On-line version ISSN 1982-0194
Acta paul. enferm. vol.30 no.2 São Paulo Mar./Apr. 2017
http://dx.doi.org/10.1590/1982-0194201700022
As crianças e os adolescentes com o Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) apresentam demandas específicas de sua condição sorológica, fazem uso contínuo de medicamentos para sobreviver, requerem demanda de educação em saúde para a família ou o responsável pelo cuidado cotidiano, entre outras justificativas de sua necessidade especial de saúde. Portanto, precisam de acompanhamento permanente nos serviços de saúde, para prevenção do adoecimento e manutenção da saúde,(1) o qual ocorre, predominantemente, no serviço especializado em HIV. Entretanto, há necessidade de articulação deste serviço com a Atenção Primária à Saúde (APS),(2) sendo que ações bem sucedidas no manejo da infecção nos serviços de APS de algumas cidades brasileiras foram reconhecidos como possibilidades o processo de descentralização e gestão compartilhada.(1,3)
A APS indica um desenho de mudança clínico-assistencial, orientado por atributos. Estes são definidos como um conjunto indissociável de elementos estruturantes do sistema de serviços de saúde. Os atributos essenciais são: atenção ao primeiro contato, longitudinalidade, coordenação e integralidade; e os atributos derivados: orientação familiar e comunitária.(3)Dos atributos da APS, o presente estudo se concentra na longitudinalidade, conceituada como a existência de uma fonte de atenção regular, capaz de identificar a população eletiva que deveria ser atendida no serviço, além de estabelecer o vínculo entre usuários e profissionais.(3,4)
Justifica-se a necessidade de avaliar a longitudinalidade da APS para qualificar o acompanhamento de saúde. Para tanto, ações como o tratamento, a avaliação das necessidades de saúde, o processo de transferência entre os serviços, a diminuição de internações hospitalares e a satisfação dos usuários com a atenção recebida, contribuirá para a promoção da saúde e prevenção de agravos, tendo em vista a relação da longitudinalidade na implantação de melhorias estruturais e processuais para a qualificação da atenção.(5)
O presente estudo objetivou avaliar a presença do atributo longitudinalidade da Atenção Primária à Saúde, na experiência de profissionais dos municípios de procedência de crianças e adolescentes com HIV, acompanhados em serviço especializado.
Tratou-se de uma pesquisa com abordagem quantitativa de delineamento transversal, realizado com médicos, enfermeiros e odontólogos no período de março a agosto de 2014, em 25 municípios do Rio Grande do Sul (RS). Estes municípios foram elencados por terem sido referenciados como de procedência das crianças e adolescentes com HIV, que faziam acompanhamento permanente no serviço ambulatorial de infectologia pediátrica do Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM/RS/Brasil) em 2013.
As Secretarias Municipais de Saúde foram contatadas por meio de ligações telefônicas e via postal, para autorizar e acessar os endereços das UBS e ESF. Apenas um município não aceitou participar da pesquisa. Utilizou-se como critérios de inclusão: médico (clínico geral, pediatra e ginecologista), enfermeiro e odontólogo que atuassem nos serviços de APS dos 25 municípios, abrangendo os tipos de serviços: Unidade Básica de Saúde (UBS) e Estratégia de Saúde da Família (ESF). Como critério de exclusão: férias, afastamento ou licença no período da coleta de dados. Foi utilizada população total de profissionais da saúde dos referidos municípios, sem realização de cálculo amostral. Da população elegível, 554 profissionais, houve 12 recusas e 15 não foram encontrados (após três tentativas), totalizando 27 perdas (4,9%). A população pesquisada foi de 527 profissionais. Os profissionais foram acessados nos serviços de saúde em que atuavam, durante o turno de trabalho, quando foram convidados a responder o instrumento e assinar o TCLE. Os auxiliares de pesquisa (quatro mestrandas e cinco bolsistas de iniciação científica do curso de enfermagem), previamente capacitados pela coordenadora da pesquisa, viajaram até os municípios, utilizando recursos de projetos contemplados em editais de fomento à pesquisa. A supervisão da etapa de campo foi desenvolvida em encontros semanais do grupo de pesquisa, para discutir as facilidades e as dificuldades.
Para a coleta de dados, utilizou-se um instrumento de caracterização dos profissionais com variáveis sociodemográficas (sexo, idade); variáveis de formação (tempo de formado, pós-graduação); e variáveis de situação ocupacional (unidade de trabalho, vínculo, tempo de serviço, turno de trabalho, outro emprego, função neste serviço). Com intuito de avaliar o atributo longitudinalidade, foi aplicada a versão profissionais do Primary Care Assessment Tool (PCATool),(6,7) validado no Brasil.(8) O PCATool-Brasil mensura a presença e a extensão de cada atributo da APS por meio da média aritmética dos itens. Em escala Likert, as respostas variaram em valores de 1 a 4, sendo “com certeza sim” (valor=4), “provavelmente sim” (valor=3), “provavelmente não” (valor=2), “com certeza não” (valor=1) e “não sei / não lembro” (valor=9). Para aplicação do instrumento, os profissionais foram orientados a respondê-lo com foco na atenção à saúde de crianças e/ou adolescentes com HIV (mesmo desconhecendo o diagnóstico de infecção dos usuários). Os auxiliares de pesquisa aplicaram presencialmente o instrumento, com tempo médio de preenchimento de 40 minutos. Em caso de dúvidas dos participantes, os auxiliares seguiram as instruções que constavam no manual do PCATool, que indica a formulação dos itens exatamente como estão escritos e, caso não haja entendimento, que o item seja repetido pausadamente, utilizando os parênteses (orientação ao entrevistador ou, algumas vezes, trazem exemplos ilustrativos do caráter do item) para explicar seu sentido.(8)
A análise foi realizada no Statistical Analysis System versão 9.3, após a dupla digitação independente, utilizando o programa Epi-info®, versão 7.00. Para avaliação dos escores, utilizaram-se: valores de escore maior ou igual a 6,6 (alto escore) e menor que 6,6 (baixo escore), segundo o manual do instrumento. Os valores, que originalmente variam em escala de 1 a 4, foram transformados em escala contínua de 0 a 10.
A análise de confiabilidade se deu por meio do Alfa de Cronbach (valores >0,70 foram considerados indicadores de consistência). A distribuição de normalidade das variáveis foi avaliada pelo Teste Kolmogorov-Smirnov. As variáveis categóricas (características sociodemográficas, de formação, de situação ocupacional e os itens que compõem o atributo longitudinalidade) foram apresentadas em frequência absoluta e relativa, e as variáveis contínuas (atributo essencial longitudinalidade), em média, desvio padrão quando apresentaram distribuição simétrica e em mediana e intervalo interquartil quando assimétricas.
Para comparação das proporções dos escores dicotomizados do atributo entre perfil sociodemográfico, de formação e situação ocupacional dos profissionais segundo tipo de serviço, foi utilizado o Teste Qui-Quadrado de Pearson. Para as análises estatísticas, foi adotado o nível de significância de 5%. Para verificação das variáveis que se mostraram associadas ao alto escore, utilizou-se a Regressão de Poisson com variância robusta. Estimaram-se as razões de prevalência (RP) e seus respectivos intervalos de confiança (IC 95%). As variáveis independentes associadas ao alto escore com p valor <0,25 foram incluídas na análise bruta e ajustada.
Entre as limitações deste estudo, o instrumento utilizado não abrange peculiaridades específicas da população com HIV. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFSM sobre o CAAE: 12223312.3.0000.5346. Respeitaram-se os preceitos éticos, dispostos na Resolução nº. 466/2012, e os profissionais assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Dentre os 527 profissionais de saúde entrevistados, 420 (80%) tinham menos de 30 anos de idade, 245 (46%) eram médicos, 167 (32%), enfermeiros e 115 (22%), odontólogos. Quanto à unidade de trabalho, 270 (51%) refeririam UBS e 257 (49%), a ESF.
Na avaliação do atributo longitudinalidade obteve-se alto escore de orientação para a APS (média 6,96; desvio padrão 1,31; mediana 6,92; mínimo 3,08; máximo 10; alfa de Cronbach 0,727).
Na tabela 1 estão apresentadas as características sociodemográficas, de formação e de situação ocupacional dos profissionais da APS de acordo com a avaliação de alto e baixo escore do atributo de longitudinalidade.
Tabela 1 Perfil sociodemográfico, de formação e de situação ocupacional de acordo com a avaliação de alto e baixo escore do atributo longitudinalidade pelos profissionais de saúde (n=527)
Variáveis | Categorias | Alto escore (≥6,6) | Baixo escore (<6,6) | p-value* |
---|---|---|---|---|
n(%) | n(%) | |||
Sociodemográficas | ||||
Idade | <30 anos | 269(51,04) | 151(28,65) | 0,01 |
>30 anos | 54(10,25) | 53(10,06) | ||
Sexo | Feminino | 213(40,42) | 126(23,91) | 0,33 |
Masculino | 110(20,87) | 78(14,80) | ||
Situação conjugal (n=526) | Casado | 212(40,30) | 130(24,71) | 0,65 |
Solteiro | 83(15,78) | 52(9,89) | ||
Outro | 27(5,13) | 22(4,18) | ||
De formação | ||||
Formação | Clínico Geral | 121(22,96) | 53(10,06) | 0,03 |
Ginecologista | 23(4,36) | 15(2,85) | ||
Pediatra | 23(4,36) | 10(1,90) | ||
Enfermeiro | 95(18,03) | 72(13,66) | ||
Odontólogo | 61(11,57) | 54(10,25) | ||
Tempo formado (n=526) | <15 anos | 169(32,13) | 105(19,96) | 0,89 |
>15 anos | 154(29,28) | 98(18,63) | ||
PG | Não possui | 83(15,75) | 55(10,44) | 0,81 |
Residência | 68(12,90) | 36(6,83) | ||
Especialização | 161(30,55) | 105(19,92) | ||
Mestrado | 11(2,09) | 8(1,52) | ||
Conclusão da PG (n=390) | <6 anos | 129(33,08) | 76(19,49) | 0,48 |
>6 anos | 110(28,21) | 75(19,23) | ||
Formação complementar | Sim | 276(52,37) | 169(32,07) | 0,42 |
Não | 47(8,92) | 35(6,64) | ||
Vínculo serviço (n=526) | Celetista | 93(17,68) | 43(8,17) | 0,06 |
Estatutário | 223(42,40) | 153(29,09) | ||
Terceirizado | 6(1,14) | 8(1,52) | ||
Tempo de serviço (n=526) | <3anos | 154(29,28) | 113(21,48) | 0,09 |
>3anos | 168(31,94) | 91 (17,30) | ||
Cargo no serviço (n=526) | Sim | 52(9,89) | 38(7,22) | 0,46 |
Não | 270(51,33) | 166(31,56) | ||
Qual cargo (n=87) | Responsável Técnico | 13(14,77) | 14(15,91) | 0,17 |
Coordenador | 38(43,18) | 19(21,59) | ||
Responsável ACS | 1(1,14) | 2(2,27) | ||
Possuir outro emprego | Sim | 168(31,88) | 107(20,30) | 0,92 |
Não | 155(29,41) | 97(18,41) |
*Teste do Qui-Quadrado de Pearson
Na tabela 2, são apresentados os itens que compõem o atributo longitudinalidade, que englobam questões voltadas para investigar o vínculo interpessoal entre usuários e sua fonte de atenção, dicotomizado em alto e baixo escore na avaliação pelos profissionais de saúde, segundo o tipo de serviço.
Tabela 2 Itens do atributo longitudinalidade dicotomizado em alto e baixo escore (n=527)
Variáveis | Unidade Básica de Saúde (n=270) | p-value* | Estratégia Saúde da Família (n=257) | p-value* | ||
---|---|---|---|---|---|---|
Alto Escore (≥6,6) | Baixo Escore (<6,6) | Alto Escore (≥6,6) | Baixo Escore (<6,6) | |||
n(%) | n(%) | n(%) | n(%) | |||
Atendimento pelo mesmo médico/enfermeira | ||||||
Alto escore | 52(19,26) | 32(11,85) | 0,447 | 108(42,02) | 6(21,79) | 0,463 |
Baixo escore | 16(39,26) | 80(29,63) | 57(22,18) | 36(14,01) | ||
Entendimento das perguntas que seus pacientes lhe fazem | ||||||
Alto escore | 138(51,11) | 94(34,81) | 0,426 | 132(51,36) | 72(28,02) | 0,741 |
Baixo escore | 20(7,41) | 18(6,67) | 33(12,84) | 20(7,78) | ||
Entendimento dos pacientes do quê você diz ou pergunta a eles | ||||||
Alto escore | 78(28,89) | 48(17,78) | 0,290 | 68(26,46) | 40(15,56) | 0,724 |
Baixo escore | 80(29,63) | 64(23,70) | 97(37,74) | 52(20,23) | ||
Pacientes podem telefonar e falar com médico ou enfermeira que os conhece melhor | ||||||
Alto escore | 118(43,70) | 76(28,15) | 0,219 | 70(27,24) | 36(14,01) | 0,607 |
Baixo escore | 40(14,81) | 36(13,33) | 95(36,96) | 56(21,79) | ||
Tempo suficiente aos pacientes para discutirem seus problemas ou preocupações | ||||||
Alto escore | 119(44,07) | 76(28,15) | 0,177 | 122(47,47) | 57(22,18) | 0,045 |
Baixo escore | 39(14,44) | 36(13,33) | 43(16,73) | 35(13,62) | ||
Pacientes se sentem confortáveis ao lhe contar suas preocupações ou problemas | ||||||
Alto escore | 91(33,70) | 58(21,48) | 0,344 | 70(27,24) | 36(14,01) | 0,607 |
Baixo escore | 67(24,81) | 54(20,00) | 95(36,96) | 56(21,79) | ||
Conhece “muito bem” os pacientes de seu serviço de saúde | ||||||
Alto escore | 68(25,19) | 47(17,41) | 0,860 | 68(26,46) | 44(17,12) | 0,305 |
Baixo escore | 90(33,33) | 65(24,07) | 97(37,74) | 48(18,68) | ||
Sabe quem mora com cada um de seus pacientes | ||||||
Alto escore | 11(4,07) | 9(3,33) | 0,740 | 22(8,56) | 14(5,45) | 0,676 |
Baixo escore | 147(54,44) | 103(38,15) | 143(55,64) | 78(30,35) | ||
Entende quais problemas são os mais importantes para os pacientes | ||||||
Alto escore | 79(29,26) | 51(18,89) | 0,469 | 79(30,74) | 39(15,18) | 0,397 |
Baixo escore | 79(29,26) | 61(22,59) | 86(33,46) | 53(20,62) | ||
Conhece o histórico médico completo de cada paciente | ||||||
Alto escore | 31(11,48) | 30(11,11) | 0,165 | 20(7,78) | 12(4,67) | 0,830 |
Baixo escore | 127(47,04) | 82(30,37) | 145(56,42) | 80(31,13) | ||
Sabe qual o trabalho ou emprego de cada paciente | ||||||
Alto escore | 24(8,89) | 13(4,81) | 0,399 | 13(5,06) | 9(3,50) | 0,601 |
Baixo escore | 134(49,63) | 99(36,67) | 152(59,14) | 83(32,30) | ||
Saberia sobre pacientes com dificuldades para obter ou pagar por medicamentos | ||||||
Alto escore | 68(25,19) | 44(16,30) | 0,537 | 64(24,90) | 26(10,12) | 0,089 |
Baixo escore | 90(33,33) | 68(25,19) | 101(39,30) | 66(25,68) | ||
Sabe todos os medicamentos que pacientes estão tomando | ||||||
Alto escore | 49(18,15) | 38(14,07) | 0,613 | 44(17,12) | 18(7,00) | 0,202 |
Baixo escore | 109(40,37) | 74(27,41) | 121(47,08) | 74(28,79) | ||
Escore longitudinalidade | 158(58,52) | 112(41,48) | 0,005 | 165(64,20) | 92(35,80) | <0,0001 |
*Teste do Qui-Quadrado de Pearson
Na tabela 3, a Regressão de Poisson bruta e ajustada mostra a associação das variáveis independentes ao alto escore da APS, na atenção à saúde de crianças e adolescentes com HIV, na experiência dos profissionais de saúde.
Tabela 3 Regressão de Poisson bruta e ajustada às variáveis independentes que se mostraram associadas ao alto escore na APS na atenção à saúde de crianças e adolescentes com HIV (n=527)
Variáveis | RPb* | IC95%† | p-value | RPa‡ | IC95%† | p-value |
---|---|---|---|---|---|---|
Mín - Máx | Mín - Máx | |||||
Idade | ||||||
<30 anos | 1,099 | 1,025 -1,177 | 0,008 | 1,084 | 1,008-1,167 | 0,030 |
>30 anos | ref. | ref. | ||||
Formação | ||||||
Clínico Geral | 1,138 | 1,003-1,291 | 0,045 | 1,106 | 0,972-1,258 | 0,127 |
Enfermeiro | 1,144 | 1,008-1,298 | 0,038 | 1,102 | 0,968-1,254 | 0,142 |
Odontólogo | 1,148 | 1,008-1,307 | 0,038 | 1,113 | 0,976-1,269 | 0,110 |
Ginecologista | 1,127 | 0,967-1,313 | 0,125 | 1,119 | 0,962-1,302 | 0,145 |
Pediatra | ref. | ref. | ||||
Vínculo com o serviço | ||||||
Estatutário | 1,124 | 0,935-1,352 | 0,212 | 1,114 | 0,921-1,348 | 0,265 |
Celetista | 1,153 | 0,955-1,391 | 0,138 | 1,105 | 0,912-1,339 | 0,308 |
Terceirizado | ref. | ref. | ||||
Tempo de serviço | ||||||
<3anos | 1,048 | 0,996-1,104 | 0,072 | 1,030 | 0,973-1,091 | 0,309 |
>3anos | ref. | ref. | ||||
Cargo | ||||||
Coordenador | 1,237 | 0,823-1,858 | 0,306 | - | - | - |
Responsável Técnico | 1,278 | 0,846-1,930 | 0,244 | - | - | - |
Responsável ACS | ref. | ref. |
*RPb - Regressão de Poisson bruta; IC 95% - intervalo de confiança de 95%; ‡RPa - Regressão de Poisson ajustada por: Idade, Formação, Vínculo com o Serviço e Tempo de Serviço; ref. - valor de referência
Na avaliação, o atributo longitudinalidade da APS para as crianças e adolescentes com HIV obteve alto escore (6,96). Isto indica que os profissionais consideravam obter a continuidade da atenção a essa população com uma relação interpessoal com os usuários. Este atributo também apresentou alto escore em outros estudos, que, embora não abordassem especificadamente a população com HIV, obtiveram resultados semelhantes sob a ótica de profissionais da saúde,(9,10) dos cuidadores de crianças(11,12) e dos adultos.(13)
No entanto, outros estudos divergem deste resultado na experiência dos cuidadores(14) e dos profissionais,(15) o que pode estar associado às falhas na dimensão da continuidade informacional que deveria fazer parte da longitudinalidade nos serviços de APS brasileiros. Esta dimensão permite a conexão de informações entre diferentes profissionais para condução do caso, tanto na relação clínica, quanto no conhecimento sobre preferências, valores e contexto do indivíduo, para assegurar atendimento.(4)
A completude deste atributo é essencial na atenção de crianças e adolescentes, principalmente, no contexto de uma condição crônica como a infecção pelo HIV, que implica em uso cotidiano de medicamentos, e que se soma às características de pauperização da epidemia. Assim sendo, os profissionais da APS, por manterem uma relação ao longo do tempo com os usuários, tornam-se fonte regular de atenção.(16) O contato constante dos profissionais com os usuários pressupõe a manutenção de vínculos duradouros, o que resulta em confiança e no conhecimento da realidade em que vivem. Para, a partir disso, produzir ações resolutivas, reduzindo a necessidade de utilização de serviços especializados para demandas de saúde que possam ser resolvidas na APS.(17)
Quanto às características sociodemográficas dos profissionais, houve associação da idade menor ou igual a 30 anos ao alto escore do atributo longitudinalidade. Este resultado pode estar associado a que os profissionais mais jovens estão sendo formados com uma visão ampliada da atenção à saúde justificada pela mudança curricular nos cursos de graduação. A formação em saúde tem enfatizado a capacitação profissional para atender as demandas da APS. Nesse sentido, programas do Ministério da Saúde e da Educação têm contribuído para reorientar a formação em saúde, capacitando os futuros profissionais para ações junto ao SUS.(18) Convergente com esse resultado, profissionais de saúde de Porto Alegre/RS com média de idade de 43 anos avaliaram o atributo negativamente.(10)
Referente à formação profissional, ser clínico geral esteve associado ao alto escore do atributo longitudinalidade. É possível inferir que o médico clínico geral acredite na existência de uma relação interpessoal com os seus usuários. Esta relação é implícita devido ao acompanhamento contínuo realizado ao longo do tempo frente aos múltiplos episódios de doença e ao desenvolvimento de promoção da saúde, sendo caracterizada por responsabilidade por parte do profissional de saúde e confiança por parte do usuário.(4)
Em contraponto a isso, apesar de não ter sido observado na presente pesquisa, um estudo apontou que equipes de APS com formação em pós-graduação, como a residência, apresentaram maior escore para o atributo longitudinalidade.(12)
Quanto aos itens que compõem o atributo longitudinalidade dicotomizado em alto e baixo escore, segundo o tipo de serviço, houve associação estaticamente significativa ao alto escore nos serviços de ESF no que se refere ao “Tempo suficiente aos pacientes para discutirem seus problemas ou preocupações”.
Destaca-se que alguns aspectos da relação interpessoal entre profissional e usuário favorecem a longitudinalidade na medida em que propiciam o vínculo,(16) a familiaridade,(19,20) a confiança,(20) respeito,(21)e a comunicação a partir de uma abordagem integral.(19)Quando há o fortalecimento dessa relação, há, portanto, maior engajamento visando promover a saúde, permitindo um espaço de escuta e esclarecimento de dúvidas.(11)
Em relação ao tempo de atendimento, grande parte dos profissionais acreditava oferecer tempo suficiente para conversar sobre problemas e preocupações acerca das crianças e adolescentes com HIV em seus serviços de saúde. Essa tendência está relacionada ao tempo adequado na consulta, à atenção disponibilizada, à comunicação eficaz e aos laços de confiança estabelecidos, sendo fortalecida por meio do comprometimento dos profissionais com a situação de saúde do indivíduo.(17) Nesse sentido, a preocupação dos profissionais em resolver os problemas em seu território possibilita o reconhecimento do serviço de saúde como a fonte habitual de atenção, o que favorece a continuidade e o atendimento individualizado.(22)
Em geral, a ESF obteve melhor avaliação relacionada ao atributo longitudinalidade quando comparada à UBS. Essa diferença a favor da ESF também foi evidenciada em estudos no Estado do Rio Grande do Sul(23) e Paraná.(9) Este resultado sugere que os profissionais destas equipes de ESF percebem maior vinculação dos usuários aos serviços, sendo capazes de reconhecer sua população adscrita.(9) Entretanto, estudo aponta quanto à rotatividade dos profissionais atuantes na ESF de municípios do RS sendo prejudicial para o desempenho do atributo longitudinalidade e da efetividade das ações desenvolvidas. Frente a isso, há a necessidade de promover mudanças em relação aos vínculos trabalhistas, às condições de trabalho e à formação de trabalhadores, em vistas à constituição de vinculo às unidades de saúde para o desempenho da atenção à saúde contínua aos usuários.(24)
O ineditismo da aplicação deste instrumento a essa população sugere a necessidade de avaliações similares que auxiliem no aprimoramento da atenção à saúde e de políticas públicas. Entretanto, salienta-se que a generalização dos dados deve ser feita com cautela, uma vez que o instrumento não é específico à população com HIV.
Conclui-se que os resultados da avaliação do atributo longitudinalidade da APS, na experiência dos profissionais, apontaram que os itens foram satisfatórios à atenção à criança e ao adolescente com HIV. O acompanhamento pelo mesmo profissional utilizando-se da continuidade informacional produz ações resolutivas, reduzindo a necessidade de utilização de atendimento especializado. Embora o atendimento longitudinal esteja na prática profissional, somente será possível se for prioridade da organização local da saúde, pois envolve, além de oferta adequada de saúde ao usuário, a fixação profissional no serviço de saúde. Cabe à equipe de profissionais e gestores atribuir prioridades na implementação de ações às necessidades de crianças e adolescentes com HIV. O serviço de APS e o especializado devem se articular, mantendo a APS como fonte de referência. Por fim, como implicações práticas, indica-se a necessidade da construção e validação de um instrumento específico para as crianças e adolescentes com HIV.