versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.41 no.4 São Paulo out./dez. 2019 Epub 18-Fev-2019
http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2018-0177
Desde sua identificação em 1989 por Choo et al.,1 o vírus da hepatite C (HCV) vem gerando preocupação na comunidade científica, pelo desenvolvimento de doença hepática tanto aguda como crônica, elevando de forma significativa o risco de cirrose e carcinoma hepatocelular. Dados epidemiológicos apontam que cerca de 170 milhões de pessoas são portadoras de infecção crônica por HCV (2-4). Independentemente do país de origem, a prevalência da hepatite C é maior em pacientes em hemodiálise (HD).5-7 A prevalência em diferentes regiões geográficas pode variar muito, desde 4% na Inglaterra até mais de 70% em regiões como Kwait e Cuba.7 De acordo com dados do último censo da SBN de 2017, a prevalência no Brasil é de 3,3%, cerca de três vezes maior do que é observado na população geral brasileira,8,9 embora um estudo que avaliou especificamente a epidemiologia e genotipagem do vírus C em pacientes dialíticos no Brasil tenha mostrado prevalência ainda maior, de 8,4%.10 Mesmo sendo elevados, esses percentuais estão bem abaixo da prevalência de 15,4% detectada nessa população há 16 anos.11 Ainda de acordo com dados norte-americanos, disponíveis no site do Center of Disease Control (CDC), mais da metade dos surtos de hepatite C de 2008 a 2015 ocorreu em ambientes de HD,12 lembrando que o risco de infecção pelo HCV aumenta à medida que o paciente permanece mais tempo em HD.6
Diferentemente da hepatite B, ainda não foi possível o desenvolvimento de vacina para hepatite C.4 O desafio é ainda maior para muitos nefrologistas pela dificuldade no diagnóstico da infecção crônica pelo vírus C nos pacientes em diálise devido à menor sensibilidade dos testes diagnósticos nessa população de pacientes.7 Foram feitos progressos significativos na última década, que culminaram em uma melhora notável no tratamento da infecção pelo HCV. Níveis acima de 90% de resposta virológica sustentada (RVS) foram atingidos, inclusive na população portadora de doença renal crônica.13,14 Hoje existe uma real perspectiva de eliminar a hepatite C nos próximos 15 a 20 anos, porém, apesar de estarmos vivenciando uma nova era em relação a essa doença, é necessário melhor conhecimento sobre o número e as características de pacientes infectados para programar estratégias para sua erradicação.3
Sendo assim, a Sociedade Brasileira de Nefrologia e a Sociedade Brasileira de Hepatologia propõem neste artigo um guia de orientação para rastreamento do HCV, adoção de medidas preventivas dentro das Unidades de Diálise (UD) e abordagem terapêutica dos pacientes dialíticos em nosso país.
O HCV é um RNA vírus que possui 6 genótipos e múltiplos subtipos (Figura 1). A prevalência de cada genótipo varia de acordo com a região geográfica, sendo que os genótipos 1a e 1b são os mais prevalentes nos Estados Unidos e na Europa, seguidos dos genótipos 2 e 3; enquanto que no Egito o genótipo tipo 4 é o preponderante; na África do Sul, o genótipo 5; e no Sudeste Asiático, o genótipo 6.15 No Brasil, predominam os genótipos 1, 2 e 3.16
Após a clonagem do genoma do HCV, as diversas proteínas virais foram determinadas, e regiões antigênicas e epítopos foram identificados. Proteínas recombinantes e peptídeos sintéticos, contendo esses epítopos dominantes, foram utilizados no desenvolvimento dos imunoensaios, que permitem a detecção da imunoglobulina IgG anti-HCV. Os ensaios imunoenzimáticos (EIA) de 3ª geração, atualmente utilizados, determinam uma especificidade de até 99% e redução no período de janela imunológica em aproximadamente 5 semanas comparados a ensaios de 1ª geração.17
Os ensaios por RIBA (recombinant immunoblot assay) surgiram como alternativas mais específicas para detecção do anti-HCV do que os imunoensaios, baseando-se em peptídeos recombinantes de regiões antigênicas específicas. Não são, entretanto, utilizados na prática clínica rotineira, posto que, assim como os ensaios por ELISA, não permitem a diferenciação entre infecção ativa e resolvida, e seu custo é elevado.
Mesmo se forem feitos testes de 3ª geração, os imunoensaios podem apresentar resultados falsos negativos em pacientes imunocomprometidos e em HD.17 A detecção do ácido nucleico do HCV (HCV-RNA) segue como padrão ouro no diagnóstico de infecção ativa. Apesar da excelente sensibilidade e especificidade, é um exame mais dispendioso e nem sempre disponível.
A detecção do HCV-RNA por teste de ácido nucleico (NAT), pelo método de reação cadeia polimerase (PCR) ou amplificação mediada por transcrição (TMA), pode detectar rapidamente a infecção pelo HCV, aproximadamente 1 semana após a exposição, em comparação a 10 semanas dos EIA de 3ª geração. Todos os testes baseados em NAT aprovados para uso clínico têm especificidade acima de 99% para os 6 genótipos e níveis de detecção de carga viral a partir de 12 UI/mL e 10 UI/mL para PCR e TMA, respectivamente. Estudos realizados para comprovar o fenômeno de viremia intermitente que ocorre nos pacientes em hemodiálise demostraram a importância da avaliação diagnóstica em mais de uma determinação, por meio de métodos moleculares nos pacientes inicialmente considerados não virêmicos.18 Durante as sessões de hemodiálise, o nível sérico do HCV-RNA pode reduzir significativamente; portanto, a coleta da amostra de sangue deve sempre ser realizada pré-diálise.19,20
O screening para hepatite C deve ser realizado em todos os pacientes que iniciam o programa dialítico ou são transferidos de outros centros, inicialmente com imunoensaio, e se positivo, confirmados por NAT. Porém, em países com elevada prevalência de hepatite C, pode ser considerada a realização de métodos para detecção do HCV-RNA como exame inicial.21,22 Nas Figuras 2 e 3, estão demonstradas sugestões de conduta na avaliação inicial e seguimento sorológico dos pacientes admitidos e em programa de HD.
O diagnóstico da hepatite C em pacientes com doença renal crônica (DRC) é dificultado devido a algumas razões, tais como: presença de quadro clínico inespecífico, sendo em muitas ocasiões assintomático; níveis normais ou discretamente aumentados (muitas vezes flutuantes) da enzima alanina aminotransferase (ALT) em praticamente metade dos pacientes com infecção pelo HCV; presença de sorologia eventualmente falso-negativa; além da baixa viremia observada nestes pacientes.23 Os níveis de ALT devem ser verificados na admissão na unidade de diálise e depois mensalmente. Pacientes infectados recentemente podem ter níveis de ALT elevados previamente à soroconversão, o que justifica a monitorização dos níveis para detecção precoce de novas infecções.19 Pacientes com alteração não justificada de ALT, mesmo que elevações discretas, devem ser investigados para hepatite B e C. A validade ou utilidade da dosagem mensal da ALT em pacientes com infecção crônica pela hepatite C resolvida é desconhecida e não há recomendações específicas para este subgrupo.21,22
Tem-se demonstrado que pacientes dialíticos podem ter níveis de aminotransferases menores que indivíduos com função renal normal, porém as razões para explicar esse fato seguem incertas. As principais hipóteses para essa redução vão desde a presença de hemodiluição (o que alteraria a dosagem das enzimas hepáticas) ou em virtude de níveis reduzidos de piridoxina ou elevados de homocisteína.24,25 Por outro lado, pacientes em HD infectados pelo HCV têm níveis de aminotransferases mais elevados que os não infectados. Um estudo realizado para avaliar o valor preditivo da dosagem de ALT para detecção da infecção pelo HCV em pacientes em HD mostrou acurácia inadequada do teste, apesar de amplamente utilizado mundialmente, com sensibilidade e especificidade para novas infecção de 83% e 90%, respectivamente.26 Mudanças no valor de cut-off podem auxiliar na melhora da acurácia, mas o valor adequado ainda não foi definido, variando na literatura de sugestões desde 45% a 70% do limite superior da normalidade.20,26 Sugere-se que o valor de ALT encontrado em paciente em hemodiálise seja acrescido de 50% do seu valor basal, no sentido de melhorar o desempenho diagnóstico da enzima.27
Alguns fatores podem reduzir a produção de anticorpos contra antígenos de superfície do HCV, como o efeito imunossupressor da uremia crônica, altas concentrações de citocinas pró-inflamatórias e presença de diabetes, o que pode explicar resultados de exames sorológicos falso-negativos, mesmo que essa ocorrência seja rara.28 Outro ponto de preocupação é o fenômeno de viremia intermitente, que tem importância não somente epidemiológica, mas também é um inconveniente no controle de transmissão nosocomial, pois os resultados podem ser mal-interpretados, classificando um paciente com infecção ativa como não virêmico.18,20,29,30 O uso de testes moleculares com baixos níveis de detecção deve ser sempre recomendado.
Atualmente, o Ministério da Saúde recomenda que todo paciente que inicia HD seja submetido de forma rotineira à análise mensal da ALT e análise do perfil sorológico por meio da realização do anti-HCV ao iniciar o tratamento dialítico, e a partir daí semestralmente. No ano de 2018, o Kidney Disease Improving Global Outcomes (KDIGO) publicou as recomendações referentes ao manejo do HCV em pacientes com DRC em diálise: todos os pacientes não infectados pelo HCV, com anti-HCV negativo, devem ser monitorados a cada 6 meses em relação ao seu perfil sorológico; enquanto os pacientes anti-HCV positivos com HCV-RNA negativos (infecção resolvida, porém com risco de reinfecção) devem ser monitorados por NAT semestralmente ou sempre que houver elevação da ALT.19 A mesma diretriz aponta que pacientes com anti-HCV positivos devem realizar o NAT também semestralmente, a fim de identificar a presença de viremia.
Apesar de alguns trabalhos demonstrarem benefícios na realização de testes moleculares para detecção precoce da infecção aguda por vírus C em unidade de diálise (UD), essa recomendação torna-se de difícil aplicação em nosso país, levando-se em consideração o elevado custo na realização de testes para detecção do RNA do vírus. Dados disponíveis desde 1999 mostram prevalência menor que 2% de pacientes HCV-RNA positivo com anti-HCV negativo, sendo que estudos mais recentes mostram índices de falso-negativos ainda mais baixos, entre 0,1 a 0,86%, confirmando que o imunoensaio é um método confiável para ser utilizado como rastreio.7,23 No caso de resultado positivo do anti-HCV, a realização NAT está sempre indicada. Recomenda-se que pacientes com anti-HCV positivo e RNA-HCV negativo façam necessariamente screening (ou acompanhamento na UD) por meio do NAT.31
A infecção aguda por HCV deve ser reportada à Vigilância Epidemiológica local. São considerados casos agudos aqueles com sorologia anti-HCV ou HCV-RNA negativos, e exame sorológico positivo subsequentemente. Uma elevação discreta de ALT muitas vezes é o primeiro sinal de uma infecção aguda, e deve ser valorizada. Um novo caso em uma unidade de diálise deve imediatamente desencadear ações para identificar casos adicionais, com reavaliação sorológica de todos não infectados. A frequência de screening nessa unidade também deve ser alterada por tempo determinado. Uma sugestão seria reduzir o tempo de realização do anti-HCV em todos os susceptíveis para mensal por 3 meses ou NAT nos pacientes do mesmo turno de diálise e que inicialmente mostrassem elevação de transaminase de 50% em relação a seus valores basais. Se não houver nenhuma soroconversão, fazer novo teste em 3 meses. Não havendo nenhum caso novo identificado, retorna-se à rotina da UD de sorologia semestral.18,23
O HCV é transmitido por via parenteral por meio da exposição percutânea ao sangue contaminado. Políticas rígidas de rastreio nos doadores de sangue e ampla utilização de estimuladores da eritropoiese reduziram a incidência relacionada à transfusão de sangue, e hoje a principal via de transmissão é nosocomial.22 Segundo dados do Center of Disease Control, mais de 50% dos surtos de hepatite C nos Estados Unidos entre 2008 e 2015 foram relacionados à UD.12
Estudos publicados no início dos anos 2000 demonstraram quedas significativas na incidência de transmissão horizontal de infecção por HCV por meio somente da adoção de medidas universais, em muitas clínicas europeias que não realizavam o isolamento do paciente portador de hepatite C.8,12,22 Jadoul et al. demonstraram em um estudo a possibilidade de evitar completamente a transmissão do vírus C dentro das unidades de diálise pela adoção das medidas de precaução universal, atingindo após 54 meses de acompanhamento uma incidência nula de aparecimento de novos casos de contaminação por soroconversão.8,32,33
Atualmente, a transmissão nosocomial é a principal fonte de transmissão do vírus C, e diversos estudos dedicam-se a encontrar as razões da transmissão nas unidades de diálise.34 Várias são as hipóteses e, apesar de não ser possível excluir as relacionadas aos equipamentos de diálise e reuso, a maioria dos dados aponta para quebras de protocolo de controle de infecção, como preparo de medicação em local contaminado, reuso de medicação para múltiplos pacientes, desinfecção inadequada de superfície e falha na troca de luvas entre os pacientes. Lavagem de mãos inadequada, tempo de troca de turno curto e número reduzido de técnicos por paciente também aumentam o risco de transmissão.22,35 Além disso, estudos demonstram que surtos de soroconversão ocorreram em pacientes que dividiam o mesmo ambiente e não necessariamente a mesma máquina de hemodiálise, enfatizando a possibilidade de transmissão pelos profissionais de saúde.28
Quanto maior o número de anos do paciente em hemodiálise maior o risco de adquirir a infecção por HCV, levando em conta as múltiplas exposições ao tratamento durante a semana. É importante frisar que, mesmo se não houver sangue visível na superfície, o vírus HCV pode permanecer potencialmente infeccioso em superfície por, no mínimo, 16 horas. Estudos que analisaram a presença de sangue não visível e HCV-RNA em superfícies mostram índices elevados em diversos equipamentos, como máquinas de hemodiálise, conectores, bandejas dos pacientes e pias para lavagem das fístulas.28 Em estudo epidemiológico com mais de 4.000 pacientes de diferentes unidades de diálise nos Estados Unidos, foi demonstrada a correlação direta entre a incidência de hepatite C e os cuidados com o paciente pela equipe de saúde. Após análise, os principais fatores suspeitos como desencadeadores desse episódio foram: limpeza inadequada das caixas com capilares entre os usos, preparo das medicações ou estoque de materiais em áreas onde material contaminado com sangue foi manejado e transporte de medicações injetáveis em carrinho móvel entre os pacientes.33,36 O CDC divulga em seu site diversas listas de checagem de práticas de controle de infecção, todas importantes na redução da transmissão do HCV37 (Figura 4).
Figura 4 Medidas de precaução universais para segurança em diálise Fonte: Centers for Disease Control and Prevention. Control, C.f.D. and prevention, dialysis safety: audit tools, protocols and checklists, 2013.
A baixa aderência às medidas de precaução universais é uma constante nas UDs em todo o mundo. Um estudo espanhol multicêntrico com 9 Unidades de Diálise mostrou que, em 93% das oportunidades, são utilizadas luvas, porém somente 36% da equipe higieniza as mãos após o contato com o paciente e 14% antes do contato. Não foram observadas diferenças na aderência às medidas de higiene entre os funcionários das salas "brancas" e salas de isolamento.38 Dados semelhantes são encontrados em outros estudos observacionais de diferentes localidades e culturas.39,40
O isolamento de paciente com infecção pelo HCV surgiu como extensão das medidas adotadas para o isolamento dos pacientes infectados pelo HBV, o que, considerando as características das duas doenças, não tem fundamento clínico. As recomendações do KDIGO de 2008 já não preconizam o isolamento do paciente com suspeita de infecção pelo HCV. A aderência estrita às medidas de controle de infecção na UD é a mais indicada como medida de prevenção de contaminação de outros pacientes.19,41 Outros protocolos, como o da United Kingdom Renal Association e o do European Renal Best Practice, também não recomendam o isolamento como medida preventiva.42,43
Uma recente revisão sistemática do Cochrane44 mostrou que a qualidade de evidência a favor ou contra o isolamento é muito ruim. Dos 123 textos avaliados, somente 1 estudo clínico randomizado controlado (Randomized Constrolled Trial - RCT) foi encontrado,45 e mesmo nesse estudo o nível de evidência foi considerado baixo. No único RCT de Shamshiraz et al., que incluía 593 pacientes, não houve diferença na redução da incidência de infecção por HCV com o uso de máquinas exclusivas, porém há detalhes na metodologia não descritos neste estudo que limitam sua utilização como fonte conclusiva da ineficácia do isolamento. Outras publicações adotam diferentes estratégias de isolamento que foram implementadas e poderiam ser utilizadas combinadas ou separadamente, como exclusividade de máquinas, salas, equipe e turnos. Alguns deles mostram benefícios com o isolamento dos pacientes, entretanto todos são estudos observacionais e com qualidade de evidência inadequada. Na maior parte deles, o desenho do estudo se baseia na intervenção do isolamento comparado a seus próprios controles históricos, o que gera um viés sobre o real motivo da redução da incidência, se está relacionado diretamente à estratégia ou ao efeito indireto do aumento da vigilância.19,44
A estratégia de otimizar e reforçar os cuidados universais parece bastante eficaz em controlar a infecção pelo HCV, portanto é a sugestão de muitos especialistas na área como medida primordial, sendo o isolamento necessário quando essas práticas são falhas. Estudos observacionais mostram que o isolamento não protegeu contra a infecção pelo HCV, e nas últimas diretrizes do CDC essa atitude não é recomendada.12 Os argumentos favoráveis a não realizar o isolamento incluem o fato de a medida não ser protetora para outras infecções e criar, com a segregação, um ambiente falsamente protegido contra a transmissão parenteral; a separação de pacientes portadores do HBV e do HCV pode criar problemas logísticos nas UDs, com necessidade de 4 salas distintas (HBV+ HCV+, HBV+ HVC-, HBV- HCV+, HBV- HCV-); o isolamento pode predispor à reinfecção por um segundo genótipo de vírus C; o período de incubação do HCV é longo, e portanto muitos pacientes em janela imunológica seriam locados como não infectados; por último, a criação de salas separadas aumenta os custos da diálise, setor que já é subfinanciado e segue com dificuldades financeiras nos últimos anos.19
O uso de máquinas isoladas também não se mostra eficaz, já que, conforme vários estudos com análise filogenética, o maior risco de adquirir HCV ocorre nos pacientes que dialisam próximos ao paciente infectado, e não na mesma máquina, ressaltando a importância dos cuidados de higiene entre as trocas de turno, pois o mecanismo de transmissão pelos equipamentos de hemodiálise single pass tornam remota, senão teórica, a possibilidade de transmissão do vírus por caminhos internos, já que não é possível sua passagem por meio da membrana intacta do dialisador. Sendo assim, a ausência ou falha na desinfecção da superfície das máquinas, poltronas e outros equipamentos de uso comum entre os pacientes são fatores frequentemente identificados nas análises de surtos de HCV nas UDs.7,19,46
No Brasil, por determinação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), não há indicação de máquina dedicada ou isolamento para o paciente soropositivo para HCV em programa de hemodiálise crônica, podendo este permanecer no mesmo ambiente dos soronegativos. Desde 2014, todo o material utilizado no tratamento deve ser utilizado uma única vez e descartado; ademais, preconiza-se nas UDs desinfecção e limpeza de superfícies interturnos, além de medidas de precaução geral.47
Até recentemente, as possibilidades de tratamento, tanto para pacientes em hemodiálise quanto para transplantados renais, eram limitadas; pacientes dialíticos apresentavam muitas vezes baixa tolerância aos esquemas com interferon (IFN) e ribavirina (RBV), sobretudo devido à anemia, enquanto que em transplantados renais o emprego de IFN associava-se à possibilidade de rejeição do enxerto.48,49
Com o advento das novas drogas antivirais de ação direta (DAAs) e dos esquemas livres de IFN, abriu-se uma nova perspectiva para pacientes com doença renal crônica, permitindo o alcance de índices elevados de resposta virológica sustentada (RVS), ou seja, de cura, com muito poucos eventos adversos e menos interações medicamentosas.50 Ao considerar o uso dos DAAs em esquemas livres de interferon, deve-se avaliar primeiramente o grau de disfunção renal do paciente, pois nem todas as drogas têm evidências de segurança de uso em pacientes com disfunção renal avançada e em hemodiálise.
As recomendações são baseadas na taxa de filtração glomerular (TFG), que pode ser medida ou estimada. Caso seja a taxa de filtração glomerular estimada (TFGe), a sugestão é utilizar a fórmula Chronic Kidney Disease Epidemiology Collaboration (CKD-EPI) para o cálculo.19 Pacientes com DRC em tratamento conservador e com TFG superior a 30 mL/min podem ser tratados com qualquer uma das drogas que são incorporadas aos esquemas de tratamento da hepatite C no nosso país: sofosbuvir, simeprevir, daclatasvir, ledipasvir, a combinação ombitasvir/veruprevir/dasabuvir (3D) e a combinação grazoprevir/elbasvir, nas doses habituais preconizadas para cada genótipo, de mesma forma que pacientes sem disfunção renal.
Entretanto, pacientes com TFG inferior a 30 mL/min têm restrição ao uso de sofosbuvir, uma droga de eliminação renal. Até o momento, existe limitação quanto ao uso, conforme indicação de bula, quando o TFG for inferior a 30 mL/min,51 devido ao acentuado acúmulo de um metabólito (GS-3310007), cujo potencial de toxicidade ainda não está completamente esclarecido. Novos estudos avaliarão o seu emprego em disfunções renais mais acentuadas, identificando a melhor dose a ser utilizada e o eventual intervalo entre as doses, de modo que até o momento o uso de sofosbuvir em pacientes com TFG < 30 mL/min deve ser feito com cautela, sobretudo em pacientes pré-dialíticos. Nos casos em que houver opção pelo uso do sofosbuvir, parece mais adequado utilizar a droga em dose plena (400 mg/dia), associada a outro antiviral (simeprevir, daclatasvir ou ledipasvir, de acordo com o genótipo), já que a meia dose ou dose cheia em dias alternados pode ser insuficiente para o tratamento. Para pacientes com genótipo 3, a opção é sofosbuvir associado a daclatasvir, por 12 semanas para não cirróticos, e por 24 semanas para cirróticos.
Felizmente, há outras opções bastante seguras para pacientes com genótipo 1 em diálise. Já existem estudos mostrando a segurança do uso da combinação 3D na doença renal crônica estágio 5 em diálise.52 O tratamento por 12 semanas alcançou RVS de 90% em 20 pacientes que receberam o esquema. O esquema se mostrou seguro, sobretudo nos pacientes com genótipo 1b, que não necessitaram do uso de ribavirina. Em estudos com menor número de pacientes, portadores do genótipo 1a, a droga também se mostrou altamente eficiente, sem a necessidade do emprego da ribavirina.53
Outro esquema bastante seguro, eficaz e bem estudado em pacientes com DRC dialítica é o que associa grazoprevir com elbasvir, por 12 semanas. No estudo com essa combinação, 115/116 pacientes obtiveram RVS, mostrando ser esta uma excelente opção para tratamento de pacientes com genótipo 1.54 Para portadores do genótipo 3, uma vez que não há alternativa de esquema sem o emprego de sofosbuvir, recomenda-se o uso de sofosbuvir associado a daclatasvir, com cuidadoso seguimento dos pacientes, embora já existam dados suficientes de literatura mostrando a segurança no uso dessa medicação.55-57
Uma nova combinação de drogas pangenotípicas está em fase final de incorporação no protocolo de tratamento em nosso país (Glecaprevir/Pribentasvir) e também trará segurança aos pacientes em diálise, com elevadas taxas de resposta.54,58
Os esquemas de tratamento para pacientes em hemodiálise adotados no Brasil podem ser observados nas Tabelas 1, 2 e 3. Em pacientes em diálise, a RBV deve ser utilizada com muita cautela, iniciando-se com dose de 250 mg/semana, aumentada progressivamente conforme tolerância, não devendo ultrapassar, na maior parte dos casos, a dose de 3 comprimidos de 250 mg/semana.
Tabela 1 Tratamento de pacientes em diálise com genótipo 1a
Tempo de tratamento | Tempo de tratamento | Tempo de tratamento | |
---|---|---|---|
Sem cirrose | Com cirrose Child A | Com cirrose Child B/C | |
Elbasvir+Grazoprevir | 12 sem | 12 sem | Esquema não indicado |
Esquema 3D | 12 sem + RBV | 24 sem + RBV | Esquema não indicado |
Glecaprevir+Paritaprevir | 8 sem | 12 sem | Esquema não indicado |
RBV: ribavirina; 3D: ombitasvir/veruprevir/dasabuvir
Tabela 2 Tratamento de pacientes em diálise com genótipo 1b
Tempo de tratamento | Tempo de tratamento | Tempo de tratamento | |
---|---|---|---|
Sem cirrose | Com cirrose Child A | Com cirrose Child B/C | |
Elbasvir+Grazoprevir | 12 sem | 12 sem | Esquema não indicado |
Esquema 3D | 12 sem | 12 sem + RBV | Esquema não indicado |
Glecaprevir+Paritaprevir | 8 sem | 12 sem | Esquema não indicado |
RBV: ribavirina; 3D: ombitasvir/veruprevir/dasabuvir
Tabela 3 Tratamento de pacientes em diálise com genótipos 2 e 3
Tempo de tratamento | Tempo de tratamento | Tempo de tratamento | |
---|---|---|---|
Sem cirrose | Com cirrose Child A | Com cirrose Child B/C | |
Glecaprevir+Paritaprevir | 8 sem | 12 sem | Esquema não indicado |
Seja qual for o esquema de tratamento, o critério de cura é a documentação da negatividade do HCV-RNA 3 meses após o término do tratamento.7,15,55 Apesar da ausência de dados consistentes na literatura, nos parece razoável recomendar que todos os pacientes curados poderiam ser alocados sob as mesmas condições que os soronegativos para hepatite C e prescindir da necessidade de descarte dos dialisadores, embora não haja uma política clara a respeito dessa conduta. O que se pode recomendar é que os pacientes curados que continuam dialisando no mesmo turno que pacientes ainda não tratados deverão realizar o NAT a cada seis meses, para detecção de possível reinfecção.19
A presença do vírus da hepatite C é ainda um problema frequente enfrentado pelos médicos nefrologistas dentro das unidades de diálise em nosso país, que se deparam, no dia a dia, com a interpretação de testes sorológicos e de instituição de medidas que venham a proteger eventuais pacientes sob risco de contaminação pelo HCV. O presente artigo traz um posicionamento da SBN e da SBH quanto a pontos que devem ser debatidos em nossa rotina, tal como a necessidade de estender e viabilizar o diagnóstico de HCV, não somente pela interpretação da sorologia, mas também pela análise do RNA viral, que deve ser disponibilizado em nossa rede de saúde em situações específicas aqui descritas. Além disso, é necessário maior sinergismo entre os nefrologistas e hepatologistas, para que possamos disponibilizar as novas drogas para o tratamento do HCV de pacientes portadores de DRC, em especial aqueles em diálise, levando a cura e modificando radicalmente o desfecho clínico no que diz respeito aos resultados do transplante renal e ao desenvolvimento de doença hepática crônica.