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História do planejamento familiar: uma área dos estudos históricos da saúde a ser valorizada

História do planejamento familiar: uma área dos estudos históricos da saúde a ser valorizada

Autores:

Marcos Jungmann Bhering

ARTIGO ORIGINAL

História, Ciências, Saúde-Manguinhos

versão impressa ISSN 0104-5970versão On-line ISSN 1678-4758

Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.23 no.1 Rio de Janeiro jan./mar. 2016

http://dx.doi.org/10.1590/S0104-59702016000100015

O estudo de Raul Necochea López, A history of family planning in twentieth-century Peru, publicado em 2014, fruto de tese de dou-toramento pela Universidade McGill, Canadá, avalia a especificidade do movimento do planejamento familiar no Peru e se insere em recente corrente de estudos sobre o tema em diversas regiões do mundo, dedicada a revisitar essa polêmica questão que, na segunda metade do século XX, mobilizou debates em torno de controle populacional e política demográfica, ingerência de entidades internacionais sobre países em desenvolvimento, direitos reprodutivos, esterilização em massa de mulheres, acesso a métodos contraceptivos, entre outros. A situação privilegiada de distanciamento temporal desses estudos pos- sibilita abordagens que não se restringem a visões reduzidas à ação unilateral de agências internacionais com vistas a frear o crescimento acelerado dos países pobres. Sem menosprezar esse dado, a historiografia recente tem assumido uma orientação que avalia a complexidade das dinâmicas internas dos países, as mediações entre o internacional e o local e a polifo- nia das e dos protagonistas que detiveram papel por vezes contraditório na história do movimento do planejamento familiar – mulheres, pacientes, médicos, educadoras, parteiras, curandeiros, feministas, políticos, membros da Igreja católica, entidades internacionais e o Estado.1

De início, López propõe, com originalidade e consistência, uma reavaliação da teoria da transição demográfica na América Latina a partir da especificidade que o processo assumiu no continente. Sem negar o consenso de que o fenômeno foi tributário, em grande parte, da ação de entidades internacionais e do intenso recurso às tecnologias biomédicas a partir da década de 1960, o autor sugere novos elementos como, por exemplo, que a ação de entidades internacionais na promoção da redução da fertilidade se moldou às concepções locais de família para ser aceita. Sugere ainda que o conhecimento acerca da redução e regulação da fertilidade não se resumiu apenas àquele advindo primariamente dos EUA, mas remonta a tradições e práticas reprodutivas e de contracepção tradicionais, mesmo seculares. Em sua argumentação subjaz a necessidade de se conceber a fertilidade e sua regulação como questões que ultrapassam dimensões puramente estatísticas, biológicas ou biomédicas, devendo incorporar as realidades sociais e culturais dos atores sociais envolvidos.

O primeiro capítulo enfoca o caso do Peru durante o final do século XIX e a primeira metade do século XX, contexto em que se buscou pensar um padrão ideal de família. Padrão esse patriarcal, que conferia aos pais e às mães papéis definidos pela ciência médica. Também sob essa orientação, o autor analisa a trajetória de Irene Silva Santolalla, uma mulher que se dedicou à militância, a partir da década de 1930, pela afirmação do papel social da mulher exclusivamente em sua função doméstica e familiar – na contracorrente de diversos movimentos feministas que pregavam a melhoria dos direitos femininos e ampliação do voto, por exemplo. Tal percepção vinculava-se à noção de “famílias bem constituídas” que se caracterizavam como livres de doenças e vícios, nas quais o pai tinha a função de provedor e a mãe era responsável pelos afazeres domésticos e pelo cuidado dos filhos, situação distinta daquela em que se encontrava a maioria da população peruana.

Um ponto alto do trabalho de López é o terceiro capítulo, que analisa a prática do aborto no Peru, amplamente difundida. Apesar de uma legislação penal que condenava a prática, do início do século XX até o final dos anos 1970 poucos foram os casos efetivamente investigados e menos ainda os que culminaram em processos judiciais. Vários fatores e atores sociais envolvidos foram analisados pelo autor, buscando compreender essa complexidade. Médicos exortados a relatar os casos de aborto induzido raramente o faziam, muitas vezes no intuito de se preservar de eventuais reações, dependendo da origem social dos envolvidos, mas com frequência em solidariedade às mulheres. Por outro lado, as mulheres detiveram papel ativo ao silenciar sobre as causas que levavam ao aborto – muitos deles resultantes de agressões do parceiro. Quando os casos chegavam a julgamento, a dificuldade de coleta de provas, a compaixão dos juízes e o silêncio dos envolvidos faziam com que a maioria dos casos não chegasse a ser condenada.

Também merece destaque o quarto capítulo. Com o crescimento da população das cidades, ocasionado pela imigração das populações rurais indígenas a partir da década de 1930 e impulsionada pela difusão das ideias da medicina preventiva de matriz estadunidense no Peru, a preocupação com o excesso populacional e com a necessidade de limitar os nascimentos ganhou mais aceitação mesmo entre aqueles que inicialmente a rejeitavam. Segundo o autor, a década de 1960 assistiu a uma primeira geração de profissionais de saúde que se aventurou no campo do planejamento familiar, formando-se paralelamente às universidades em instituições privadas ou não governamentais financiadas por entidades internacionais. O Instituto Marcelino, criado em 1968, por exemplo, recebeu recursos de diversas empresas farmacêuticas. Clínicas de planejamento familiar constituíram-se em campo de atuação de profissionais de saúde – médicos, educadores, enfermeiras e parteiras – na área.

O trabalho de López também contribui para a discussão ao conferir maior complexidade à visão que associa a defesa dos nascimentos às sociedades “tradicionais” e o antinatalismo às percepções e práticas de sociedades “modernas”. Segundo o autor, tais posições devem ser reavaliadas à luz das experiências concretas. Ao traçarmos um paralelo com o caso do Brasil, os estudos históricos sobre o planejamento familiar e a regulação da fertilidade, ainda escassos, são frequentemente tributários de conceitos como pró-natalista e controlista, que reduzem a diversidade de percepções e interesses dos distintos atores sociais a posições estáticas e dicotômicas.

REFERÊNCIAS

CONNELLY, Mathew. Fatal misconception: the struggle to control earth population. Cambridge: Harvard University Press. 2008.
HODGES, Sarah. Contraception, colonialism and commerce: birth control in South India, 1920-1940. Aldershot: Ashgate. 2008.
KLAUSEN, Susane. Race, maternity, and the politics of birth control in South Africa, 1910-1939. New York: Palgrave Macmillan. 2004.