versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.40 no.1 São Paulo jan./mar. 2018 Epub 23-Abr-2018
http://dx.doi.org/10.1590/1678-4685-jbn-3767
Pacientes com transplante renal são propensos a infecções oportunistas por causa de imunossupressão. Histoplasma é uma micose sistêmica causada por Histoplasma capsulatum var. capsulatum ou Histoplasma capsulatum var. Durboisii que afeta principalmente os hospedeiros imunocomprometidos. Este último foi identificado na África e na Europa, enquanto que o Histoplasma capsulatum var. capsulatum é endêmico na América do Norte e América Latina1. Esta doença foi raramente diagnosticada no Brasil antes da AIDS (síndrome de imunodeficiência adquirida), mas nos anos 80 e 90 os pacientes com esta síndrome apresentaram diversas formas de histoplasmose, especialmente o tipo disseminado2. Os receptores de transplante renal e os pacientes com neoplasias hematológicas são mais comumente afetados por esta doença2, transmitida através das fezes de aves e morcegos dispersas no solo3.
A histoplasmose pós-transplante é uma ocorrência potencialmente fatal,4 com uma incidência inferior a 0,5%.5-8 O desenvolvimento da doença é dependente do hospedeiro9 e sua apresentação pode ser focal, sistêmica ou disseminada. Existem três rotas de infecção: (a) inalação de aerossóis do solo, contaminados com excrementos de pássaros ou morcegos, (b) reativação endógena e (c) transmissão de tecido infectado do doador.10 A doença grave pode se apresentar como síndrome séptica com hipotensão, coagulação intravascular disseminada, insuficiência renal e dificuldade respiratória aguda. Na maioria dos casos, a morte é a evolução espontânea da forma grave.11-12
Aqui, relatamos o caso de uma paciente com histoplasmose disseminada, atípica e grave.
Uma mulher de sessenta e quatro anos, receptora de transplante renal, procurou o hospital seis anos após o transplante. Ela teve história de febre, hipotensão e astenia com 36 horas de evolução, associadas a perda de peso de sete quilogramas em três meses. O exame físico revelou manchas brancas na boca e uma erupção cutânea nas costas (Figura 1). A paciente apresentou anemia (Hb 8,4 g/dL, Ht 23,0%), leucopenia (2,3 × 109/L), proteína C reativa (10,8 mg/dL) e ferritina (13,253 ng/mL) acima do intervalo normal e disfunção aguda do enxerto (Cr 3.0 > 4.0mg/dL). A função hepática não foi comprometida (albumina 3,7 g/dL, aspartato de aminotransferase 32 U/L, alanina aminotransferase 29 U/L). O seu esquema de imunossupressão à admissão foi prednisona (5 mg/dia) e azatioprina (2 mg/Kg/dia) e o valor basal de creatinina sérica (Cr) foi de 3,0 mg/dL.
No dia da sua admissão, foram realizadas hemoculturas para pesquisa de fungos e micobactérias. A reação em cadeia da polimerase (PCR) para CMV e vírus Epstein barr (EBV), teste de aglutinação de látex para criptococos e sorologia para Histoplasma capsulatum e Trypanosoma cruzi também foram feitas. A partir desse dia, iniciou-se um tratamento empírico com vancomicina, meropenem e ganciclovir com o objetivo de tratar uma possível infecção bacteriana ou uma infecção viral.
A antigenemia de CMV foi negativa, mas a PCR revelou 546 cópias do vírus. Foi tomada uma decisão para realizar uma biópsia da lesão cutânea e cultivar fungos e micobactérias. Para uma investigação mais aprofundada, foram realizados testes de imagem, como uma tomografia computadorizada toraco-abdominal (TC) e um ecocardiograma, que não revelaram qualquer anormalidade. Um mielograma mostrou hiperplasia eritróide e uma endoscopia digestiva alta apresentou esofagite ulcerativa com inclusões intranucleares e algumas lesões esofágicas de candidíase. O fluconazol foi associado ao esquema antimicrobiano e antiviral (vancomicina, meropenem e ganciclovir).
A condição clínica da paciente deteriorou, teve melena e hemorragia mucocutânea com instabilidade hemodinâmica, que evoluiu para coagulação intravascular disseminada (CID). Começamos empiricamente com anfotericina B lipossomal para cobrir a histoplasmose e um tratamento com quatro fármacos para a tuberculose. A paciente não melhorou e tornou-se instável, precisando de ventilação mecânica e suporte vasopressor. Ela teve hepatite aguda devido à hepatotoxicidade da anfotericina B lipossomal e morreu 7 dias após iniciar o tratamento para a histoplasmose.
O diagnóstico de histoplasmose disseminada foi feito após resultados laboratoriais obtidos após o óbito. Histoplasma capsulatum foi encontrado em hemoculturas e sorologia por imunodifusão e imunotransferência dupla (banda H e M). A microbiologia da biópsia cutânea também isolou H. capsulatum.
Certas infecções em receptores de transplante renal podem ter uma apresentação atípica sintomática devido a imunossupressão.13 O quadro clínico da histoplasmose não é específico, uma vez que 50% dos pacientes desenvolvem sintomas respiratórios e 75% histoplasmose disseminada14, caracterizada pelo envolvimento de pelo menos dois órgãos.5 Vinte e cinco a 60% dos pacientes apresentam hepatoesplenomegalia. O choque séptico é freqüente15 e alguns pacientes apresentam uma síndrome caracterizada por hipotensão, insuficiência respiratória, insuficiência renal e hepática e coagulopatia - a síndrome séptica, que ocorre em 10-20% dos pacientes com AIDS16, embora a frequência em pacientes submetidos a transplante renal seja desconhecida. Nossa paciente apresentou uma histoplasmose disseminada (envolvimento cutâneo e hematológico que culminou em choque séptico) sem doença respiratória.
Poderíamos ter tentado integrar as lesões encontradas no esôfago como outro sintoma da doença. As lesões do trato gastrointestinal (GI) na histoplasmose ocorrem predominantemente na região ileocecal, mas o trato GI superior também pode ser envolvido na forma de ulceração orofaríngea. O padrão histológico deve ser um dos seguintes: 1) anormalidades grosseiras visíveis, mas presença de macrófagos infectados na lâmina própria; 2) coleta de macrófagos infectados que se apresentam como pseudopólipos ou placas; 3) ulceração com necrose tecidual; e 4) inflamação localizada levando a formação de estenose.17 Como nenhum desses padrões foi visto em nossa paciente, não consideramos um envolvimento do sistema GI. Além disso, quase todos os medicamentos imunossupressores estão associados a alguns tipos complicações no TGI,18-21 a maioria das quais se enquadra em uma das categorias gerais: infecções (bacterianas, virais, fúngicas ou parasíticas), lesão mucosa e ulceração, doenças do trato biliar, doença diverticular, pancreatite e malignidade.22
Embora a histoplasmose seja uma suspeita clínica rara, ela é altamente importante nesses casos. Um estudo retrospectivo envolvendo 61 pacientes com histoplasmose disseminada relatou uma taxa de mortalidade de 31% em pacientes imunocomprometidos, e 17% em pacientes imunocompetentes.23 O diagnóstico baseia-se na detecção do fungo em fluidos corporais (escarro, sangue, líquido cefalorraquidiano) ou tecidos (histopatologia), por cultura biológica e ensaios sorológicos.24 No nosso caso, evidências foram encontradas no sangue e na pele; não houve crescimento de fungos na medula óssea e não examinamos o sistema respiratório, pois não houve manifestação pulmonar da doença. Os doentes com infecção disseminada grave devem ser tratados inicialmente com anfotericina B, numa dosagem de 0,7 a 1 mg/kg por dia ou uma formulação lipídica de anfotericina B numa dosagem de 3 a 5 mg/kg por dia, devido à sua toxicidade reduzida, durante 12 -18 meses. Infelizmente, a hepatotoxicidade é comum como verificado em nossa paciente.
Existem poucos casos semelhantes a este na literatura e a maioria são com pacientes com HIV. Um caso semelhante foi descrito por Vaidya et al.11, embora seu paciente tenha exibido uma lesão cutânea exuberante e nenhuma evolução hematológica grave.
A histoplasmose disseminada geralmente é severa e fulminante. Nossa paciente não mostrou nenhuma melhora com a terapêutica e manifestou efeitos adversos significativos que levaram a uma mudança de estratégia de tratamento. Os pacientes transplantados são vulneráveis a várias doenças raras que podem ser fatais; a histoplasmose disseminada é uma delas.