versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.112 no.2 São Paulo fev. 2019
https://doi.org/10.5935/abc.20180267
Relatamos a evolução de 10 anos de uma paciente assintomática, com grande fístula bilateral da artéria coronária-artéria pulmonar em que foi optado por tratamento clínico. Publicado anteriormente,1 o relato reforça a necessidade de individualização do tratamento em pacientes portadores de fístulas coronárias moderadas.
Paciente do sexo feminino, 59 anos, com diagnóstico de grande fístula bilateral coronário-pulmonar em 2007, assintomática, sendo investigada após achado de sopro cardíaco em exame de rotina. Na ocasião, foi optado por tratamento conservador. À ausculta cardíaca apresentava sopro sistodiastólico mais audível em borda esternal esquerda alta, com componente mais audível na sístole. Não havia outros achados no exame físico cardiológico ou mesmo no exame segmentar geral.
A paciente não apresentava comorbidades na ocasião, exceto história de tabagismo prévio (10 anos-maço). Na evolução, em acompanhamento ambulatorial anual, apresentou diagnósticos de dislipidemia, intolerância à glicose e depressão. Na última consulta, em 2017, a paciente se mostrava assintomática. Fazia uso de atenolol 25 mg/dia, metformina 850 mg/dia, atorvastatina 20 mg/dia e sertralina 50 mg/dia.
Os exames realizados após 10 anos de seguimento foram comparados com os do momento do diagnóstico. O ecocardiograma atual revelou coronária direita (CD) com 4 mm de diâmetro na origem e 7 mm no terço médio; o tronco da coronária esquerda (TCE) com 8 mm. Notou-se trajeto fistuloso com fluxo tortuoso comunicando ambas as coronárias com o tronco pulmonar, e sem a presença de hiperfluxo pulmonar. Além disso, observou-se a evolução da insuficiência mitral, agora, de grau importante. A Tabela 1 demonstra os parâmetros ecocardiográficos durante o acompanhamento.
2007 | 2013 | 2016 | 2017 | |
---|---|---|---|---|
Átrio Esquerdo (mm) | 30 | 37 | 40 | 38 |
Septo Interventricular (mm) | 7 | 9 | 9 | 8 |
Parede Posterior do VE (mm) | 7 | 8 | 8 | 8 |
Diâmetro Diastólico do VE (mm) | 54 | 56 | 58 | 57 |
Diâmetro Sistólico do VE (mm) | 37 | 38 | 39 | 41 |
FEVE (%) | 59 | 60 | 60 | 59 |
Seio Aórtico (mm) | 31 | 32 | 33 | 32 |
Função Sistólica do VD | Normal | Normal | Normal | Normal |
Achados Adicionais | IM de grau discreto | IM de grau discreto.ITr de grau discreto. IAo de grau mínimo. | Deslocamento sistólico mínimo da cúspide posterior em direção ao átrio esquerdo.IM de grau moderado ITr de grau discreto.IP de grau discreto. | Prolapso da cúspide posterior em direção ao átrio esquerdo.IM de grau importante(jato excêntrico direcionado ao septo interatrial).RelaçãoQp/Qs de 0,8. |
VE: ventrículo esquerdo; FEVE: fração de ejeção do ventrículo esquerdo; VD: ventrículo direito; IM: insuficiência mitral; ITr: insuficiência tricúspide; IAo: insuficiência aórtica; IP: insuficiência pulmonar; Qp/Qs: relação de fluxos da artéria pulmonar e aorta.
A cintilografia miocárdica com dipiridamol e 99mTecnécio sestamibi não mostrou alterações de perfusão, assim como exames prévios realizados em 2007 e 2011. O teste ergoespirométrico em esteira rolante (Balke modificado 3,4 mph), com duração de 7 minutos e 38 segundos, foi máximo (109% da FC máxima), com VO2 pico atingido de 22,4 mL/kg/min (87% VO2 predito).
A angiotomografia das artérias coronárias foi realizada em 2017 e a comparação com o exame de 2007 pode ser visualizada na Figura 1. Persiste o achado de fístula sistemicopulmonar, da CD+ DA com o tronco da artéria pulmonar, descrito como presença de ramo calibroso emergindo da origem da coronária direita, de trajeto tortuoso, contornando anteriormente o tronco pulmonar e comunicando com o terço proximal da descendente anterior. Apresenta ponto de comunicação com o tronco pulmonar, associado a dois aneurismas no seu trajeto, medindo 19 x 16 mm e 14 x 13 mm. Não há dilatação pulmonar ou outros sinais sugerindo repercussão hemodinâmica. Escore total de cálcio coronariano de 246 (Agatston), percentil 99 para a faixa etária e sexo, e ausência de redução luminal coronariana significativa.
As fístulas coronárias (FC), comunicações anormais entre uma ou mais artérias coronárias com alguma estrutura cardíaca ou torácica, geralmente congênitas,2 apresentam prevalência de 0,05% a 0,88%, dependendo do método de diagnóstico utilizado.3 Originam-se de um ou mais ramos das artérias coronárias, e o tronco pulmonar é a terminação mais frequente das FC bilaterais.2,4
Podem se associar a regurgitação mitral/doença da valva mitral - achado presente neste caso - defeitos de septo atrial e/ou septo ventricular, estenose e atresia pulmonares.5 Na população adulta, 75% são sintomáticos, sendo dor torácica e dispneia as queixas mais frequentes. Sopro cardíaco é observado em 37% dos pacientes ao exame clínico.5
A evolução parece ser bastante variável, e depende do tamanho e repercussão hemodinâmica da FC, além de malformações associadas. Seguimentos de longo prazo2,4 demonstram que os pacientes podem evoluir desde assintomáticos até a apresentação de sintomas de insuficiência cardíaca por queda da fração de ejeção, aumento do átrio esquerdo e hipertensão pulmonar, e poucos, com aneurisma coronário, que está associado principalmente às fístulas unilaterais. Os aneurismas coronários podem favorecer a rotura coronária, além de poderem gerar isquemia pelo mecanismo de roubo de fluxo.5,6
O tratamento ideal das FC ainda permanece incerto, especialmente quanto às moderadas e assintomáticas. O tratamento conservador deve ser considerado em fístulas pequenas e assintomáticas. O fechamento espontâneo da fístula é raro e ocorre em apenas 1-2% dos casos.
O tratamento intervencionista para fechamento da FC, seja cirúrgico ou percutâneo, deve ser considerado em grandes FC e de localização mais proximal, presença de sintomas, presença de outra doença cardiovascular/má formação cardíaca associada e repercussão hemodinâmica (fístulas com alto fluxo).5,8 Entretanto, são procedimentos não isentos de complicações.
O tratamento cirúrgico pode apresentar alta taxa de infarto do miocárdico periprocedimento e ocorrência de refluxo tricúspide residual.9 O tratamento percutâneo, com utilização de dispositivos (coils, utilizados em fístulas pequenas, e amplatzers, utilizados em FC maiores)8,10 também pode ser complicado por dilatação aneurismática e trombose levando a embolização e isquemia miocárdica, bem como migração do dispositivo (principalmente coils em fístulas largas e com alto fluxo). Situações em que a oclusão é incompleta favorecem endocardite infecciosa e hemólise.5,8
No caso em questão, descrito inicialmente há 10 anos, de FC moderada assintomática e sem repercussões clínicas ou hemodinâmicas, em que foi optado por seguimento clínico, obervamos uma evolução bastante favorável, permanecendo a paciente sem sintomas e com boa capacidade aeróbica cardiovascular no período, na ausência de isquemia miocárdica e hiperfluxo pulmonar, mantendo função ventricular preservada, e apresentando discreto aumento no diâmetro da CD (6 para 7 mm) e do TCE (7 para 8 mm), além de pequena dilatação de câmaras esquerdas, esta justificada pelo prolapso de valva mitral que evoluiu com insuficiência importante, associação encontrada em alguns casos.
Conforme previamente discutido,1 reforçamos que o tratamento conservador é seguro e deve ser realizado para pacientes assintomáticos e/ou aqueles sem complicações, como neste relato de caso. Em pacientes sintomáticos ou com complicações, entretanto, as intervenções percutâneas ou cirúrgicas estão indicadas.
Este relato demonstra, mais uma vez, a necessidade de individualização de condutas frente ao diagnóstico de fístula de artéria coronária assintomática.