versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.39 no.3 São Paulo jul./set. 2017
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20170058
Hipocalemia é um problema clínico bastante comum. Situações que diminuam a ingesta, aumentem a translocação de potássio para o intracelular ou aumentem as perdas de potássio na urina, trato gastrointestinal ou suor levam a uma redução do potássio sérico, resultando em hipocalemia e suas manifestações clínicas.1
Depois de confirmada hipocalemia, deve-se realizar a coleta de anamnese com detalhada história clínica e exames laboratoriais devem ser feitos, a fim de identificar a causa, a qual é normalmente evidente na história clínica, com episódios prévios de vômitos, diarreia ou uso de diuréticos. O manejo de um paciente com hipocalemia se inicia com avaliação de força muscular e realização de eletrocardiograma (ECG), devido às consequências cardíacas.2-5
Este artigo apresenta um relato de caso de uma paciente com hipocalemia grave persistente, com investigação laboratorial complementar caracterizada por hipomagnesemia e hipocalciúria, associada à alcalose metabólica e elevação dos hormônios tireoideanos.
Paciente feminina, 41 anos de idade, brasileira, encaminhada ao nefrologista com queixa de fadiga, fraqueza e câimbras musculares. Há 8 meses havia sido internada em uma Unidade de Terapia Intensiva de um hospital terciário, devido queixas previamente mencionadas, associadas a náuseas, vômitos e diarreia e alterações eletrocardiográficas. Após este primeiro episódio, necessitou internamento em mais duas outras ocasiões, pela persistência dos sintomas, porém sem náuseas, vômitos, diarreia ou alterações no ECG.
Análise laboratorial revelou hipocalemia (1,8-2,2 mEq/L) com alcalose metabólica (pH 7,5 / bicarbonato 32,1 mEq/L), associada à hipocalciúria (2,26 mg/24 h), hipomagnesemia (1,6 mg/dL) e cálcio iônico sérico normal (1,17 mmol/L). Os níveis de TSH estavam suprimidos, abaixo de 0,01 µUI/mL, T4 livre maior que 3,23 ng/dl, demonstrando hipertireoidismo. Função renal normal, assim como níveis de paratormônio (50 pg/mL) e albumina (4,3 g/dL).
De história mórbida pregressa, relatava perda de peso, não quantificada, associada à amenorreia e baixos níveis pressóricos. Havia sido submetida à tireoidectomia há 20 anos, devido carcinoma de tireoide. Há 5 anos, apresentou recidiva tumoral, tratada com iodoterapia. Estava em uso de levotiroxina 100 mcg diariamente.
História familiar de neoplasia em dois membros da família, não relacionada a câncer tireoidiano, e seu pai havia apresentado infarto agudo do miocárdio. Ela negava abuso de diuréticos ou laxantes.
Ultrassom de rins e vias urinárias normal. Exame físico evidenciou altura de 1,57 m e peso 38 kg (índice de massa corporal - IMC = 15,4 kg/m2). Não apresentava alterações oculares, frequência cardíaca de 84 batimentos por minuto, ausculta cardíaca e pulmonar sem alterações. Restante de exame segmentar, sem peculiaridades.
Paralisia periódica hipocalêmica tireotóxica (PPHT) incluiu-se nos diagnósticos diferenciais, devido ao quadro de hipertireoidismo associado à hipocalemia grave, sendo reduzida a dose de levotiroxina para 75 mcg ao dia, associada à reposição de potássio e magnésio por via oral. Entretanto, apesar de a paciente evoluir para estado eutireoideo, persistiu com grave hipocalemia, sendo considerado diagnóstico clínico de síndrome de Gitelman (SG).
Novos exames laboratoriais foram realizados, os quais revelaram: creatinina 1,26 mg/dl; magnésio 2,8 meq/L; sódio 130 meq/L; potássio 1,8 meq/L; cloreto urinário 80 mEq/L; cálcio urinário 29,2 mg/24h; magnésio urinário 32,6 mg/24h; sódio urinário 74 mmol/24h; potássio urinário 32 mEq/24h; cloro sérico 73 mmol/L; TSH 4,03 µUI/mL; T4 livre 1,3 ng/dl; gasometria arterial pH 7,46/bicarbonato 40 mEq/L. Além disso, também apresentava hiperaldosteronismo hiperreninêmico, com níveis de aldosterona de 212 ng/dL e atividade de renina de 215 ng/mL.
Devido ao risco elevado de depleção do espaço extracelular na nossa paciente, que já estava apresentando baixos níveis pressóricos (pressão arterial sistólica em torno de 80-90 mmHg), testes com diuréticos não foram realizados. De acordo com a literatura, deve-se realizar testes em pacientes normotensos com suspeita diagnóstica de SG, no qual um teste anormal prevê uma alta sensibilidade e especificidade para a confirmação diagnóstica, sem a necessidade de realizar estudo genético.6 Testes genéticos não foram realizados até o momento, devido ao seu elevado custo.
Paralisia periódica hipocalêmica transitória (PPHT) é uma miopatia metabólica rara caracterizada por fraqueza muscular aguda, associada à hipocalemia, com episódios potencialmente fatais de fraqueza e paralisia muscular, se afetar músculos respiratórios. A causa mais comum de paralisia hipocalêmica é primária ou familiar.
As formas familiares têm substrato genético, penetrância autossômica dominante e os sintomas ocorrem mais precocemente na vida dos pacientes afetados, por defeitos hereditários nos canais iônicos; já as formas esporádicas, estão relacionadas à disfunção dos canais iônicos causados por distúrbios eletrolíticos, como na paciente em questão. Dentre as causas esporádicas citadas na literatura, destacam-se: secundária à tireotoxicose, acidose tubular renal, hiperaldosteronismo primário, síndrome de Gitelman, diarreia ou intoxicação por bário.7
PPHT ocorre predominantemente em homens asiáticos. O hipertireoidismo causa um defeito nos canais iônicos, levando a uma rápida translocação de potássio para o espaço intracelular.7
Os níveis séricos de potássio ficam muito baixos, em 1,5 a 2,5 mEq/L nos ataques agudos, e podem ser precipitados por descanso após exercício físico, refeições ricas em carboidratos ou estresse. No período entre os ataques agudos, os níveis séricos de potássio estão normais, podendo-se diferenciar de outras condições clínicas de paralisia hipocalêmica, caracterizando assim paralisia periódica transitória devido ao hipertireoidismo.
Pacientes com PPHT também apresentam excreção urinária de potássio baixa, outra maneira de contribuir e distinguir de outras causas secundárias e perda renal de potássio.8 Nossa paciente evoluiu para eutireoidismo, persistindo com hipocalemia, logo, o diagnóstico clínico de síndrome de Gitelman foi firmado.
Síndrome de Gitelman (SG) é uma tubulopatia autossômica recessiva com manifestações clínicas similares à síndrome de Bartter (SB). Suas principais características clínicas são: hiperaldosteronismo hiperreninêmico com hipocalemia, hipomagnesemia, cálcio urinário baixo e níveis pressóricos de pressão arterial normais.6,9-12 Em contraste à SB, a SG é caracterizada por maior frequência de achados de hipomagnesemia e excreção urinária de cálcio baixa.10
As principais mutações são no gene SLC12A3, que codifica o cotransportador NaCl sensível a tiazídicos, localizado no túbulo contorcido distal.6,7,11-14
SG é frequentemente assintomática.6 A história natural da doença é variável em termos de idade de início dos sintomas e diagnóstico clínico, assim como fenótipo biológico e manifestações clínicas.12 A maioria dos pacientes com SG são assintomáticos ou queixam-se de episódios leves e intermitentes de câimbras, fadiga, fraqueza muscular ou irritabilidade. Sede, poliúria, espasmo carpopedal, parestesia, palpitações e dores articulares podem também ser relatadas.5,8,12,15
As variações fenotípicas e a ausência de um método diagnóstico padrão ouro tornam o diagnóstico de SG difícil.9,16 Não obstante, mesmo sem um mapeamento genético, clínicos devem ser capazes de realizar o correto diagnóstico clínico, predizer prognóstico, além de realizar corretamente o manejo desta condição.10
Os objetivos do tratamento consistem em aliviar os sintomas dos pacientes, oferecer melhor qualidade de vida e melhora dos níveis de eletrólitos séricos, para garantir estabilidade do ritmo cardíaco. O tratamento é realizado com dieta composta por alto teor de sódio, potássio e magnésio, associada à suplementação oral de potássio e magnésio; por vezes, faz-se necessário utilizar diuréticos poupadores de potássio (se a hipotensão permitir).6,9
Em resumo, nosso relato traz uma paciente com concomitância de PPHT e SG, duas entidades clínicas desencadeadas por hipocalemia.15 Evidências clínicas do caso não mostraram outras manifestações ou alterações laboratoriais, além de tireotoxicose.17 Hipocalemia é reconhecida como a primeira alteração em pacientes com SG, assim como paralisia periódica transitória, sendo que a principal característica que os diferencia é o fato de pacientes com PPHT apresentarem hipocalemia transitória.18
De acordo com revisão na literatura médica, somente outros dois casos descrevem paralisia hipocalêmica transitória secundária a hipertireoidismo, acompanhados de SG. Um caso apresenta um paciente japonês, masculino, de 16 anos13 e, no outro relato de caso, um paciente indiano, masculino, de 35 anos de idade.7 Também encontramos outras duas cartas ao editor, descrevendo quatro relatos de pacientes femininas, asiáticas com diagnóstico concomitante de doença de Graves e SG.18,19 Até o momento, nosso caso é o primeiro a descrever uma paciente brasileira com sintomas concomitantes de hipertireoidismo e SG. Também não foram encontrados relatos na literatura de casos de hipertireoidismo medicamentoso, como no caso da nossa paciente.