versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol., ahead of print Epub 30-Maio-2019
http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2019-0020
A hipocalemia - um dos distúrbios hidroeletrolíticos mais frequentes em pacientes pediátricos - está associada a patologias renais, cardíacas, respiratórias e digestivas, podendo causar distúrbios potencialmente letais como insuficiência respiratória, arritmias cardíacas e parada cardíaca1. Na população pediátrica, as perdas gastrointestinais e urinárias de potássio figuram como as etiologias mais frequentes2, enquanto as causas farmacológicas são raras. Dentre os fármacos relacionados à hipocalemia estão os que aumentam a absorção intracelular de potássio (agentes beta-adrenérgicos, bário e antipsicóticos) e os que elevam as perdas urinárias, principalmente os diuréticos2,4.
O presente artigo descreve o caso de um jovem de 13 anos de idade com histórico com histórico, há três anos, de episódios graves e intermitentes de hipocalemia de etiologia desconhecida. O paciente foi internado em nosso centro pela primeira vez após um episódio súbito de hipocalemia grave sintomática, sendo então diagnosticado com hipocalemia por redistribuição secundária à ingestão de medicamentos β-adrenérgicos, provavelmente associada a transtorno factício.
Um jovem de 13 anos de idade aparentemente saudável chegou ao departamento de emergência com sintomas de palpitação, dor muscular, tremores e cefaleia com duração de três horas. Ele negou ter febre, diarreia, vômitos ou ter ingerido algum agente farmacológico. Ao exame físico, o paciente apresentava um bom estado geral, com altura e peso no percentil 50 para sua idade e sexo. Encontrava-se euvolêmico, pálido e sudoreico. A ausculta cardíaca revelou a presença de taquicardia sem sopro ou atrito pericárdico. O paciente apresentava taquipneia, além de fraqueza nos membros inferiores, e tremores nas mãos. Não havia lesões de pele, hematomas, ou edema.
Os pais do paciente apresentaram vários resultados de exames clínicos e 16 laudos de alta hospitalar de diferentes instituições. Informaram que seus síntomas clínicos iniciaram-se quando o jovem tinha 10 anos de idade. Desde então, ele apresentou pisódios recorrentes de hipocalemia grave que resultaram em frequentes internações hospitalares, uma delas em unidade de terapia intensiva por síndrome do QT longo (SQTL). Muitos diagnósticos foram descartados, tais como paralisia periódica familiar hipocalêmica, por meio de testes genéticos específicos.
O paciente apresentava histórico clínico de episódios de asma alérgica com uso esporádico de terbutalina, gastrite por H. pylori, taquicardia sinusal, correção cirúrgica de estrabismo, apendicectomia, e priapismo de alto fluxo secundário à fístula arteriovenosa, tendo sido esta tratada com embolização arterial seletiva aos seis anos de idade. É importante destacar que a equipe clínica foi informada quanto ao histórico de perda temporária da guarda pela mãe, após detecção inexplicável de benzodiazepínicos no sangue do paciente.
Durante a consulta o menor se comportava como um adulto. Agia como interlocutor nas comunicações com a equipe médica e tecia comentários repletos de terminologia médica, exibindo conhecimentos técnicos incompatíveis com sua idade.
Os exames de sangue na internação exibiram os seguintes resultados: hemoglobina 12,3 g/dL; leucócitos 11,68 × 109/L; sódio 142 mmol/L; potássio 2,4 mmol/L; cloreto 101 mmol/L; ureia 4 mmol/L; creatinina 53 µmol/L; taxa de filtração glomerular (fórmula de Schwartz) 112 mL/min/1,73 m2; glicose 5,6 mmol/L; gradiente transtubular de potássio 4,9; equilíbrio ácido-básico no sangue venoso pH 7,33; e HCO3- 24,5 mmol/L. A urinálise exibiu pH 6,5; sódio 162 mmol/L; potássio 38 mmol/L; ureia 388 mmol/L; creatinina 22,8 mmol/L; osmolalidade urinária de 982 mOsm/kg; e excreção fracionada de potássio de 36,8%. Proteinúria e hematúria não foram observadas. A análise hormonal revelou aldosterona após 30 min de repouso de 0,06 nmol/L e aldosterona urinária de 7,0 nmol/24 h. O ECG revelou taquicardia sinusal com 120 bpm e intervalo QT de 460 ms (máximo de 440 ms). A ultrassonografia renal foi normal, sem evidencias de litíase ou nefrocalcinose.
A estratégia de tratamento consistiu na reposição endovenosa de potássio, com normalização dos níveis plasmáticos normais após 12 horas de infusão parenteral, sem necessidade de suplementação adicional para manter os níveis de potássio no sangue estáveis após a interrupção da infusão parenteral.
Dois dias após a internação, o paciente manteve-se sem suplementação de potássio ou tratamento farmacológico. Encontrava-se assintomático e apresentava níveis de potássio de 4,4 mmol/L no exame de sangue realizado às 8:45 da manhã. Repentinamente, queixou-se de cefaleia intensa, tremor distal e taquicardia. Um segundo exame de sangue foi realizado às 14:15, revelando queda no nível sérico de potássio para 3,4 mmol/L. No decorrer de duas horas, e sem qualquer tratamento específico, os síntomas desapareceram gradualmente, tendo o paciente recebido alta com suplementação oral de potássio.
Dada a combinação de hipocalemia grave transitória recorrente e a resposta rápida ao tratamento de primeira linha, além da presença de sinais clínicos sugestivos de crise adrenérgica, suspeitamos de uma possível sobredose de fármacos agonistas β-adrenérgicos. As duas amostras de sangue colhidas no dia da alta foram analisadas no Laboratório Antidoping da Catalunha. Níveis plasmáticos de salbutamol de 3 ng/mL e 65 ng/mL foram identificados nas amostras de sangue colhidas às 8:45 e 14:15, respectivamente [intervalo de referência para o pico de concentração plasmática após 0,04-0,1 mg dose do inalador = 0,6-1,4 ng/mL3]. Esses achados confirmaram o diagnóstico de dissimulação de abuso de agonistas β-adrenérgicos no contexto de possível transtorno factício.
A hipocalemia é definida como nível plasmático de potássio abaixo de 3,5 mmol/L. O risco de mortalidade eleva-se significativamente quando os níveis plasmáticos de potássio caem para valores inferiores a 2,5 mmol/L4. A hipocalemia está relacionada principalmente a três mecanismos patogênicos: perda extrarrenal de potássio (geralmente pela via gastrointestinal), mais frequente em crianças2; redistribuição do potássio do espaço intracelular; e perda renal de potássio5. Trata-se de um diagnóstico relativamente comum em pacientes pediátricos hospitalizados, especialmente em unidades de terapia intensiva6. A hipocalemia modifica a polarização da membrana celular7 causando várias manifestações clínicas, como fraqueza, hiperreflexia e hipotonia, todas presentes em nosso paciente. Os distúrbios mais graves decorrentes da hipocalemia afetam o sistema cardiovascular2. Schaefer e Wolford relataram achatamento da onda T, surgimento de onda U e SQTL8. No caso relatado, o paciente tinha histórico de SQTL que exigiu internação na UTI.
Em nosso paciente, a perda gastrointestinal e renal de potássio foram facilmente descartadas por anamnese, exames e análise do histórico clínico-laboratorial, enquanto os sinais clínicos associados de tremores, taquicardia, cefaleia e sudorese eram altamente sugestivos de crise adrenérgica. Os sintomas descritos são efeitos colaterais frequentes da sobredose de agonistas β-adrenérgicos em decorrência de dilatação vascular periférica9. Por outro lado, a rápida e sustentada normalização dos níveis séricos de potássio, sem a necessidade de suplementos orais adicionais, também sugeriu efeito de redistribuição, em vez de perda real de potássio. Consequentemente, a hipótese diagnóstica era que nosso paciente sofria de hipocalemia devido a redistribuição secundária ao uso de broncodilatadores simpaticomiméticos. A análise das duas amostras de sangue, obtidas antes e após a crise, confirmou nossa suspeita clínica, embora não tenhamos identificado a dose administrada ou a via de administração. O mecanismo de ação dos estimulantes adrenérgicos como a terbutalina e o salbutamol age pela ativação da adenilato ciclase com consequente elevação do AMP cíclico intracelular, estimulação da bomba NA+/K+-ATPase e facilitação da absorção intracelular de potássio5.
Hoikka et al. revisaram as causas mais frequentes dentre 334 casos de intoxicação envolvendo crianças internadas em um serviço de emergência e identificaram a ingestão oral como a via de administração mais comum, sendo o agonista beta-adrenérgico terbutalina o fármaco causador mais prevalente fármaco causador mais comum (12,3%)10. A dose terapêutica do salbutamol varia de 0,3 a 0,8 mg/kg/dia. Sobredose medicamentosa foi relatada quando a dose excedeu 10-20 vezes este valor de referência11 e foi menos frequente em casos de administração por inalação.
O manejo da hipocalemia depende do nível de potássio e da presença de sintomas. Quando há sinais de distúrbio da condução cardíaca, recomenda-se iniciar reposição endovenosa com 0,5 a 1 mEq/kg (40 a 50 mEq/L) em soro fisiológico a taxa de infusão de 0,3 a 0,5 mEq/kg/h. Em casos de arritmia cardíaca, a dose pode ser aumentada para 0,5-1 mEq/kg/h2. Essa estratégia terapêutica foi utilizada em nosso paciente, que atingiu níveis normais de potássio após 12 horas de tratamento.
No caso relatado, entre as pistas importantes na investigação figuraram a hipocalemia severa não diagnosticada apesar das várias internações hospitalares, a presença de manifestações clínicas recorrentes e algumas vezes graves seguidas por períodos assintomáticos, a naturalidade com que o paciente navegava por conceitos técnicos e terminologia clínica e o histórico de retirada da guarda materna em função dos traços de benzodiazepínicos detectados no sangue do paciente.
A presença de salbutamol no sangue do jovem, apesar da ausência de indicação clínica para sua administração durante a internação hospitalar, além da negação recorrente de uso do medicamento por parte da família e do próprio paciente, sugerem a presença de transtorno factício. A síndrome de Munchausen é caracterizada pela presença de sintomas factícios auto-infligidos, às vezes chegando à autoflagelação física, com o objetivo de induzir o aparecimento dos sintomas desejados. A patologia geralmente tem início na idade adulta e algumas vezes envolve procedimentos diagnósticos invasivos e tratamento farmacológico prolongado12,13,15. No distúrbio psiquiátrico correlato comumente chamado de síndrome de Munchausen por procuração, os sintomas físicos ou psicológicos são infligidos em outra pessoa (geralmente pelos pais em seus filhos) com intenção de logro sem propósito evidente de auferir algum benefício a partir do abuso. Tal patologia é chamada “transtorno factício imposto a outro”16. Não é considerado um transtorno pediátrico, mas sim a manifestação externa de um distúrbio psiquiátrico adulto15,17. No entanto, em adolescentes, cuja autonomia os torna capazes de tomar decisões pessoais e de autoconsciência, o diagnóstico da síndrome de Munchausen por procuração é polêmico. Em nossa opinião, um adolescente - da mesma forma como um adulto - é capaz de manipular a situação e simular uma doença, podendo, assim, ser considerado suspeito de sofrer da síndrome de Munchausen. Como este é um diagnóstico psiquiátrico geralmente aplicado a adultos, atualmente não há diagnóstico adequado para pacientes como o nosso.
Nossa tese é que o paciente em questão tenha manifestado um transtorno factício ou síndrome de Munchausen, embora a confirmação exija a avaliação psiquiátrica do menor e de seus pais. A avaliação não foi realizada em nosso centro, uma vez que o abuso do agonista beta-adrenérgico foi confirmado depois de o paciente ter recebido alta.
Casos de hipocalemia grave secundária ao abuso crônico dissimulado de agonistas β-adrenérgicos em pacientes pediátricos raramente foram relatados na literatura. O manejo clínico deve enfocar a gravidade dos sintomas do paciente. Na presença de manifestações atípicas ou histórico clínico incoerente, a propedêutica diagnóstica deve considerar a possibilidade de um transtorno factício, cuja identificação evitará a realização de exames dispendiosos e invasivos, além de tratamentos desnecessários. Adolescentes, assim como adultos, podem sofrer da síndrome de Munchausen.