versão impressa ISSN 1808-8694versão On-line ISSN 1808-8686
Braz. j. otorhinolaryngol. vol.81 no.4 São Paulo jul./ago. 2015
http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2015.05.002
Nas últimas duas décadas, evidências e revisões sistemáticas têm se constituído nos pilares da estruturação dos guidelines. Medicina baseada em evidências foi definida por Sacket et al. como "o uso consciencioso, explícito e criterioso das melhores evidências atuais na tomada de decisões pertinentes ao tratamento de cada um de nossos pacientes".1 A prática da medicina baseada em evidências significa a integração da experiência clínica individual com as melhores evidências clínicas externas disponíveis por pesquisas sistemáticas. A abordagem GRADE (http://www.gradeworkinggroup.org) aponta para a importância de uma estimativa do efeito da intervenção e da confiança de que a estimativa seja correta; seus autores foram os primeiros a enfatizar o equilíbrio entre efeitos desejáveis e indesejáveis. Mais de 20 organizações, inclusive a Organização Mundial da Saúde (OMS), BMJ, e Cochrane Collaboration, adotaram o sistema GRADE. Na última década, o instrumento Appraisal of Guidelines for Research & Evaluation (AGREE) (http://www.agreetrust.org) foi desenvolvido com o objetivo de abordar sistematicamente a qualidade dos guidelines para a prática clínica.
Vários guidelines baseados em evidências tem sido elaborados, tanto a nível nacional como internacional, para aplicação na área da otorrinolaringologia.2 - 4 No entanto, ainda estamos muito longe da prática baseada em evidências em nosso cotidiano.5 , 6 Embora tenha sido demonstrado que a aderência aos guidelines melhora significativamente a qualidade de vida de nossos pacientes, também existe um vasto corpo de provas indicando que, com frequência, a aderência aos guidelines é desapontadora.7 Nesse editorial, tentamos avaliar as possíveis razões pelas quais não utilizamos os guidelines como deveríamos.
Um dos maiores problemas é que ainda não somos capazes de desenvolver guidelines a nível mundial, e podem ocorrer diferenças significativas nos guidelines sobre os mesmos tópicos, dependendo do país em que foi desenvolvido. Aarts et al. demonstraram que guidelines relativos a um tópico similar podem exibir diferenças no que tange a conclusões, níveis de evidência e citações utilizadas.8 Isso diminui a credibilidade dos guidelines. Embora estejamos cientes das diferenças nos sistemas de atendimento de saúde, seria importante que tivéssemos guidelines que fossem metodologicamente impecáveis e reconhecidos em todo o mundo; e que considerassem as possíveis diferenças regionais. Então, por hora o leitor, ao utilizar guidelines, precisa antes se certificar da sua qualidade. Nesse tocante, o instrumento AGREE constitui uma fonte de ajuda satisfatória.
Ademais, o leitor precisa ter em mente que, com frequência, as evidências nas quais os guidelines se baseiam não são esmagadoras, e que, em algumas situações, é muito difícil, ou mesmo impossível, obter um alto nível de evidência. Acredita-se que o número de estudos cirúrgicos randomizados permanecerá muito limitado. Quando há escassez e/ou limitada qualidade das evidências, frequentemente os autores dos guidelines tentam recomendar com base nas limitadas evidências disponíveis; mas em muitos casos as limitações de seus fundamentos não são levadas em conta na apresentação de elaborados esquemas diagnósticos ou terapêuticos. Com frequência, a situação oposta também é verdadeira - os guidelines fornecem respostas a uma longa lista de perguntas, sem, entretanto, orientação e assimilação; isso dificulta muito sua leitura e entendimento, comprometendo destarte seu emprego na prática cotidiana. Finalmente, quando tratamos nossos pacientes, é importante ter em mente que as evidências disponíveis podem ter sido acumuladas com base em um grupo populacional diferente daquele ao qual o nosso paciente pertence; frequentemente os estudos excluem pacientes com certas características, por exemplo, fumantes, crianças e pacientes com mais de 65 anos, ou mulheres grávidas.
Por ultimo, devemos ter em mente que a medicina é um campo em constante evolução. Os guidelines que seguimos atualmente são periodicamente atualizados à luz de novas evidências; assim, temos que nos certificar que estamos empregando as mais recentes recomendações e condutas em nossa prática diária.
Se o leitor interpretar esse editorial como um argumento contra o uso dos guidelines estará muito equivocado. Os guidelines constituem grande ajuda em nossa prática diária, proporcionando sustentação para todo profissional que não queira ou não tenha possibilidade de revisar toda a literatura disponível. Na maioria dos países, uma conduta deliberadamente diferente ou divergente das recomendações dos guidelines deve ser registrada no prontuário do paciente - e justificada por uma boa razão. Mas temos que evitar o uso dos guidelines para nossos pacientes como se fossem livros de receitas culinárias; tendo sempre bem presentes as ponderadas palavras de Sacket: A medicina baseada em evidências consiste no uso consciencioso, explícito e criterioso das melhores evidências atuais na tomada de decisões pertinentes ao tratamento de cada um dos nossos pacientes na sua individualidade.