versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.109 no.1 São Paulo jul. 2017
https://doi.org/10.5935/abc.20170075
Descrevemos o caso de um jogador de tênis de 17 anos de idade, com cor da pele branca, treinando em média de 20 a 24 horas por semana, encaminhado para avaliação em uma clínica de cardiologia esportiva devido a sintomas de tontura durante a prática de exercício físico extenuante, aliviados logo após o decúbito. O atleta negou outras queixas concomitantes, particularmente, dor torácica, palpitações, síncope ou queda no desempenho físico. Embora esta seja a ocorrência mais sintomática, ele revelou outros episódios anteriores com apresentação semelhante, porém menos intensa e ocorrida em ambientes com temperatura elevada. Com histórico pessoal/familiar comum, todas as avaliações prévias à competição apresentaram resultados normais; sem restrições, portanto, à participação em competição esportiva. O exame físico não apresentou achados significativos: avaliação cardíaca normal, com frequência cardíaca e pressão arterial em repouso a 52 bpm 121/64mmHg, respectivamente.
O eletrocardiograma de 12 derivações e o ecocardiograma transtorácico não identificaram achados patológicos, somente adaptação fisiológica cardíaca ao exercício físico (Figura 1). Em momento subsequente, o atleta foi submetido a um ecocardiograma de estresse com esforço físico em esteira, revelando uma excelente capacidade funcional (19’09’’ do protocolo de Bruce, 19,3 METs), mas com reprodução dos sintomas (tonteira) no pico do exercício, redução simultânea na pressão arterial sistólica (185➔90mmHg) e detecção de gradiente intraventricular (GIV) - pelo menos 69mmHg (Figura 2). No primeiro minuto da recuperação, os sintomas desapareceram e a pressão arterial normalizou.
Figura 1 Ecocardiograma transtorácico em repouso sem evidências de anormalidades morfofuncionais significativas - dimensões do ventrículo esquerdo (VE) pelo Modo M (A), volumes e fração de ejeção do VE (B), Doppler tissular no anel mitral (C) e strain longitudinal global (D).
Figura 2 Ecocardiograma de estresse com esforço físico realizado em esteira com o protocolo de Bruce, revelando redução significativa na pressão arterial sistólica (185 ➔ 90mmHg) no pico do exercício, com detecção concomitante de GIV (figura inferior).
O atleta foi orientado a suspender a prática esportiva. Em seguida, foram realizadas a monitorização ambulatorial com Holter de 24h e ressonância magnética cardíaca, sem apresentar alterações patológicas, especialmente arritmias ou anormalidades cardíacas estruturais.
Após essas investigações, o caso foi discutido com o envolvimento do atleta, dos pais e do treinador. Decidiu-se pela retomada da atividade física com aumento gradual na intensidade e no volume do treinamento, com especial orientação para aumentar a hidratação (aparentemente abaixo do ideal, de acordo com o relato do treinador) e iniciar a terapia com beta-bloqueador caso persistam os sintomas. Após 18 meses de acompanhamento, o atleta continua assintomático, com desempenho excelente e sem a necessidade de terapia farmacológica.
O desenvolvimento de GIV significativo durante o esforço (>30mmHg em repouso ou >50mmHg com exercício físico) ocorre raramente, podendo ocasionar sintomas distintos e inespecíficos, como tontura, dor torácica ou, ainda, alterações da repolarização ventricular e arritmias durante o teste de esforço.1,2 Esta condição surge habitualmente associada a hipertrofia ventricular esquerda segmentar ou global ou a uma implantação anormal dos músculos papilares, porém os mecanismos patofisiológicos não estão bem estabelecidos. São propostos três mecanismos potenciais para o desenvolvimento do GIV:
Em um estudo de Zywca et al.5, os indicadores independentes da obstrução dinâmica da via de saída do ventrículo esquerdo em indivíduos sem cardiomiopatia hipertrófica foram: movimento anterior sistólico cordal, ventrículo esquerdo menor no final da sístole, aumento da pressão arterial sistólica no pico, indivíduos jovens e aumento da espessura da parede septal.5 Contudo, no caso relatado, o GIV pode ocorrer sem alteração cardíaca estrutural, especialmente do aparelho valvar mitral, e, por fim, pode ser justificado por deformação extrema do miocárdio em resposta a condições de esforço.3 Neste contexto, o GIV é descrito com mais frequência em atletas ou em situações de aumento nos estímulos inotrópicos, tal como durante o ecocardiograma de estresse com dobutamina.6,7 O ecocardiograma de estresse com esforço físico tem função importante na avaliação de atletas sintomáticos, com a reprodução dos sintomas e detecção potencial de GIVs significativos.1,8
A significância clínica do GIV permanece desconhecida, podendo ser uma adaptação fisiológica extrema ao esforço, uma entidade patológica isolada ou, por outro lado, corresponder a um achado pré-fenotípico de cardiomiopatia.
Considerando-se as medidas preventivas/terapêuticas a serem adotadas na presença de um atleta com GIV, é crucial manter uma hidratação adequada durante o esforço, em muitos casos, suficiente para a remissão dos sintomas. A prática de exercício físico em temperatura elevada sem a hidratação adequada pode aumentar o gradiente secundário à obliteração da cavidade ventricular esquerda. Na terapia farmacológica, as evidências indicam uma eficácia significativa da terapia com beta-bloqueador, tanto na remissão dos sintomas quanto na remissão/desaparecimento do GIV.1,9
A escassez nos dados publicados e a curta duração do acompanhamento de atletas com GIV não permite definir conclusões acerca do impacto prognóstico, mas não há eventos clínicos fatais descritos nesses indivíduos com GIV e sem alteração cardíaca estrutural. Neste contexto, não há recomendações específicas no que concerne à prática de esporte competitivo em atletas com GIV.10,11 Em geral, se um atleta ainda está sintomático apesar das medidas preventivas/terapêuticas salientadas, não é aconselhada a manutenção da prática esportiva, sobretudo com a intensidade do esforço que precipita os sintomas, o que deve ser avaliado regularmente durante o acompanhamento.
Em suma, na presença de um atleta com sintomas induzidos pelo esforço, deve-se levar o GIV em consideração. Na reprodução dos sintomas, é fundamental a exclusão de patologias potenciais associadas a um risco aumentado de morte súbita cardíaca, quando o ecocardiograma de estresse com esforço físico tem função essencial. O GIV continua sem esclarecimento suficiente e com algumas perguntas não respondidas:
- Qual é a etiologia/fisiopatologia do GIV (fisiológico em relação ao patológico)?
- Qual é o impacto clínico do GIV em longo prazo?
- Quais devem ser as recomendações quanto à adequação de atletas com GIV ao esporte competitivo?
- Qual deve ser o controle/acompanhamento de atletas com GIV?