versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.38 no.3 São Paulo jul./set. 2016
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20160053
A anemia é uma complicação frequente em pacientes com doença renal crônica (DRC) e seu impacto na morbidade e mortalidade é bem conhecido nessa população.1-3 A anemia se manifesta desde os estádios iniciais e aumenta sua prevalência com a evolução da DRC.4 Dados da Sociedade Brasileira de Nefrologia em 2012 mostram que a anemia, definida por hemoglobina < 11 g/dL, estava presente em 34% dos pacientes em diálise, apesar do livre acesso a agentes estimulantes de eritropoiese e suplementação de ferro em nosso país.5 A deficiência de eritropoietina é a principal causa da anemia nessa população,1 entretanto, fatores como a deficiência de ferro e a inflamação crônica contribuem de forma importante para sua ocorrência.6
O ferro é um mineral vital para a homeostase celular. Sua deficiência absoluta ou funcional está associada com comprometimento da síntese de hemoglobina, gerando anemia e redução da oxigenação tecidual.7 O ferro utilizado pelo organismo é obtido de duas fontes principais: da dieta e da reciclagem de hemácias senescentes. A homeostase do ferro é regulada por dois mecanismos: um intracelular, de acordo com a quantidade de ferro presente na célula, e o outro sistêmico, no qual a hepcidina tem papel de destaque.8 A descoberta da hepcidina e de seu papel no controle da disponibilização do ferro para os tecidos contribuiu para melhorar a compreensão da fisiopatologia da deficiência de ferro, inclusive na anemia da DRC.9
A hepcidina, um peptídeo cujo gene está localizado no cromossomo 19, é sintetizada e secretada por várias células, sendo os hepatócitos seu principal sítio de produção. Essa proteína tem quatro pontes dissulfídicas entre oito resíduos de cisteína, o que lhe confere uma configuração molecular similar à drosomicina, potente antifúngico presente no inseto Drosophila.10
Inicialmente, é sintetizada uma proteína precursora com 84 aminoácidos (pré-pró-hepcidina), que é clivada formando a pré-hepcidina com 60 aminoácidos, e posteriormente a forma ativa, um peptídeo de 25 aminoácidos.1,11,12 Formas com menor número de aminoácidos são menos abundantes e provavelmente representam produtos de degradação.11
Estima-se que 11% da hepcidina plasmática estejam livres na circulação e o restante circule associado à macroglobulina α2, uma proteína plasmática com alta afinidade pela hepcidina12, e à albumina.13 O nível sérico da hepcidina-25, determinado com uso da técnica de ELISA em voluntários normais, varia de 2 a 56 ng/mL.14 A depuração da hepcidina ocorre através de degradação celular após sua ligação com a ferroportina e por excreção renal.13
Apesar da hepcidina ter sido isolada inicialmente na urina humana em 2001,10 seu papel na homeostase do ferro foi estabelecido em estudos posteriores realizados in vitro e em camundongos.15 A principal ação dessa proteína é controlar o ferro plasmático, em que uma alta expressão de hepcidina diminui o ferro, enquanto sua baixa expressão aumenta a concentração de ferro circulante.
A hepcidina exerce sua função através da sua ligação à ferroportina, uma proteína presente na membrana celular de macrófagos, enterócitos, hepatócitos e sinciciotrofoblastos placentários, impedindo a saída de ferro das células. Após a formação do complexo hepcidina-ferroportina, este é internalizado e posteriormente degradado nos lisossomas.11,16,17 Vale ressaltar que a ferroportina é o único poro por onde ocorre a saída de ferro das células.16 Embora a ferroportina seja um transportador de outros metais como manganês, zinco e cobalto, sua maior afinidade é com o ferro.18,19
A síntese de hepcidina é mediada por processos fisiológicos e patológicos.12 Fisiologicamente, é regulada pela concentração plasmática de ferro, onde na condição de suficiência, o ferro se liga ao receptor de transferrina1, deslocando a proteína da hemocromatose. Este complexo se liga ao receptor de transferrina 2, aumentando a transcrição de hepcidina diretamente ou pela ativação do complexo proteína óssea morfogenética 6-hemojuvelin.
Por outro lado, a síntese da hepcidina pode ser suprimida por sinais endócrinos (testosterona, estrogênio e fatores de crescimento) e pela atividade eritropoiética. Contudo, esse mecanismo ainda não está completamente estabelecido.20 A eritroferrone, hormônio produzido pelos eritroblastos em resposta à eritropoetina, identificado recentemente, parece ser o mediador da supressão da hepcidina durante a eritropoiese.21
Em condições patológicas, tais como deficiência de ferro e hipóxia, ocorre a redução da síntese hepática de hepcidina. Já a presença de infecção, inflamação12 e atividade física22 induzem o aumento da síntese hepática de hepcidina mediada pela interleucina 6. Elevadas concentrações de hepcidina têm sido descritas em associação com elevados níveis de marcadores inflamatórios (como interleucina 6 e proteína C reativa), de anemia (como hemoglobina e eritropoetina endógena) e de parâmetros de ferro (como ferritina) que neste último caso pode refletir a inibição da saída de ferro dos estoques.23
Em estudos realizados em camundongos, observou-se que na ausência da expressão do gene da hepcidina os animais desenvolviam um quadro semelhante à hemocromatose nos humanos,24 enquanto a excessiva produção desta proteína acarretava anemia por diminuição da disponibilização de ferro para eritrogênese.25
Vale ressaltar que a hepcidina é produzida por vários tipos de células além do hepatócito, tais como macrófagos,26 adipócitos,27 cardiomiócitos28 e células renais (principalmente túbulo distal),29 tendo, além do efeito sobre o metabolismo de ferro, efeitos autócrinos nesses tecidos.12
Estudos in vitro sugerem um efeito antimicrobiano da hepcidina.10 Este efeito, entretanto, requer concentrações muito mais elevadas que aquelas encontradas na circulação sanguínea, mesmo em vigência de infecção.10 Isto sugere que essas altas concentrações parecem ser atingidas localmente em fagossomas de macrófagos infectados.30 A capacidade da hepcidina em causar ferropenia, ou seja, diminuição do ferro extracelular, também teria efeito protetor sobre o hospedeiro, já que baixos níveis de ferro parecem ser bacteriostáticos12 e que algumas espécies de bactérias têm o ferro como importante fator para aumento de virulência.31
De fato, alguns estudos têm demonstrado que o aumento da hepcidina pode promover elevação do crescimento intracelular de alguns patógenos específicos, entre eles destacam-se a Salmonella, Chlamydia psittaci e Legionella pneumophila,(32) justamente por aumentar a concentração de ferro no interior de células infectadas.
Mais recentemente, a expressão da hepcidina foi identificada em várias barreiras epiteliais,33,34 que frequentemente confrontam patógenos, incluindo células do túbulo renal.29 Um estudo experimental com camundongos demonstrou que a diminuição da expressão de hepcidina esteve envolvida na diminuição da resistência da barreira epitelial à infecção por E. coli. Nesse estudo os autores sugerem a possibilidade de novas estratégias terapêuticas com hepcidina para aumentar a defesa do hospedeiro ou prevenir respostas inflamatórias não-adaptativos que levam a lesão renal em uma variedade de condições infecciosas e não infecciosas.35
Por outro, lado nível elevado de hepcidina tem sido considerado um fator de risco independente de aterosclerose em diferentes populações,36,37 incluindo pacientes em hemodiálise.9,36 Alguns estudos demonstraram o acúmulo de ferro nas células endoteliais e macrófagos da placa de ateroma.38 Além disso, estudos recentes têm demonstrado associação positiva entre a concentração de hepcidina e a espessura média intimal,36 assim como com a velocidade de onda pulso em pacientes em hemodiálise.39
Concentração sérica elevada da hepicidina têm sido associada a maiores níveis de pressão arterial sistólica em indivíduos saudáveis do sexo masculino.40 O papel da hepcidina na doença isquêmica não está totalmente esclarecido, mas tem sido sugerida uma associação da elevação de sua concentração à resistência à insulina,41 inflamação36 e aumento do estresse oxidativo.42
Como o rim é responsável pela excreção de hepcidina, muitos estudos têm demonstrado a elevação da concentração desta proteína entre pacientes portadores de DRC, principalmente em estádios mais avançados e em tratamento dialítico.12,14,20,43 Coyne43 descreve uma correlação inversa entre a taxa de filtração glomerular e a concentração plasmática de hepcidina nos pacientes com DRC não dialíticos. Alguns autores, entretanto, não observaram essa associação.44 Diferentes métodos de mensuração da hepcidina, estudos com amostras pequenas e características distintas das populações estudadas são os fatores citados para explicar essas diferenças.45
Em pacientes submetidos à hemodiálise observa-se elevação das concentrações de hepcidina.14,46,47. De fato, Ashby et al.14 descreveram que a mediana da forma ativa da hepcidina foi de 26,5 e 58,5 ng/mL, em pacientes com DRC e sob hemodiálise, respectivamente. Zaritsky et al.,46 utilizando também método de ELISA, evidenciaram uma mediana ainda mais elevada, de 270 ng/mL em pacientes com DRC e 652 ng/mL em pacientes em tratamento dialítico.47
O aumento da concentração de hepcidina na DRC tem sido atribuído não só à diminuição de excreção renal, mas também por aumento de sua síntese em resposta à presença de inflamação,9 sendo a hepcidina o elo entre inflamação e os distúrbios do metabolismo de ferro nessa população.3
Inicialmente, a determinação dos níveis séricos e urinários de hepcidina era realizada pela detecção de RNAm em animais de laboratório e em culturas de células, sendo apenas raramente realizada em humanos devido à dificuldade técnica.15 Após o desenvolvimento do método ELISA, que media a pró-hepcidina e não conseguia distinguir entre suas diferentes isoformas, estudos com dosagem sérica dessa proteína começaram a ser realizados.
Contudo, a relevância desses dados é discutível, já que os níveis de pró-hepcidina não se correlacionam com os níveis de hepcidina-25 sérica e urinária.15,48 Posteriormente, ensaios de ELISA para hepcidina-25 foram disponibilizados comercialmente e, mais recentemente, dois novos ensaios utilizando espectrometria de massa.20,48
Esta última técnica possibilita uma dosagem quantitativa confiável e de boa reprodutividade de hepcidina sérica e urinária, mas ainda tem um alto custo, o que limita sua utilização na prática clínica.48 Existe uma forte correlação entre os ensaios utilizados, no entanto, observamos uma diferença nas concentrações absolutas em diferentes estudos.46,47,49 O motivo destas diferenças ainda não está esclarecido, porém claramente dificulta a comparação direta dos valores de hepcidina entre os estudos, bem como o estabelecimento de níveis séricos como referência.49
Apesar de um pouco mais de uma década desde a primeira publicação sobre a hepcidina, um grande número de pesquisas de terapias encontra-se em desenvolvimento, o que era esperado, considerando o importante papel dessa proteína no metabolismo do ferro e suas várias implicações clínicas.
Alguns estudos tentaram suprimir a expressão da hepcidina modificando diretamente a condição clínica que causou sua elevação. Wang et al.50 utilizaram anti-BMP com o objetivo de reduzir a expressão da hepcidina e aumentar os níveis séricos de ferro em animais de laboratório com colite. Neste estudo observou-se uma redução das citocinas inflamatórias, porém modesta melhora da anemia. Em estudo com pacientes sob hemodiálise, Antunes et al.51 não observaram efeito da pentoxifilina, utilizada como agente anti-inflamatório, sobre os níveis séricos de hepcidina.
A utilização de estabilizadores de HIF (fator induzido por hipóxia) parece reduzir a expressão de hepcidina por uma ação direta, por meio da diminuição de citocinas inflamatórias,52-54 ou do aumento da eritropoiese, proporcionando uma melhoria no perfil de ferro.55 Tendo em vista que este fator estimula a produção de eritropoetina e reestabelece o ritmo fisiológico de sua secreção, estabilizadores de HIF, que são de administração oral, têm sido estudados como uma nova abordagem terapêutica da anemia da inflamação crônica em pacientes com DRC.53,55
Em estudo recente, Brigandi et al.56 evidenciaram melhora da anemia utilizando um inibidor de HIF em pacientes portadores de DRC tanto em tratamento conservador quanto em diálise.
Em recente revisão, Fung e Nemeth57 descreveram várias estratégias que vêm sendo estudadas para diminuir o efeito da elevação da hepcidina. Entre elas, a diminuição da produção de hepcidina através de ações nas vias regulatórias (via relacionada com ferro, inflamação ou via eritropoiética); a neutralização da hepcidina; a interferência na ligação entre hepcidina com ferroportina (prevenindo a sua degradação); e a estimulação da produção de ferroportina.
Apesar dos grandes avanços no conhecimento desta proteína ao longo da última década, ainda serão necessários mais estudos para avaliar o real impacto da modulação da hepcidina no manejo da anemia na DRC.