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Habilidade auditiva em criança desnutrida

Habilidade auditiva em criança desnutrida

Autores:

Patrícia Andréia Caldas,
Célia Maria Giacheti,
Simone Aparecida Capellini

ARTIGO ORIGINAL

Audiology - Communication Research

versão On-line ISSN 2317-6431

Audiol., Commun. Res. vol.19 no.3 São Paulo jul./set. 2014

http://dx.doi.org/10.1590/S2317-643120140003000011

INTRODUÇÃO

A desnutrição é uma condição patológica, causada por ingestão deficiente ou inadequada de calorias e/ou proteínas, apresentando-se como um problema de grande dimensão em vários países. Tem relação direta com a pobreza, por ser reflexo das desigualdades socioeconômicas e políticas, inadequada distribuição de rendas, dificuldade de acesso a recursos educacionais, sendo, portanto, um dos maiores fatores da mortalidade infantil em países em desenvolvimento(1,2).

O risco de desnutrição está associado à saúde mental materna, estrutura familiar instável, educação pobre, desemprego e condições de moradia inadequadas. Os estudos revelam ainda grande dificuldade em separar as causas econômicas, sociais e culturais da desnutrição(3).

Muitas evidências têm sido levantadas, no sentido de demonstrar que carências nutricionais, durante o período fetal e nos primeiros anos de vida, podem ocasionar efeitos deletérios sobre a maturação bioquímica e morfológica do organismo(4). As alterações mais graves são as que se referem ao Sistema Nervoso Central (SNC), porque na maioria das vezes, são irreversíveis(4). Quanto mais precocemente instalada a Desnutrição Energético-Proteica (DEP), mais intensos e permanentes são seus efeitos(3). Crianças desnutridas são menos responsivas, menos curiosas e participam de menos comportamentos exploratórios que os lactentes bem nutridos(3). As deficiências específicas de nutrientes podem resultar em diminuição da capacidade de prestar atenção e da capacidade de resolver problemas(3). Existe associação entre a insuficiência alimentar da criança e seu crescimento, desenvolvimento e função comportamental ou acadêmica(3,5-7). Dependendo da duração e intensidade da deficiência nutricional, funções neurais como cognição, consciência, emoção, aprendizado, memória, motivação e ansiedade podem ser afetadas(8,9).

A desnutrição aumenta o risco de diversas doenças devido a deficiências no sistema imunológico do indivíduo que, em consequência dessas doenças, pode ter o seu desenvolvimento físico e intelectual comprometido(5,10).

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que mais de 20 milhões de crianças nascem com baixo peso, a cada ano. Cerca de 150 milhões de crianças menores de 5 anos têm baixo peso para a sua idade e 182 milhões (32,5%) têm baixa estatura.

Nas últimas décadas, o índice de desnutrição no Brasil diminuiu, mas, como nos demais países em desenvolvimento, ainda é uma causa significativa de mortalidade infantil(4).

O Estado do Maranhão, em especial, apresenta o quadro mais grave de desnutrição infantil no país, com déficits moderados ou severos de 30,6%, seguindo-se por Piauí, Ceará e Paraíba, com 22,9%, 21,1% e 19,7%, respectivamente(9,10). De acordo com a estatística do Ministério da Saúde, 66 municípios do Maranhão estão na lista do alto índice de desnutrição infantil e o Estado tem o maior número de ocorrências de baixo peso em crianças de até 5 anos(11,12).

A desnutrição grave interfere negativamente no desenvolvimento de funções como inteligência, memória, leitura e testes matemáticos, habilidades verbais, capacidade de resolução de problemas e desenvolvimento motor. Crianças com desnutrição crônica apresentam escores baixos nos testes de vocabulário (expressivo), o que reflete dificuldade em organizar o pensamento(5).

Considerando que a desnutrição provoca efeitos nocivos ao SNC e que o processamento auditivo envolve complexas conexões nervosas, reflete-se sobre o modo como as informações auditivas são processadas por crianças desnutridas.

O Sistema Nervoso Auditivo Central (SNAC) é um sistema complexo de vias neurais, que pode ser afetado por diversos fatores desenvolvimentais e patológicos, ocasionando o Distúrbio do Processamento Auditivo(13), considerado um déficit no processamento da informação de sinais auditivos, sem alterações auditivas na audição periférica, nem déficit intelectual. É uma limitação da transmissão, análise, organização, transformação, elaboração e memória de informações específicas da modalidade auditiva(14-16).

Observou-se escassez de estudos sobre avaliação do sistema nervoso auditivo central relacionado à desnutrição, o que também foi relatado por outros autores(17,18), que realizaram estudos avaliando a via auditiva central de crianças desnutridas. Um dos estudos(18) caracterizou os potenciais evocados auditivos de longa latência (PEALL) em crianças desnutridas, tendo sido observado aumento de latência no grupo com desnutrição. As latências dos componentes P1, N1 e P300 foram maiores no grupo de desnutridos do que no grupo eutrófico, o que sugere redução na velocidade do processamento da informação acústica, em nível cortical.

Um estudo internacional(19) realizou levantamento de avaliações do SNC de crianças desnutridas. Os exames citados foram: neuroimagem, eletrofisiológico, neuroradiologia, eletroencefalograma e potenciais evocados auditivos. Nos estudos histológicos e de imagem no cérebro em desenvolvimento, em humanos e animais, tanto macro como microestruturas estavam alteradas no cérebro de desnutridos. A neuroradiologia comprovou atrofia cerebral e dilatação ventricular com proeminência da fissura de Sylvian e cavidade basal em crianças com kwashiokor. Quanto aos achados encontrados no eletroencefalograma das crianças desnutridas, a frequência dominante era muito mais baixa, quando comparada às crianças eutróficas. No potencial evocado auditivo, observou-se aumento na latência das ondas, o que sugere deficiência no processo de mielinização, com decréscimo da eficiência das sinapses do sistema auditivo.

Diante do exposto e da escassez de estudos nacionais e internacionais que relacionem a desnutrição e as habilidades auditivas, este estudo teve o objetivo de caracterizar o desempenho nas habilidades do processamento auditivo em crianças com desnutrição e comparar com crianças eutróficas.

MÉTODOS

Este estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual Paulista (UNESP) de Marília (SP), sob o protocolo nº 0551/2012. Os responsáveis pelos participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), em que estavam descritos todos os procedimentos realizados.

A amostra foi composta por 30 crianças, na faixa etária de 5 a 10 anos, de ambos os gêneros, sendo 15 crianças com diagnóstico de desnutrição, que compuseram o grupo amostral (G1) e 15 crianças com estado nutricional adequado (eutrofia), como grupo controle (G2). Ambos os diagnósticos foram realizados por nutricionista.

Ressalta-se que, neste estudo, não foi utilizada a classificação do estado nutricional em graus (leve, moderado e grave), pois o protocolo utilizado na instituição onde foram coletados os dados não dispunha dessa classificação. Sendo assim, os grupos foram pareados segundo gênero, faixa etária e escolaridade (Tabela 1).

Tabela 1 Distribuição dos sujeitos por idade e gênero dos grupos 

G1
G2
Faixa etária Gênero
Faixa etária Gênero
Masculino Feminino Masculino Feminino
5 anos 1 1 5 anos 1 1
6 anos 1 1 6 anos 1 1
7 anos 2 1 7 anos 2 1
8 anos 1 1 8 anos 1 1
9 anos 1 - 9 anos 1 -
10 anos 4 1 10 anos 4 1

  Total: 15   Total: 15

Legenda: G1 = grupo amostral; G2 = grupo controle

Foram excluídas da amostra crianças com diagnóstico prévio de perda auditiva, patologias neurológias, comportamentais ou síndromes genéticas. Tal critério foi utilizado para os dois grupos. As crianças que, durante a avaliação auditiva periférica, apresentaram alterações, também foram excluídas da amostra, como demonstrado na Figura 1.

Figura 1 Representação do processo de seleção do Grupo Amostral 

O G2 foi pareado ao G1 conforme faixa etária, gênero e escolaridade e, assim, submetido à avaliação auditiva periférica e central, conforme Figura 2.

Figura 2 Representação do processo de seleção do Grupo Controle 

Avaliação nutricional

As crianças com desnutrição eram procedentes do setor de Nutrição de uma instituição pública. Já as crianças do G2, foram selecionadas em uma escola e, posteriormente, encaminhadas para avaliação nutricional, com o intuito de verificar a possibilidade de pertencerem a esse grupo.

Para a avaliação do estado nutricional das crianças, foram utilizadas as curvas de Peso para a Idade (P/I), Estatura para a Idade (E/I) e Índice de Massa Corporal por Idade (IMC/I) com o critério escore-z, considerando-se a World Health Organization (WHO) - Multicenter Growth Reference Study (2007). As classificações antropométricas foram aquelas propostas pela OMS. A avaliação para caracterização do estado nutricional foi realizada por nutricionista do Serviço, em uma sessão de, aproximadamente, uma hora de duração.

Avaliação socioeconômica

Para a caracterização socioeconômica dos sujeitos, foi utilizado o critério de classificação econômica Brasil (Critério Brasil), da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP, 2011). Trata-se de um questionário socioeconômico, baseado nos bens familiares e formação acadêmica, onde, para cada bem possuído, há uma pontuação e cada classe é definida pela soma dessa pontuação. As classes são divididas em: A1, A2, B1, B2, C, D e E.

Avaliação auditiva

Os sujeitos de ambos os grupos participaram de todas as etapas do estudo: (1) anamnese; (2) inspeção do meato acústico externo; (3) audiometria tonal e (4) avaliação do processamento auditivo.

A anamnese permitiu a obtenção de dados de identificação, presença ou não de queixa auditiva, bem como a presença de fatores de risco para alteração auditiva e sintomas referentes ao processamento auditivo.

A inspeção do meato acústico externo foi realizada com o intuito de verificar suas condições. Indivíduos com presença de cerúmen foram encaminhados para avaliação otorrinolaringológica e, posteriormente, submetidos à avaliação audiológica.

Com as informações obtidas na anamnese e os dados sobre a avaliação otoscópica, deu-se início à avaliação audiológica, realizada em cabina acústica, em três sessões de uma hora cada. A primeira sessão foi para aplicação dos questionários, anamnese e avaliação da audição periférica. Nas segunda e terceira sessões, foram realizados os testes para avaliação da audição central, por meio dos seguintes procedimentos:

1) Audiometria tonal: foi utilizado Audiômetro Interacoustics® AC33, calibrado segundo normas 8253.1, Resolução 364.9 ISO3741, nas frequências de 250 a 8000 Hz com estímulo sonoro frequência modulada (Warble)(20).

2) Logoaudiometria: foram aplicados dois testes: o LRF (Limiar de Reconhecimento de Fala), utilizando-se uma lista de palavras trissílabas e polissílabas, como estímulo sonoro. O limiar foi pesquisado por meio do método descendente de intensidade, obtido quando a criança acertasse 50% das quatro palavras apresentadas. O segundo teste foi o IPRF (Índice Percentual de Reconhecimento de Fala), em que foi utilizada uma lista de 25 monossílabas e uma de 25 dissílabas, apresentadas como estímulo, em uma intensidade fixa (média tritonal somada a 40 dB NA)(20).

3) Timpanometria: foi realizada a pesquisa da curva timpanométrica e dos reflexos estapedianos ipsilaterais e contralaterais(21), utilizando-se o imitanciômetro AT235, calibrado segundo normas 8253.1, Resolução 364.9 ISO3741.

4) Processamento Auditivo (PA): para a avaliação do PA, foram aplicados os testes descritos a seguir:

Testes dióticos

a) Teste de sequencialização sonora verbal, utilizando-se como critério de análise, o proposto por Pereira e Schochat (2011)(22), que consideram como padrão de normalidade >2 acertos em 3 tentativas.

b) Teste de sequencialização sonora não verbal, utilizando-se como critério de análise, também a proposta de Pereira e Schochat (2011)(22), que consideram como padrão de normalidade >2 acertos em 3 tentativas.

c) Teste de localização da fonte sonora em cinco direções utilizando-se como critério de análise, o proposto por Pereira e Schochat (2011)(22), que consideram como padrão de normalidade > 4 acertos.

Testes monóticos

a) Logoaudiometria Pediátrica, abreviada PSI (Pediatric Speech Intelligibility). Para a realização desse teste foi utilizado um audiômetro de dois canais, CD player e CD proposto por Pereira e Schochat (2011)(22), com a gravação de dez frases e uma história infantil, usadas como estímulo principal e mensagem competitiva, respectivamente, assim como um tabuleiro de figuras relacionadas às dez frases. Como critério de normalidade, as autoras consideram >80% de acertos para MCI=0; >70% de acertos para MCI= -10 e >60% de acertos para MCI= -15.

b) Teste de Fala com Ruído (TFR). Para a realização do teste, foram empregados os mesmos equipamentos citados no teste acima e, como estímulo sonoro, uma lista com 25 monossílabos, como estímulo principal, e ruído branco, como mensagem competitiva, na relação estímulo principal/mensagem competitiva de +5 dBNA, como proposto por Pereira e Schochat (2011)(22). Como critério de normalidade as autoras consideram F/R >70% de acertos e diferença entre IPRF e F/R <20%.

Os resultados do desempenho do teste também foram utilizados para classificação do grau de severidade do DPAC, de leve a severo, conforme proposto por Pereira e Schochat (2011)(22).

Testes dicóticos

a) Logoaudiometria Pediátrica (PSI). Os equipamentos e procedimentos foram iguais ao modo monótico, diferenciando-se a forma de aplicação dos estímulos sonoros, que foram apresentados contralateralmente e simultaneamente, tendo como critério de normalidade >90% de acertos.

b) Teste dicótico de dígitos. Para a realização desse teste, foram necessários um audiômetro de dois canais, CD player, CD de estímulo sonoro, quatro listas de 20 itens cada uma, sendo cada item formado por quatro dígitos selecionados entre os números de 1 a 9, que representam dissílabos da língua portuguesa (quatro, cinco, sete, oito e nove). Esse teste foi aplicado em duas etapas: Integração Binaural e Escuta Direcionada (direita/esquerda). Como critério de normalidade, utilizou-se o proposto por Pereira e Schochat (2011)(22).

Os resultados da avaliação audiológica básica foram registrados em audiograma e timpanograma. Já os resultados da avaliação do PA, foram registrados em protocolos propostos por Pereira e Schochat (2011)(22).

Análise estatística

Para a análise estatística, utilizou-se o pacote estatístico IBM Statistical Package for Social Sciences (SPSS), em sua versão 21.0. O nível de significância adotado foi de 5% (0,050). Os testes aplicados foram o Teste da Razão de Verossimilhança e o Teste Qui- quadrado com variação de Fisher, para proporções, com o intuito de verificar possíveis diferenças entre os grupos estudados.

RESULTADOS

Analisando a amostra, identificou-se maior frequência de alterações nas crianças desnutridas, quando comparadas com as crianças eutróficas. Pôde-se observar elevado índice de crianças de ambos os grupos que não apresentaram alterações na habilidade de localização da fonte sonora. Porém, o desempenho do G1 foi inferior ao G2 nas habilidades avaliadas no teste de memória para sons verbais e não verbais em sequência. O desempenho dos grupos nos testes de localização sonora (TLS), teste de memória para sons verbais em sequência e teste de memória para sons não verbais em sequência, está detalhado na Tabela 2.

Tabela 2 Comparativo de desempenho dos grupos G1 e G2 nos testes dióticos 

Categoria Grupo G1
Grupo G2
Valor de p
Normal Alterado Normal Alterado


n % n % n % n %
TLS 11 73,3 4 26,7 13 86,7 2 13,3 0,358
TMSV 2 13,3 13 86,7 11 73,3 4 26,7 0,001*
TMSnV 5 33,3 10 66,7 11 73,3 4 26,7 0,026*

*Valores significativos (p<0,05) – Teste da Razão de Verossimilhança

Legenda: G1 = grupo amostral; G2 = grupo controle; TLS = Teste de localização sonora; TMSV = Teste de memória para sons verbais em sequência; TMSnV = Teste de memória para sons não verbais em sequência

Quanto ao TDD, foi possível observar efetiva diferença na comparação entre os dois grupos, na tarefa de Integração Binaural, em que o G2 demonstrou desempenho superior ao G1. Cem por cento das crianças desnutridas apresentaram dificuldade em relação à habilidade avaliada por esse teste. Ocorreram diferenças de desempenho entre G1 e G2 no Teste de Fala com Ruído, onde G1 apresentou desempenho inferior, não sendo observada, no entanto, diferença significativa (Tabela 3).

Tabela 3 Comparativo de desempenho no TDD e TFR 

Categoria G1
G2
Valor de p
Normal Alterado Normal Alterado


n % n % n % n %
TDD - IB 0 0,0 15 100,0 10 66,7 5 33,3 0,000*
TDD-ED 5 33,33 10 66,67 11 73,3 4 26,67 0,026*
TFR 6 40,0 9 60,0 11 73,33 4 26,67 0,062

*Valores significativos (p<0,05) – Teste da Razão de Verossimilhança

Legenda: G1 = grupo amostral; G2 = grupo controle; TDD-IB = Teste dicótico de dígitos, integração binaural; TDD-ED = Teste dicótico de dígitos; escuta direcionada; TFR = Teste de fala com ruído

Os valores obtidos no Teste de Fala com ruído permitiram classificar o grau de severidade do DPAC e os resultados evidenciaram maior severidade no G1, sendo o grau leve o de maior ocorrência (Tabela 4).

Tabela 4 Grau de severidade do DPAC dos grupos 

Grau de severidade G1
G2
OD OE OD OE


n % n % n % n %
Normal 6 40,0 6 40,0 11 73,33 11 73,33
Leve 5 33,33 5 33,33 2 13,33 2 13,33
Moderado 1 6,67 1 6,67 2 13,33 2 13,33
Severo 3 20,0 3 20,0 0 0,00 0 0,00

Total 15 100,0 15 100,0 15 100,0 15 100,0

Legenda: G1 = grupo amostral; G2 = grupo controle; DPAC = Distúrbio do Processamento Auditivo Central; OD = orelha direita; OE = orelha esquerda

O Teste PSI foi realizado com mensagem competitiva contralateral e ipsilateral. No PSI contralateral, não houve relevância estatística entre os grupos. Entretanto, no PSI ipsilateral, o G1 apresentou índice de alterações maior que no G2, para ambas as orelhas. Na realização do teste em MCI, houve semelhança entre os dois grupos, quando a relação fala/ruído foi 0 dBNA, mas, quando realizado na relação fala/ruído -10 dBNA e -15 dBNA, houve pior desempenho do G1. Porém, quando comparado o desempenho entre os grupos, com relação fala/ruído -15 dBNA, não houve diferença significativa (Tabela 5).

Tabela 5 Comparativo de desempenho entre grupo G1 e G2 no teste PSI 

Teste OD
Valor de p OE
Valor de p
G1 G2 G1 G2


Normal Alterado Normal Alterado Normal Alterado Normal Alterado
 

PSI n % n % n % n % n % n % n % n %
0/MCC 10 66,7 5 33,3 13 86,7 2 13,33 0,370 10 66,7 5 33,3 13 86,7 2 13,3 0,370
-40/MCC 0 0,00 15 100,0 5 33,3 10 66,7 0,152 0 0,00 15 100,0 5 33,3 10 66,7 0,152
0/MCI 9 60,0 6 40,0 12 80,0 3 20,0 0,229 9 60,0 6 40,0 12 80,0 3 20,0 0,229
-10/MCI 5 33,3 10 66,7 11 73,3 4 26,7 0,043* 6 40,0 9 60,0 11 73,3 4 26,7 0,026*
-15/MCI 4 26,7 11 73,3 9 60,0 6 40,0 0,141 5 33,3 10 66,7 9 60,0 6 40,0 0,063

*Valores significativos (p<0,05) – Teste da Razão de Verossimilhança

Legenda: OD = orelha direita; OE = orelha esquerda; G1 = grupo amostral; G2 = grupo controle; PSI = Pediatric Speech Inteligibility; MCC = Mensagem competitiva contralateral; MCI = Mensagem competitiva ipsilateral

Os grupos foram comparados, também, quanto à classificação socioeconômica e não foram evidenciadas diferenças significativas. Na comparação quanto ao gênero, houve índice maior do gênero masculino.

DISCUSSÃO

As habilidades auditivas são de extrema importância no desenvolvimento da linguagem e da fala do indivíduo. O desenvolvimento dessas habilidades depende de processos que envolvem vias nervosas complexas, que podem ser afetadas por fatores ambientais, sociais e patológicos, como descrito na literatura especializada(1,2,4,5,6,8).

Na literatura nacional e internacional há poucos estudos(23-25) que relacionam a desnutrição e o desenvolvimento das habilidades do processamento auditivo. Porém, os estudos encontrados também constataram desempenho inferior em crianças com desnutrição.

Na análise dos testes com tarefa diótica identificou-se que no teste de localização sonora o desempenho entre os grupos foi semelhante. Considerando que o processo de maturação interfere no desenvolvimento das habilidades auditivas, e que a criança é capaz de localizar a fonte sonora por volta dos sete meses de idade e que a faixa etária da casuística deste estudo era de 5 a 10 anos de idade, não se pode inferir que a desnutrição não interfere no desenvolvimento dessa habilidade. Foi realizado um estudo(23) em crianças com faixa etária de 0 a 2 anos de idade, com desnutrição, em que a audição central foi avaliada por meio da avaliação auditiva comportamental. O estudo identificou alterações na localização sonora, podendo, assim, sugerir que a desnutrição precoce poderia afetar essa habilidade.

No TMSV e TMSnV, testes que avaliam as habilidades de memória para sons verbais e não verbais em sequência, as crianças desnutridas apresentaram desempenho inferior às eutróficas. Considerando-se que a diferença entre o desempenho dos grupos foi significativa, pode-se sugerir que a desnutrição pode ter afetado o desempenho nos processos envolvidos, devido ao tipo de tarefa auditiva executada no teste, que envolve conexões nervosas mais complexas. Neste sentido, autores relataram que a desnutrição pode acarretar prejuízos na estrutura celular, nos neurotransmissores e no processo de mielinização(4,26).

Com a aplicação do TDD na casuística e controle deste trabalho, foi possível avaliar o desempenho na habilidade de figura fundo para sons verbais, por meio das tarefas de Escuta Dicótica/Integração Binaural. Alterações nesse teste podem indicar prejuízo na habilidade de figura fundo para sons verbais, no mecanismo fisiológico de atenção seletiva e no processo gnósico de decodificação. Cem por cento das crianças desnutridas apresentaram baixo desempenho, indicando que a desnutrição pode ter afetado os processos auditivos centrais citados acima.

Os dados encontrados no presente estudo concordam com estudo realizado(27) em um grupo de crianças com desnutrição e em um grupo de crianças saudáveis, onde a autora aplicou o mesmo teste e identificou diferença significativa nas alterações no grupo de crianças com desnutrição (67,7%), quando comparado com o grupo controle (38,2%).

A escuta dicótica em crianças desnutridas também foi pesquisada em um estudo(28), com relação ao papel da resiliência nas tarefas de escuta dicótica em adolescentes em situação de risco social. A autora observou que, no teste dicótico de dígitos para habilidade de integração binaural, mais de 85% do grupo vulnerável apresentou alteração. Os dados apontaram para uma dificuldade em transferir a informação do hemisfério direito para o esquerdo, onde deve ser processada. Ressaltamos que o processo de maturação deve ser levado em consideração na análise dos resultados, devido ao fato de as habilidades estarem, ainda, em período de desenvolvimento, conforme citado na literatura(29). Dessa forma, em razão da faixa etária da população estudada, não foi possível, neste estudo, relacionar o desempenho das crianças com possíveis alterações no SNC, mas pôde-se observar que fatores nutricionais podem interferir nesse processo.

Os testes usados para avaliar as crianças deste estudo também foram aplicados em uma pesquisa(30), em que foi realizada a avaliação do processamento auditivo em crianças nascidas pré-termo. Um dos fatores de risco encontrado nessa população foi baixo peso, <1,500 Kg. Os testes aplicados foram TLS, TMSV, TMSnV, TFR, PSI/ MCC, PSI/ MCI e TDD e os autores observaram alteração em 93,75% dos indivíduos avaliados. Os mecanismos fisiológicos que se apresentaram alterados foram os de reconhecimento de sons verbais fisicamente distorcidos e reconhecimento de sons verbais em escuta monótica (50% das crianças). Quarenta e três vírgula setenta e cinco por cento das crianças apresentaram alteração do processamento temporal, 37,5%, do reconhecimento de sons verbais em escuta dicótica e 6,25%, do mecanismo de interação binaural. Os autores também identificaram atraso na habilidade de localização sonora, ordenação temporal, fechamento e figura fundo, assim como no presente estudo.

Estudo com crianças subnutridas com queixas escolares avaliou a audição central por meio do teste SSW e, segundo a autora, 100% das crianças subnutridas apresentaram alteração no teste e o processo gnósico mais prejudicado foi o de decodificação(25).

Os efeitos da desnutrição nos PEATE, na estimulação sensório motora e no processamento auditivo também foram estudados e os achados sugerem que a desnutrição, nos primeiros anos de vida, pode provocar sérios efeitos na mielinização da via auditiva(26).

Com a realização deste estudo, pôde-se detectar a carência de estudos que relacionem a desnutrição e o desenvolvimento das habilidades do PA. A maioria das pesquisas relaciona a desnutrição ao baixo rendimento escolar, dificuldades no desenvolvimento da linguagem e da aprendizagem. Porém, citam que o grupo que demonstrou dificuldades na linguagem escrita, apresentou maior incidência de alterações no PA do que o grupo que não manifestou alterações de linguagem escrita, indicando que alterações no PA podem estar associadas à dificuldade na linguagem escrita(17,26).

CONCLUSÃO

Crianças com desnutrição apresentaram maior frequência de alterações nas habilidades auditivas, quando comparadas a crianças eutróficas, sendo as habilidades mais afetadas as de ordenação temporal, memória auditiva, atenção seletiva, figura fundo e fechamento. Quanto ao grau do distúrbio do processamento auditivo, houve maior severidade nas crianças desnutridas.

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