos que agem sobre o corpo, a alma, e lhes incitam o desejo de encontrar estados de perfeição, de saúde, de felicidade, de pureza, de ambição e de correção de suas condutas. “Desde que o Ocidente converteu a individualidade em valor, a impaciência de viver se desdobrou na impaciência de contar” (Lima, 1986, p.243).

O simples fato de comprar um relógio da marca Apple faz parte de um mecanismo de desejo – uma economia política do desejo –, e a maçã mordida, símbolo irresistível desse desejo, apresenta um sujeito diariamente reforçado por suas metas batidas no relógio. Sujeito que se revela nu ao receber o seu extrato diário de saúde, como o escore de um vencedor. O corpo fatigado é o que se esforçou, o enrugado é o que envelheceu, o corpo com gastrite é o que se estressou (o ser verdadeiro tornado visível por meio do corpo (Foucault, 2010).

Pela primeira vez, o corpo é chamado para se confessar por escolha do próprio usuário, na forma de uma tecnologia vestível. A impaciente ansiedade de estar atualizado, de consumir, de parecer herói de sua existência trazem uma nova relação entre o corpo e a verdade a partir da liberdade, e não da sujeição, não tem mais suplício, obrigação e humilhação; o corpo que já foi usado como máquina confessora na inquisição é chamado em sua animalidade confidente (Foucault, 1985). A conquista desses atos de verdade, sobre seus desejos, faltas e segredos identifica a mudança de “um tipo de governo dos homens em que não é mais exigido simplesmente obedecer, mas manifestar, enunciando aquilo que se é?” (Foucault, 1997, p.101). Nesse caso, a verdade é extraída do corpo-objeto pela tecnologia a partir do assentimento do sujeito no momento da compra do relógio e do ato de aceitá-lo como uma instância superegoica do seu corpo. É o início de uma confissão automatizada do corpo como estratégia de governar.

É o usuário que escolhe no relógio um aplicativo de alertas de horários para avisar de sua necessidade horária de beber 250ml de água, é o sujeito que escolheu o status da marca, viu benefícios no seu uso e comprou, em um único instrumento, inúmeras formas de se confessar. Um corpo nos dias atuais que não dá mais conta de cuidar de si, por tantos trabalhos, atribuições, tarefas e distrações, escolhe uma máquina para cuidar e notificar do que se esqueceu: hora de acordar, hora de beber água, hora de se levantar da cadeira, hora de respirar, hora de ir para reunião, hora para se exercitar (funcionalidades do Apple Watch). O uso do corpo para arrecadar informações para uma empresa, com aval de uma ciência que diagnostica batimentos cardíacos, controle de dietas alimentares e controle de passos, convida o corpo a fazer parte de um novo modo de vida, uma maneira de ser, o “sujeito da enunciação” torna-se idêntico ao “sujeito das condutas” (Lima, 1986, p.243). O objeto-corpo não só confessa, mas a partir disso muda seu comportamento com dicas que recebe na tecnologia, cria um modus operandi de sua vida, guiado por práticas e discursos de vida saudável, na promessa de longevidade, vitalidade e conforto. Contudo, devemos notar que, nesse registro, a análise dos dados capturados do corpo em tempo real pelo relógio é devolvida ao sujeito para ele conduzir a sua conduta como convém, isto é, de forma normalizada, adequada aos ditames e imperativos do saber biomédico. O corpo sendo governado, confiado ao diretor de consciência de um saber médico que decide por ele, que interfere na sua longevidade e qualidade de saúde (Foucault, 2010).

Dessas práticas de observação, captura, monitoramento, medição e cobrança sistemática emerge um conhecimento minucioso da condição humana na atualidade. O sujeito, subsumido à condição de um mero corpo biológico e maquínico, coloca-se a partir da constatação do órgão confessor (cada vez mais sutil): “alguém tem que cuidar do nosso corpo”. Um braço que entrega as verdades do corpo, com o mínimo esforço, pois para todos, na atualidade, faltaria tempo para todo esse controle e para tantos exames – “quanto menos se envolver com isso, melhor, com menos esforço possível”. Usa-se o relógio como uma prótese automatizada, e o sujeito, espectador perante o discurso de ciência da vida saudável, coloca a si mesmo no meio da multidão de metadados codificados.

Está aí o sujeito absorto ao exercício do poder e do controle de forma isolada, em certo sentido, sem conseguir mapear o impacto sobre o futuro uso desse biocapital. Extrai-se a verdade do corpo, dispensando a palavra do sujeito, o relógio “vai falar direto com o corpo”, e devolve ao sujeito a verdade que ele mesmo gerou, envolvida em um caldo de novas modelagens de comportamento, direcionamentos de atitudes e de um discurso de vida saudável construído dentro da atual maior empresa do planeta, que não vai parar de fomentar seu mercado e seus ativos confessores.

REFERÊNCIAS

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