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Hanseníase: sentidos e facetas do convívio para adolescentes com a doença e seus familiares

Hanseníase: sentidos e facetas do convívio para adolescentes com a doença e seus familiares

Autores:

Fabiana Drumond Marinho,
Luziane Zacche Avellar,
Luiz Gustavo Silva Souza,
Susilene Maria Tonelli Nardi,
Gilma Corrêa Coutinho

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional

versão On-line ISSN 2526-8910

Cad. Bras. Ter. Ocup. vol.26 no.4 São Carlos out./dez. 2018

http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoao1251

1 Introdução

A hanseníase constituiu-se historicamente como causa de forte estigma. Situações de precariedade econômico-social, bem como negligência histórica quanto às enfermidades endêmicas, podem aumentar sua prevalência (TAVARES et al., 2015). Atualmente, sabe-se que a hanseníase é uma doença infectocontagiosa que atinge a pele e os nervos periféricos e seu tratamento é feito em âmbito ambulatorial por meio de uma combinação medicamentosa - a poliquimioterapia (PQT) (BRASIL, 2002). Embora seja uma doença curável, é potencialmente incapacitante, tendo grande importância para a saúde pública.

O Brasil mantém nas últimas décadas a situação mais desfavorável na América e o diagnóstico da segunda maior quantidade de casos novos do mundo, para todas as faixas etárias, inclusive na infância e adolescência (BRASIL, 2015). Esse panorama sinaliza a relevância de se investir em ações efetivas para o diagnóstico precoce da doença, por meio da busca e controle dos contatos intradomiciliares, dentre os quais são considerados os conviventes que compartilham o mesmo espaço físico do doente e constituem um elo importante da cadeia epidemiológica, pela possibilidade de apresentarem focos ocultos da doença, contribuindo para a sua expansão (AUGUSTO; SOUZA, 2006).

O diagnóstico positivo de hanseníase pode acarretar alterações no cotidiano dos doentes e modificações na dinâmica e rotina familiares, afetando também o dia a dia das pessoas que convivem com o doente, a fim de atender às demandas dos procedimentos técnicos, consultas e exames, das manifestações clínicas e dos efeitos farmacológicos adversos. Além disso, a hanseníase pode ativar crenças arraigadas no imaginário social associadas à doença no passado - a “lepra” -, contribuindo para mudanças cotidianas e repercussões psicossociais negativas. Defeitos físicos podem engendrar a construção do que Fernandes e Barbosa (2016) chamaram de “corpos periféricos”, destituídos de “capital corporal” e associados a afetos como o medo e o nojo. As repercussões negativas podem ser notadas em estudos realizados por Marinho et al. (2014) e Ayres et al. (2012), cujos resultados evidenciam sofrimento e impacto nas atividades de vida diária, de vida prática e de lazer das pessoas acometidas pela doença.

As pesquisas anteriormente citadas abordaram adultos com hanseníase. Encontramos apenas um estudo realizado por Ponte e Ximenes Neto (2005), em que se buscou verificar o conhecimento dos adolescentes sobre a doença, suas reações após o diagnóstico e as mudanças e dificuldades vivenciadas por eles. Notou-se também escassez de trabalhos direcionados aos familiares dos doentes.

Compreende-se que a adolescência não se restringe às transformações fisiológicas da puberdade, que não se trata de um “período naturalmente conturbado”, como afirmam certas definições universalizantes e atemporais. A adolescência é uma produção sócio-histórica que adquire expressões muito diversas em diferentes grupos e culturas. Nas sociedades modernas, industrializadas, a experiência da adolescência urbana é fortemente marcada pelo aspecto de “moratória”: poder experimentar o novo e errar; ter capacidade para a produção e a reprodução, representadas como próprias do mundo adulto, e ver-se interditado no exercício dessas capacidades; estar vinculado a instituições de ensino formal. As escolas participam da construção social da adolescência ao fornecer espaços para a vivência da moratória social, prolongando a tutela e o ensino aplicados inicialmente à infância e adiando a entrada de toda uma camada populacional no mundo adulto da produção e da reprodução (GROPPO, 2015; SILVA et al., 2018).

Tendo em vista essas formas específicas, industrializadas e urbanas de construção da adolescência, a experiência do adolescente pode ser marcada por incertezas, instabilidades, necessidade de interação com pares e afirmação identitária, necessidade de planejar o futuro e a carreira profissional no quadro de instituições formais. Há evidências de que adolescentes são especialmente vulneráveis ao sofrimento psíquico e que a atenção à sua saúde mental no Brasil é embrionária (SILVA et al., 2018).

A hanseníase implica estigma e limitações de várias ordens e sua incidência na adolescência pode trazer consequências dramáticas para a autopercepção e a construção de planos de futuro. É importante compreender como adolescentes portadores da doença e seus familiares percebem seu cotidiano, suas relações e suas práticas, para informar a atenção à saúde atenta a aspectos de saúde mental, para sensibilizar profissionais de saúde e fornecer subsídios às pesquisas e práticas profissionais direcionadas a adolescentes com hanseníase e seus familiares. Cabe buscar compreender não apenas as formas que os indivíduos utilizam para criar, transformar e interpretar essa problemática vinculada à sua realidade, como também conhecer suas ideias, sentimentos, repercussões da doença em suas relações intra e interpessoais.

Com esse intento, empregou-se, neste estudo, a Teoria das Representações Sociais (TRS), desenvolvida no âmbito da Psicologia Social, a qual tem oferecido um importante aporte teórico aos pesquisadores que buscam compreender como as pessoas dão significado aos fenômenos sociais e acontecimentos da vida cotidiana (ALMEIDA et al., 2015).

As representações sociais estão presentes em todas as interações humanas (MOSCOVICI, 2012) e, segundo Jodelet (2001), são

[...]uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo prático, e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social[...] (JODELET, 2001, p. 22).

O fenômeno das representações sociais diz respeito à construção de saberes sociais, envolvendo, assim, a cognição. No entanto, o desenvolvimento do saber não se restringe à formação de estruturas cognitivas racionais, pois o caráter simbólico e imaginativo desses saberes revela também a dimensão dos afetos (ARRUDA, 2014). Como sistemas sócio-cognitivo-afetivos, as representações sociais orientam e justificam práticas sociais (MOSCOVICI, 2012; JODELET, 2001).

Considerando a relevância social e acadêmica da temática em questão, esta pesquisa objetivou compreender as representações sociais da hanseníase para adolescentes com a doença e seus familiares, bem como identificar percepções desses sujeitos sobre as repercussões da enfermidade em seu cotidiano. Compreender essas representações sociais, construídas e mantidas em cenários nos quais a hanseníase incide, pode informar a prática profissional em saúde e favorecer a desconstrução de crenças arcaicas; pode sensibilizar profissionais e subsidiar pesquisas ulteriores.

2 Método

Esta pesquisa foi realizada em Unidades de Saúde de quatro municípios de médio porte do Sudeste brasileiro. Tais municípios foram selecionados previamente, pois tinham adolescentes em tratamento, fato que não acontece em todos os municípios e também por terem o Programa de Controle da Hanseníase (PCH) funcionando eficazmente. Participaram 19 adolescentes com hanseníase e 18 familiares. Apenas o familiar de um adolescente recusou participar da pesquisa alegando motivos pessoais. Foram adotados os seguintes critérios de inclusão dos participantes adolescentes: a voluntariedade e o interesse em participar; ter entre 12 e 18 anos, ambos os sexos e estar em tratamento medicamentoso para a hanseníase. No caso dos familiares, os critérios foram: habitar a mesma casa que o adolescente doente e ter parentesco com ele.

Para a coleta de dados, foram utilizadas entrevistas semiestruturadas que abordaram as concepções dos adolescentes com hanseníase e aquelas de seus familiares sobre a vivência/convivência com a doença e sobre as repercussões na vida cotidiana após o diagnóstico. As questões que nortearam as entrevistas foram: como é viver/conviver com a hanseníase; o que mudou após o diagnóstico; quais pessoas das redes de relação social do adolescente foram informadas sobre a doença e qual foi a reação delas; como se dão as relações intra e interpessoais nas situações descritas.

A coleta de dados ocorreu no período de outubro de 2014 a março de 2015. Foi realizado um contato prévio com os responsáveis pelo Programa de Controle da Hanseníase nos locais referidos, sendo solicitada sua colaboração para a seleção dos participantes. Mediante a indicação dos profissionais, foram feitos contatos e agendamentos com os adolescentes e seus familiares. Adolescentes e familiares foram instruídos a comparecerem juntos no dia agendado, para que o responsável pudesse autorizar a participação dos adolescentes na pesquisa. As entrevistas foram realizadas individualmente na própria Unidade de Saúde em que os adolescentes estavam em tratamento, de forma que todas as instituições cederam espaço em ambiente privativo, sem interferência externa. Após o consentimento, as falas foram registradas em áudio. As entrevistas tiveram duração média aproximada de 40 minutos.

O tratamento dos dados foi realizado sob a ótica da análise de conteúdo temática, proposta por Bardin (2011), que compreende as fases de pré-análise, exploração do material, tratamento dos resultados, inferência e interpretação dos dados coletados. Essa técnica possibilita compreender o sentido da comunicação e seus significados explícitos e/ou ocultos, permitindo uma descrição objetiva e sistemática do conteúdo das entrevistas, a fim de inferir os conhecimentos relativos às condições de produção/recepção de comunicações (BARDIN, 2011).

O projeto de pesquisa foi previamente autorizado pela Secretaria Municipal de Saúde dos municípios envolvidos e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Espírito Santo sob o número 803.853. De acordo com a Resolução CNS no 466, de 12 de dezembro de 2012, todos os participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), bem como o termo de assentimento livre e esclarecido (TALE) para menores de idade, sendo garantido o sigilo das informações.

3 Resultados

Participaram da pesquisa 19 adolescentes com diagnóstico confirmado de hanseníase, sendo 11 do sexo feminino e 8 do sexo masculino. Quanto à faixa etária, 9 participantes tinham idade entre 12 e 15 anos e 10, entre 16 e 18 anos. Em relação ao estado civil, todos eram solteiros. No que concerne à escolaridade, 6 cursavam o Ensino Médio e 12, o Ensino Fundamental. Apenas um adolescente afirmou ter interrompido os estudos no sétimo ano do Ensino Fundamental. Segundo a ocupação, 17 adolescentes não trabalhavam e 2 desempenhavam atividades com os pais (um trabalhava com reciclagem e o outro, em um lava-jato). Também participaram do estudo 18 familiares, sendo 14 do sexo feminino e 4 do sexo masculino, dos quais 13 mães, 4 pais e 1 avó, com idade entre 28 e 65 anos. Quanto ao estado civil, 12 eram casados, 1, solteira, 4, separados e 1, viúva. No que diz respeito à escolaridade, 10 tinham o Ensino Fundamental incompleto, 4, o Ensino Fundamental completo, 3, o Ensino Médio completo e apenas 1, o Ensino Superior. Todos habitavam a mesma casa que o adolescente.

Segundo a análise dos depoimentos colhidos nas entrevistas, emergiram três categorias que serão descritas nos subtópicos a seguir: 1) as facetas do cotidiano com a hanseníase; 2) o medo diante da hanseníase; 3) a materialização do preconceito. Foram usados codinomes com as iniciais dos nomes dos participantes a fim de garantir o anonimato.

4 As Facetas do Cotidiano com a Hanseníase

A presente categoria descreve percepções dos adolescentes com hanseníase e de seus familiares sobre o cotidiano após o diagnóstico da doença. No que diz respeito ao convívio cotidiano com o adolescente com hanseníase, a maioria dos familiares expressou ser “normal” e “tranquilo”, revelando que a doença não representou barreira para manifestações de afeto/carinho para com o adolescente. Ao contrário, familiares referiram ter aumentado a atenção, zelo, preocupação e participação no cuidado com o adolescente. Dentre essas práticas, citaram marcação de consulta e acompanhamento regular ao serviço de saúde, orientação para o uso correto da medicação, cuidados com a pele e alimentação, como refletem os depoimentos a seguir:

É normal, não faz diferença nenhuma, a gente abraça, a gente beija, a gente leva pra praia, a gente brinca, leva pra carnaval, leva pra tudo quanto é lugar que a gente vai (Marta).

Pra mim, dando medicação, estando ele tomando tudo, pra mim, é normal. Eu cuido do horário certinho pra medicação, no cuidado de estar passando óleo na pele dele, porque começou a ressecar, então meu cuidado com ele é diariamente (Fátima).

Por sua vez, alguns adolescentes descreveram a convivência com o adoecimento como uma experiência ruim” e “difícil”, conforme explicitado nesta fala:

[...] conviver com a hanseníase é difícil porque às vezes você cansa de ficar toda hora ter que tomar remédio, ter que vim no médico pra pegar o remédio (Alex).

Dentre as repercussões no dia a dia dos adolescentes, o remédio foi mencionado como principal problema. Os efeitos colaterais da medicação, além da obrigatoriedade rotineira de sua administração, foram relevantes mudanças pós-diagnóstico e dificuldades referidas nas narrativas. Além disso, participantes percebiam que um novo cotidiano se estabeleceu em razão do comparecimento frequente às consultas médicas, realização de exames, cuidados com o corpo e alimentação, como ilustra a seguinte fala:

Era muito bom antes da hanseníase, não precisava tanto aquele remédio todo, não precisava sentir dor de cabeça, tontura, sempre passando muito mal, me alimentar também, nunca me alimentei muito bem não. Meu dia-a-dia é só tomar remédio (Beatriz).

Adolescentes citaram também privações relevantes nos afazeres diários e de lazer em decorrência das dores físicas, interferindo significativamente no seu cotidiano. As falas descritas a seguir ilustram essas mudanças:

Não ajudo a minha mãe porque eu não aguento, meu nervo dói e minha coluna dói, se for pra limpar a casa pra minha mãe eu não aguento por causa dos nervos e a coluna dói, aí fica doendo a semana toda, aí ela que faz (Clara).

Por causa da dor que eu não posso sair, quando ataca eu não consigo andar, aí eu só acordo, escovo os dentes, tomo café e fico o dia todo sentada assistindo televisão, sem fazer nada, aí é chato. Ficou mais ruim minha vida, eu não posso fazer mais nada, eu fico mais presa dentro de casa (Lúcia).

A análise revelou que até mesmo os adolescentes que referiram ser “normal” conviver com a doença, ao longo da entrevista também apontaram alterações no cotidiano e dificuldades vivenciadas após o diagnóstico de hanseníase, relacionadas à ingestão diária dos medicamentos, dos efeitos colaterais adversos, da alimentação, entre outros.

5 O Medo Diante da Hanseníase

Do conjunto de dados que compuseram a categoria referente aos medos dos adolescentes com hanseníase e de seus familiares, emergiram duas subcategorias: 1) o medo de contaminar e de ser contaminado; 2) preconceito: o medo que cala e afasta.

5.1 O medo de contaminar e de ser contaminado

Embora a maioria dos familiares tenha declarado ser normal” e “tranquila” a convivência com o adolescente com hanseníase, a análise desvelou crenças heterogêneas sobre a transmissão da doença, desencadeando o medo explícito ou implícito de contraírem a enfermidade de alguns sujeitos. Mudanças no cotidiano caracterizadas pela ênfase em procedimentos higiênicos, como a separação de utensílios domésticos (talheres, prato, copo, toalha), a proibição de tocar em crianças ou aumento de cuidado no toque, foram citadas por participantes. As falas a seguir evidenciam o medo associado ao contágio:

No início eu tive medo, mas procurei não passar isso pra ela, tô falando isso agora, nem com ninguém comentei. [...] ela ia pegar o neném, eu colocava um cueiro no colo dela (Sara).

Eu evitava tomar água no mesmo copo que ela, deixar a minha outra filha de treze anos tomar e comer no mesmo prato sem ser lavado, eu tomava água do mesmo copo, mas antes eu lavava. [...] agora ela está imune, eu não tomo mais no copo dela com muito medo igual eu tinha não, mas tinha medo (Antônio).

As práticas apontadas anteriormente foram justificadas pelos familiares como tentativa de prevenir a transmissão da doença. Observou-se que o medo relacionado ao contágio era reforçado por crenças afirmadas como verdades inequívocas:

[...] se você beber água no copo que ela tivesse acabado de beber sem lavar com sabão pegaria (Antônio).

Falas de adolescentes com hanseníase também apontaram o receio em transmitir a doença e serem “responsáveis” pelo possível adoecimento de outras pessoas, como no seguinte exemplo:

[...] por causa que eu tenho essa doença, eu não posso ir pra piscina, porque sei lá, tenho medo de pegar em outra pessoa (Juliana).

5.2 Preconceito: o medo que cala e afasta

A análise desvelou que, por medo do preconceito, tanto os familiares quanto os adolescentes participantes, em sua maioria, optaram por ocultar o diagnóstico positivo de hanseníase dos demais parentes ou informaram-no apenas às pessoas “mais próximas”, acreditando que a revelação tornaria os adolescentes vulneráveis a repercussões danosas. Dentre os temas que retrataram o processo de gerenciamento da informação sobre a doença, estavam o temor do desprezo, da discriminação e do afastamento das pessoas, o receio da disseminação de comentários pejorativos e do julgamento moral, bem como de mudanças nos relacionamentos, seja no âmbito familiar, seja no extrafamiliar. Os relatos a seguir evidenciam a acentuada reserva em falar sobre a doença, justificados pelo medo do preconceito:

Só a minha família e um amigo meu que sabe, e minha tia. Tenho medo de todo mundo falar, começar a fofocar, ninguém querer ficar perto de mim (Marcelo).

Que eu contei mesmo foi só pro meu pastor e familiares. Eu nem gosto de comentar não, tenho medo de ser desprezado pelas pessoas (Fernando).

Outro tema enfatizado pelos participantes foi o afastamento do convívio social resultante do medo do preconceito. O medo de ser excluído fez alguns adolescentes anteciparem o comportamento excludente ao optarem por se isolar, o que interferia sobremaneira nas suas relações em determinadas atividades cotidianas. Isso pode ser exemplificado pelo seguinte excerto:

Eu não saio pra canto nenhum mais, porque se eu sair, em qualquer lugar que eu sair e os meus primos me ver na rua, eles vão falar, então eu não saio. Tenho medo de sair na rua, é medo! Eu acho dificuldade de ter medo, porque antes eu brincava, eu era vinte por cento alegre, agora eu não sou mais nada, não sou mais nada (Isabela).

Os sinais da hanseníase, diretamente associados às manchas no corpo, bem como ao escurecimento da pele decorrente do uso da medicação, também foram determinantes para o medo do preconceito, vergonha e isolamento social de alguns adolescentes. A ocultação do corpo, como o uso de calças e blusas de manga comprida, emergiu como tentativa de evitar explicações, discriminação e, consequentemente, de não serem identificados como portadores da doença pela sociedade. Uma das adolescentes afirmou:

Eu gostava muito de sair, agora eu não saio por causa das manchas na pele (Patrícia).

Segundo um dos familiares:

Ela começou a se resguardar até dentro de casa, nem dentro de casa mais ela queria deixar as pernas à mostra (Maria).

6 A Materialização do Preconceito

A temática do preconceito foi central e mencionada com frequência na fala dos participantes. A análise revelou que grande parte dos entrevistados percebeu e/ou vivenciou o preconceito infligido pelo outro “são” - familiares, amigos e conhecidos. A percepção do preconceito não se restringiu ao espaço domiciliar do adolescente, como descreveu a categoria anterior.

Tanto os contatos intradomiciliares quanto os adolescentes descreveram rejeição/ discriminação de algumas pessoas de seu convívio, após decidirem revelar o diagnóstico de hanseníase. O preconceito explícito ocorreu em diferentes espaços sociais e materializou-se mediante o afastamento de amigos e parentes, de comentários pejorativos, da recusa ao toque, dos olhares dúbios e do comportamento “diferente” daqueles com os quais conviviam:

Alguns amigos se afastaram de mim, não conversa mais comigo. [...] Porque fica com medo de pegar, sei lá, com nojo (Alex).

Eu fui dar um beijinho no rosto do meu primo que tava no colo da minha irmã, aí um outro primo virou pra mim e falou bem assim: “não beija o menino não, credo, você tá com hanseníase, vai infectar o menino”. Eu vou odiar ele pra sempre, pra sempre eu vou odiar ele (Isabela).

Tem alguns da minha família que está criticando e humilhando ela por causa da hanseníase. Ela senta num lugar e eles não querem sentar no lugar que ela sentou, com medo de pegar essa doença (Laura).

Em associação com situações desse tipo, uma adolescente afirmou: “Eu fiquei quieta chorando” (Bruna); familiares disseram: “Ela chorou demais, ficou meio depressiva” (Helena) e “Ele às vezes chora e fica muito humilhado” (Luís).

Entrevistados atribuíram as práticas de discriminação e rejeição presentes nas redes de relação social a informações erradas acerca da hanseníase, a crenças arraigadas sobre o contágio e à permanência da figura da doença contagiosa, assustadora e incurável.

Em contrapartida, alguns participantes ressaltaram que a revelação diagnóstica aos parentes e amigos não ocasionou práticas preconceituosas. Ao contrário, notaram que os laços afetivos se fortaleceram e que receberam apoio e acolhimento. Entrevistados alegaram que isso se deu em razão de já terem histórico da doença na família, bem como pelo conhecimento de que a enfermidade é passível de cura, como ilustra o seguinte trecho de fala:

Lá em casa, como minha irmã já teve hanseníase, então o pessoal já sabia como conviver, então não teve preconceito, não teve medo, não teve pânico, viu que era uma coisa que tinha cura. Todo mundo recebeu bem, acolheu bem (Edna).

Por fim, vale destacar que alguns participantes acreditavam que práticas de preconceito só não tinham acontecido em virtude de terem mantido sigilo sobre a doença, pois, do contrário, em sua percepção, a exclusão e a discriminação certamente adviriam.

7 Discussão

Representações sociais são formas de mediação simbólica, firmemente radicadas nas práticas comunicativas, nas vivências pessoais, nas informações veiculadas pela mídia (JOVCHELOVITCH, 2000; MOSCOVICI, 2012). Os resultados permitiram conhecer aspectos das representações sociais de adolescentes com hanseníase e de seus familiares sobre a doença, bem como percepções sobre repercussões da enfermidade em seu cotidiano. A doença cria um campo fértil para que as representações sociais sejam geradas, por ser um evento que ameaça ou modifica a inserção social e a vida individual, provocando muitas vezes um desequilíbrio coletivo (HERZLICH, 2005).

Os resultados descritos evidenciaram que a vivência do adoecimento e o convívio com um familiar doente acarretaram alterações no cotidiano dos participantes do estudo, haja vista que conhecidamente o cotidiano imprime a singularidade do indivíduo e molda-se de acordo com o contexto de vida em torno dos valores, crenças e sentimentos (SALLESA; MATSUKURAB, 2013).

As representações construídas pelos adolescentes sobre a hanseníase compunham-se de elementos valorados negativamente, associados ao cotidiano permeado por medos, preconceito, isolamento social, sofrimento e dificuldades no percurso do tratamento, em especial no que diz respeito à medicação. Esses resultados são condizentes com o que Ponte e Ximenes Neto (2005) constataram, o sofrimento e as alterações na rotina diária de adolescentes com hanseníase no município de Sobral, no Ceará, em razão da sintomatologia da doença, dos efeitos colaterais dos medicamentos e do preconceito vivido.

Para os familiares, não foi diferente. Apesar da eventual tentativa de descrever como “natural” a convivência com o adolescente com hanseníase, a análise desvelou que o processo patológico em um membro da família fez emergir um novo cotidiano. Além da preocupação e da atenção com seu familiar doente, principalmente no que se refere ao encorajamento para a adesão ao tratamento e às práticas de autocuidado, os contatos intradomiciliares também manifestaram seus medos, sobretudo o do contágio, acarretando mudanças em práticas familiares.

Destarte, a vivência/convivência com a hanseníase fez emergir sentimentos como medo, vergonha, preocupação e tristeza, confirmando o pressuposto teórico de que a construção de uma realidade compartilhada surge do trabalho de elaboração de um imaginário que envolve a mobilização afetiva, bem como a seleção, a manutenção e a transmissão dos elementos significativos para o grupo e a pessoa (JODELET, 2005; MOSCOVICI, 2012).

Entre os participantes, o sentimento de medo foi o mais saliente e mostrou-se como importante orientador de práticas de exclusão social do doente. É possível sintetizar conteúdos revelados tanto por familiares e adolescentes, no que diz respeito aos principais medos. Dentre eles, destacam-se: o medo do abandono e da rejeição social, de comentários pejorativos, de revelar a doença e, em especial, do contágio.

O sentimento de estar suscetível ao “perigo” fez alguns familiares e amigos buscarem na separação e na exclusão uma solução possível para se defender, mesmo que racionalmente soubessem da ausência de uma ameaça genuína. Apesar das comprovações científicas de que a transmissão da hanseníase se dá por meio de um contato íntimo e prolongado com o doente e de que, ao iniciar o tratamento, a pessoa deixa de transmitir a doença (BRASIL, 2002), os resultados evidenciaram a persistência de temores sobre a contaminação de alguns participantes, associados a práticas de afastamento físico e de separação dos objetos tocados pelo doente dentro do ambiente domiciliar.

Tais práticas também são notórias na reconhecida pesquisa de Jodelet (2005) sobre representações sociais da loucura em uma comunidade rural francesa. Os resultados evidenciaram o imperativo principal de demarcar a diferença e a separação entre os “loucos” e os “sadios”. A proximidade com a alteridade radical da loucura inspirou o sentimento de medo na comunidade diante do que supostamente era considerado um fenômeno incontrolável e potencialmente contagioso (JODELET, 2005).

Apesar da disseminação de informações científicas sobre a loucura, assim como sobre a hanseníase, conhecimentos e práticas populares podem continuar se baseando em representações alimentadas por antigas associações da doença com a sujeira, a degeneração e o contágio.

Cabe mencionar possíveis razões para a persistência das representações de contágio da hanseníase. Podem ser resultado da dificuldade em reter e assimilar conhecimentos científicos sobre a doença, visto que tais informações se apresentam como limitadas com frequência.

Outra razão possível é o valor simbólico da noção de contágio, uma vez que a existência de crenças sobre a transmissão da doença por meio do toque e de secreções corporais, por exemplo, encontra razão de ser nos processos simbólicos para estigmatizar o doente e determinar as relações com ele (JODELET, 1998), como se pôde apreender nos discursos de alguns participantes.

Podemos supor, ainda, que as elaborações acerca da hanseníase, vista como uma espécie de poluição, doença que mutila e é incurável, também podem estar relacionadas a uma construção social destinada a controlar e manter a ordem social (JODELET, 1998). Isso marcou a história da doença com práticas de segregação e isolamento do doente, além de apresentá-lo como presença perigosa para a sociedade que o integra durante muitos anos. Considera-se que as concepções sobre o contágio são fundantes da própria noção de doença e assim permanece até os dias de hoje (OLIVEIRA, 2011), o que interfere nas relações com o outro, de forma geral, em especial, aqui, com o doente de hanseníase.

Os adolescentes entrevistados também manifestaram preocupação e medo em transmitir a doença para as pessoas. Os dados sugerem que alguns participantes constroem a imagem de um corpo “contaminado e impuro”, ou, em outras palavras, o próprio doente tende a evitar esse “contágio” simbólico para outras pessoas (CLARO, 1995).

Alguns foram motivados a limitar sua participação em atividades cotidianas, pois temiam o adoecimento de seus parentes, amigos e conhecidos. Trata-se da construção objetiva-subjetiva de um “lugar” de doente, revelada pelas falas, com as implicações sociais previstas por Jovchelovitch (2000), ao afirmar que os sujeitos, ao se engajarem na tarefa simbólica e compartilhada de representar uma dada realidade, “revelam muito mais do que visões idiossincráticas” (JOVCHELOVITCH, 2000, p. 113).

O medo construído socialmente em torno da hanseníase criou novas alternativas de sociabilidade, alterando o modo de ser e de agir dos pesquisados, tanto dos familiares quanto dos adolescentes com a doença. Esses resultados atestam a importância de considerar não apenas a base informacional dos sujeitos, mas também seus valores e afetividade, como caminho para evitar a discriminação social dos doentes de hanseníase, bem como a própria autoestigmatização.

Considerada uma das doenças mais antigas da humanidade, a hanseníase, nas traduções bíblicas, está associada à impureza, a uma praga divina que recaía sobre os seres infames, resultando em nojo, repugnância e medo (SAVASSI, 2010). Ademais, a degradação física do corpo e o isolamento compulsório ao qual o doente era submetido - esse último visto como solução para findar os riscos de contaminação dos sadios - contribuíram para as imagens construídas sobre a hanseníase e o hanseniano no espaço público, assim como para a persistência dos sentimentos de medo e repulsa. O medo do contágio pode ser o motivo pelo qual os familiares vivenciam o estigma e pode estar associado à causa e ao tratamento da doença (DAKO-GYEKE, 2018).

Tendo em vista o estigma, observou-se que os participantes deste estudo declararam práticas diversificadas no que se refere à revelação do diagnóstico de hanseníase. Prevaleceram as práticas de ocultar a doença ou confiar essa informação apenas aos mais próximos, justificadas pelo temor do preconceito. Nos estudos de Vieira (2010), Lopes et al. (2010) e Santos (2006), também foram encontrados resultados relacionados à opção dos doentes em manter o sigilo sobre o diagnóstico positivo de hanseníase, em razão do medo da discriminação social.

Marková (2003) destaca que a impossibilidade de um engajamento dialógico contribui para gerar desconfiança. Com base nos resultados deste estudo, é possível inferir que o medo do preconceito inibiu um encontro dialógico dos adolescentes e de seus familiares com pessoas de seu convívio, gerando, portanto, desconfiança e a opção de encobrir a doença como a melhor estratégia. Para a maioria dos entrevistados, contar sobre a doença equivaleria a estar exposto à discriminação e a um possível isolamento em seus meios familiar e social.

Outro aspecto que merece ser ressaltado diz respeito aos sentimentos, relatados por alguns adolescentes, de medo e vergonha de exibir o corpo, em razão dos sinais da doença - como manchas - e dos efeitos colaterais da medicação - como o escurecimento da pele. As alterações na aparência física muitas vezes provocam nas pessoas comportamentos de especulação, curiosidade e preconceito (EIDT, 2000), visto que a dimensão externa do corpo é a que mais está sujeita à formulação de juízos (QUEIROZ; OTTA, 2000), contribuindo, assim, para reforçar o medo, a vergonha e a insegurança do doente, diante da incerteza de como será identificado pelos “sadios” e em qual categoria será inserido (MARTINS; CAPONI, 2010).

Não se pode negar que o corpo humano, além de constituir uma entidade biológica, também é “fonte e expressão de símbolos” (QUEIROZ; OTTA, 2000, p. 31). A esse respeito, Queiroz e Otta (2000) afirmam que “o corpo é objeto de domesticação exercida pela cultura, sendo por ela apropriado e modelado” (QUEIROZ; OTTA, 2000, p. 19). Padrões estéticos e a concepção da beleza corporal são influenciados, em grande parte, por processos culturais. Esses processos sofrem variações conforme as diferentes culturas, mas há de se considerar a existência de alguns padrões universais, seja na determinação de critérios de atratividade, seja na apreciação estética alusiva ao corpo. Os autores acrescentam a tais observações que “o ideal de beleza pressupõe integridade física” (QUEIROZ; OTTA, 2000, p. 62), logo os sinais que a hanseníase imprime ao corpo contrariam ideais estéticos fortemente arraigados no humano.

Em uma realidade que exalta a beleza, os que não compartilham dos atributos de corpo “perfeito” e escapam à norma nomeiam-se e são nomeados como “diferentes” (LE BRETON, 2006), comumente repudiados e estigmatizados por uma sociedade que exige a semelhança e não reconhece as diferenças. O encobrimento das “marcas” deixadas pela hanseníase - que caracterizam o estigma -, por meio de mudanças na maneira de se vestir de alguns adolescentes, emergiu como uma tentativa de esconder a doença, decorrente do medo da discriminação e rejeição das pessoas de seu convívio, restringindo sobremaneira a sua participação em redes de sociabilidade. Os comprometimentos psicossociais que afligem os “corpos periféricos” (FERNANDES; BARBOSA, 2016) são ainda mais devastadores no contemporâneo, caracterizado, segundo Fernandes e Barbosa (2016), pelo hiperindividualismo, por um importante movimento de identificação completa do sujeito com seu corpo visível e pela supervalorização do exterior do corpo no próprio campo da medicina.

De acordo com os relatos coletados nesta pesquisa, observou-se que a segregação e o isolamento aos quais alguns adolescentes com hanseníase se impuseram surgiram não só em razão do medo do preconceito, mas também por terem sido, em sua percepção, de fato, alvos do menosprezo social. A análise permitiu constatar que a maioria dos entrevistados vivenciou e/ou observou práticas de preconceito por amigos, conhecidos e até mesmo entre os parentes próximos, após confiar a essas pessoas o diagnóstico de hanseníase. Entre essas práticas, estavam as seguintes: as pessoas afastavam-se, ficavam “diferentes” e não exibiam “a mesma amizade”, evitavam o contato físico, lançavam olhares dúbios e comentários ofensivos. Para eles, tais práticas foram estimuladas sobretudo pela carência de informações sobre a doença, principalmente no que concerne ao contágio. Estudos recentes realizados por Leite et al. (2015), Marinho et al. (2014) e Cid et al. (2012) também confirmaram diferentes situações de preconceito vivenciadas por pessoas acometidas pela enfermidade.

A despeito de todo o conhecimento que se tem atualmente acerca das formas de transmissão, tratamento e cura da hanseníase, os relatos demonstraram fenômenos de adesão a crenças. Moscovici (2009, p. 21) afirma que os preconceitos

[...] não têm muito a ver com as percepções e os conhecimentos de si ou dos outros, que não se trata absolutamente de informações do conhecimento que nós temos, mas de fatores de crença, até mesmo de memória coletiva[...].

Junto aos significados hegemônicos que organizam a construção do objeto “hanseníase” no pensamento social, segundo um processo de objetivação (MOSCOVICI, 2012), constitui-se um núcleo figurativo cuja imagem revela um doente poluído, desfigurado e mutilado. Esse núcleo figurativo ajuda a construir a representação de uma doença grave, perigosa e altamente contagiosa, contribuindo, assim, para o fortalecimento da distância entre os “doentes” e os “sadios”.

Ao se interessar pelo debate acerca da antiguidade e permanência de certos temas circulantes no cotidiano das relações sociais, Moscovici (2009) apresenta thematas emblemáticos que auxiliam na compreensão da relação assimétrica entre uma maioria discriminante e uma minoria discriminada, o que, no caso dos adolescentes com hanseníase, como no caso de outras minorias, justifica as práticas da maioria.

Destaca-se o themata do puro e do impuro (o limpo e o sujo), “que define a minoria como uma anomalia no seio da maioria” (MOSCOVICI, 2009, p. 27). Cabe relembrar que os doentes de hanseníase eram considerados pecadores e impuros, confinados em instituições de isolamento. Mesmo que não se evoque mais o castigo divino, o carma, e ante a abolição da internação compulsória, a pureza e a impureza continuam a se exprimir por imagens em sua representação social.

Constata-se que os hansenianos continuam a ser portadores de um estigma, aproximando-os da marginalidade social, vistos com desqualificação e descrédito, provocadores de medo e representantes de uma ameaça, gerando comportamentos de rejeição e separação infligidos pela maioria à minoria, presentes em uma mesma comunidade, impedindo a aproximação na vida cotidiana (como descrevem, em outros casos, Jodelet (2005) e Moscovici (2009). Dessa forma, a prática de institucionalização dos doentes de hanseníase no passado parece ser recriada no presente pela produção de paredes simbólicas que mantêm os rituais de separação e exclusão.

Como previsto pela Teoria das Representações Sociais, a permanência de temas e crenças sobre a hanseníase, amplamente difundidos em diferentes contextos e temporalidades, contribui para fazer do estranho um processo familiar (MOSCOVICI, 2012). Parece justificar-se a afirmação de Moscovici (2009) de que o preconceito designa uma crença que não é submetida à reflexão, ou seja, não se trata de uma irracionalidade cognitiva, mas de uma irracionalidade de crença ou do senso comum, e acrescenta que “se existe preconceito, é porque toda ação, todo julgamento novo recebe antes um sentido antigo” (MOSCOVICI, 2009, p. 29).

As práticas preconceituosas de familiares, amigos e conhecidos impostas a alguns adolescentes com hanseníase prejudicaram-nos substancialmente, influenciando-os na percepção de sua doença, causando-lhes alterações no cotidiano, como a tendência a se isolar do convívio social. Pode-se dizer, então, que para esses adolescentes, “olhar para fora” - “sair de casa” - tornou-se uma ameaça ao ego e à identidade. O resultado disso é a interação limitada ou inexistente entre eles e a sociedade em geral (ASAMPONG et al., 2018).

Todavia, alguns participantes relataram que parentes e amigos não adotaram práticas preconceituosas quando comunicados do diagnóstico de hanseníase, em razão de já terem tido histórico da doença na família e de saberem que a enfermidade era passível de cura.

A composição do grupo pesquisado permitiu colocar em evidência duas posições ao se relacionar com o adolescente com hanseníase: de um lado, encontram-se os que adotaram uma atitude protetora e acolhedora, em uma tentativa de não estabelecer nenhuma diferença social ou interpessoal, preservando a qualidade da relação; de outro, encontram-se os que tiveram tendência a categorizar, afastar e controlar uma ameaça que se infiltrava - a contaminação.

As diferentes tomadas de posição individuais reforçam a interpretação de que as pessoas não são apenas “consumidoras” do imaginário social e das representações sociais, mas, sobretudo, são agentes que os colocam em movimento e que os recriam segundo sua inserção nas esferas social, histórica e cultural, evidenciando a participação ativa e a autonomia como sujeitos da representação (JOVCHELOVITCH, 2000). Essa perspectiva permite discutir a possibilidade de ressignificação ou de transformação das representações e práticas sociais, especialmente no que se refere à esfera do preconceito.

8 Considerações Finais

Tomando como campo de investigação as representações sociais acerca da vivência/convivência com a hanseníase para adolescentes com a doença e seus familiares, bem como as repercussões da enfermidade na vida desses sujeitos, os resultados indicaram alterações no cotidiano, medos e preconceito após o diagnóstico da doença.

No que concerne às repercussões psicossociais da hanseníase na vida dos entrevistados, a análise revelou mudanças na rotina diária em razão do comparecimento regular ao serviço de saúde, da obrigatoriedade rotineira e dos efeitos colaterais da medicação, das dores físicas e dos sinais da doença, do medo do contágio e do preconceito.

O sentimento de medo destacou-se no contexto discursivo grupal - em especial, o medo da contaminação - e mostrou-se como importante orientador das práticas de separação dos utensílios domésticos e afastamento do doente dentro do seu ambiente domiciliar. Os resultados evidenciaram, ainda, que o medo do preconceito resultou no compartilhamento apenas com os mais próximos ou em manter como um “segredo” de família o diagnóstico de hanseníase, além da tentativa de alguns adolescentes em encobrir as “marcas” no corpo que a evidenciavam, a fim de evitar a estigmatização no contexto das relações interpessoais e intergrupais, interferindo sobremaneira na sua participação social.

Também integraram o cotidiano de alguns entrevistados o afastamento, a discriminação e as mudanças de comportamento de parentes e amigos após tornarem públicos o diagnóstico e o tratamento da hanseníase, o que fez emergir uma gama complexa de sentimentos com conotação negativa. Nesse contexto, vale ressaltar que a atitude preconceituosa para com os adolescentes pareceu não se restringir apenas à falta de informação sobre a enfermidade, mas também se mostrou carregada de símbolos, imagens e crenças associadas à conjuntura da doença no passado - “lepra”, aproximando-se de uma enfermidade grave, mutilante e altamente contagiosa.

Nesse sentido, o processo de construção das representações sociais dos adolescentes e de seus familiares sobre a vivência/convivência com a hanseníase se mostrou influenciável não só pela experiência vivida, mas também como resultado das interações sociais nos diversos contextos - família, escola, igreja, bem como por meio da interlocução social mediada pelos veículos de comunicação.

Portanto, ante as representações e os impactos causados no cotidiano dos adolescentes com hanseníase e dos seus familiares, faz-se necessário estabelecer encontros dialógicos e ampliar os cenários diversos de informação sobre a doença, no intuito de possibilitar a reflexão e a ressignificação de representações hegemônicas acerca desta. Além disso, as políticas e ações em saúde devem incorporar um eixo estratégico visando à investigação do imaginário das pessoas que vivem/convivem com a hanseníase, no sentido de aproximarem-se de suas demandas subjetivas, a fim de transformar o presente e produzir um futuro diferente para os doentes, assim como para os seus familiares, libertando-os das pesadas cargas que ainda acompanham essa enfermidade, colaborações que esperamos oferecer por meio do presente estudo.

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