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Homicídios dolosos, tráfico de drogas e indicadores sociais em Salvador, Bahia, Brasil

Homicídios dolosos, tráfico de drogas e indicadores sociais em Salvador, Bahia, Brasil

Autores:

Daniel Deivson Alves Portella,
Edna Maria de Araújo,
Nelson Fernandes de Oliveira,
Joselisa Maria Chaves,
Washington de Jesus Santa'anna da Franca Rocha,
Dayse Dantas Oliveira

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.24 no.2 Rio de Janeiro fev. 2019

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018242.32412016

Introdução

A violência representa uma das principais causas de morte na população de 15 a 49 anos de idade. Os jovens do sexo masculino correm mais riscos para homicídio doloso, enquanto as mulheres correm mais riscos para a violência doméstica1. O perfil da violência no Brasil segue a tendência mundial: maior concentração nas Regiões Metropolitanas, mais frequentes nas populações menos favorecidas, maior incidência no sexo masculino, predominantemente, na faixa etária entre 15 e 49 anos2,3.

Os homicídios, em algumas metrópoles podem ser a primeira causa de mortalidade nas idades entre 15 e 34 anos, sendo responsável por grande parte das mortes prematuras ocorridas no país4. Esta especificidade tem posicionado a mortalidade por causas violentas como objeto de preocupação interdisciplinar envolvendo a saúde pública, demografia, sociologia, serviço social, planejamento urbano e regional, direito, segurança pública e a sociedade civil organizada5.

Em especial, a mortalidade por homicídios representa o crescimento da violência, determinada por: desigualdades sociais6,7, contrabando e posse de armas de fogo8, consumo de drogas ilegais e pelo tráfico de drogas devido as disputas e cobranças de dívidas, embasados no próprio código penal instituído pelo tráfico5,8.

No Brasil, o crescimento dos óbitos por homicídios é mais evidenciado nas cidades que possuem maior inserção do tráfico de drogas9,10. Como mostram Kilstajn et al.5 a evolução das taxas de homícidios acompanham o crescimento do tráfico e uso de drogas no município de São Paulo. Essa relação também foi observada na cidade de Belo Horizonte por Beato Filho et al.11.

Em seu estudo Waiselfisz12 mostra que, em 2008, a taxa de homicídio por 100mil/habitantes no Brasil era de 26,4 e, na Bahia, era 32,9. Mas para a população na faixa etária de 15 a 24 anos essa taxa era 52,9 e 70,7, respectivamente. Com isso, o ranking nacional de homicídios naquele ano, colocou a Bahia no 8° lugar entre os Estados e Salvador, em 4° lugar entre as capitais, o que representou o deslocamento de Salvador, em termos da ocorrência de homicídios, do 21° lugar, no ano de 1998, para o 4° lugar, em 2008.

Em relação ao perfil da população jovem vitimada por homicídio na capital baiana, Araújo et al.13 evidenciaram que, em Salvador, no período de 1998 a 2003, os negros tiveram maior perda de anos potenciais de vida, maior número médio de anos não vividos e morreram, em média, em idades mais precoces por homicídios, acidentes de trânsito e demais causas externas.

As características epidemiológicas dos homicídios pode subsidiar órgãos de Segurança Pública nas ações de prevenção ou repressão ao crime, na ação policial e no provimento de informações aos gestores sobre questões relevantes para o enfrentamento dessa problemática14,15.

O objetivo desse estudo foi verificar a associação entre homicídio doloso, tráfico de drogas e indicadores sociais, econômicos e demográficos de Salvador, Bahia, Brasil, no ano de 2010.

Métodos

O desenho de estudo é do tipo ecológico de múltiplos grupos16,17, no qual se utilizou as taxas de homicídios dolosos (variável dependente) e de tráfico de drogas (variável independente principal) registrados pela Polícia Civil da Bahia e informações populacionais e sóciodemográficas fornecidas pelo Instituto Brasileiro de Estatística e Geografia (IBGE) referentes a 2010. O ano de 2010 foi tomado como referência por se tratar do ano de realização do censo demográfico e pela disponibilidade de dados sociais, econômicos e demográficos por bairro, necessários a construção dos indicadores utilizados no estudo.

O lócus de pesquisa foi a cidade de Salvador, capital do Estado da Bahia, constituída por 163 bairros e população de 2.675.656 habitantes. Porém, esse estudo foi realizado em somente 98 bairros, o que representou 79,4% (2.124.471) do total de habitantes18. Os demais bairros não foram incluídos no estudo devido a não notificação de casos de homicídios dolosos e de tráfico de drogas no ano de 2010.

A legislação brasileira caracteriza o homicídio como o ato de matar alguém, informando que quando há a intenção, trata-se de homicídio doloso; quando não, denomina-se homicídio culposo19. Como critério de inclusão se utilizou os casos classificados como homicídios dolosos, segundo local de ocorrência do óbito e registrados pela polícia civil do Estado da Bahia no ano de 2010. Vale salientar, que no banco de dados da polícia, utilizado nesse estudo, não havia registro de mortes por intervenção legal.

Para o cálculo anual dos coeficientes foi considerado o total de casos de homicídios dolosos e a população sob risco. Estes coeficientes foram classificados por ordem decrescente, bem como foi apresentada estatística descritiva dos dez bairros com as maiores e menores coeficientes de mortalidade. Este mesmo tipo de classificação foi adotado para apresentação dos resultados das demais variáveis.

Considerou-se como tráfico de drogas os casos de detenção em flagrante por comércio de drogas ilícitas e/ou em cumprimento de mandado de prisão registrados pela policia civil do Estado da Bahia nos 98 bairros estudados. Definiu-se como drogas ilícitas os produtos capazes de causar dependência especificados em lei, ou relacionados em listas atualizadas periodicamente, pelo Poder Executivo da União.

Os casos de homicídios dolosos e de tráfico de drogas utilizados nesse estudo foram extraídos da base de dados do Sistema de Gerenciamento Estatístico (SGE) da Polícia Civil do Estado da Bahia, o qual é alimentado pelos boletins de ocorrências e também pelas investigações policiais.

As co-variáveis foram: proporção de homens negros de 15 a 49 anos (somatório de pretos e pardos)20, por esta faixa etária e característica fenotípica apresentarem maior risco de ocorrência de morte por homicídio; proporção de domicílios com esgotamento sanitário e índice de pobreza.

O índice de pobreza foi criado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1997 para medir o desenvolvimento humano baseado em três variáveis: morte prematura, porcentagem de pessoas com expectativa de vida inferior a 40 anos; analfabetismo, porcentagem de adultos analfabetos; e padrão de vida abaixo do aceitavél, representado por falta de acesso aos serviços de saúde, água saudável e crianças desnutridas abaixo de 5 anos. Este índice varia de 0 (melhor situação) a 100 (pior situação)21.

A análise estatística para verificação de associação entre o coeficiente de mortalidade por homicídio doloso, tráfico de drogas e as co-variáveis foi realizada utilizando-se o modelo multivariado de regressão binomial negativa, ao se considerar a superdispersão dos dados.

Para assegurar o requisito de linearidade dos preditores, a variável proporção de homens negros de 15 a 49 anos foi modelada através de variáveis dummy e o tráfico de drogas, esgotamento sanitário e índice de pobreza foram categorizadas pelas medianas.

Para verificar a colineridade entre os preditores foi calculado o fator de inflação da variância (vif), com resultados para todos os preditores (valor máximo igual 3,55), bem menores que o ponto de corte, (10) sugerido pela literatura.

Para construção do banco de dados e análise estatística foram utilizados os softwares Microsoft Office Word e Excel 2007 para Windows e o software R 2.13.0. pacote estatístico de domínio público22.

O projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Feira de Santana (CEP-UEFS), o qual obteve aprovação para a sua execução. Não existe conflito de interesse por parte de nenhum dos autores.

Resultados

Em 2010, nos 98 bairros estudados em Salvador foram registrados 1.391 homicídios dolosos, o que representou coeficiente de 108,5 homicídios dolosos por 100mil habitantes. Em média, esse coeficiente foi de 117,8 por bairro, com valor mínimo de 7,9 (Pituba) e máximo de 650,0 (Calçada) (Tabela 1). Entre os dez bairros com os maiores coeficientes de homicídios dolosos se observou média de 340,5 por 100mil habitantes e para os dez bairros com os menores coeficientes essa média foi de 16,1 por 100mil habitantes.

Tabela 1 Coeficientes de homicídios dolosos* em Salvador e nos dez bairros com as maiores e menores taxas em 2010. 

Bairros Total da população** Homicídios dolosos* Coeficiente/100.000
Salvador 1.281.609 1.391 108,5
Maiores coeficientes
Calçada 2.923 19 650,0
Comércio 808 4 495,0
Palestina 3.533 16 452,8
Vale das Pedrinhas 3.164 11 347,6
Valéria 15.572 44 282,5
Pau da Lima 15.225 40 262,7
Fazenda Coutos 14.308 35 244,6
Rio Sena 9.856 23 233,4
Periperi 29.873 66 220,9
Barris 2.781 6 215,7
Menores coeficientes
Pituba 37.641 3 7,9
Costa Azul 12.019 1 8,3
Barreiras 11.022 1 9,0
Capelinha 9.617 1 10,4
Nova Sussuarana 7.374 1 13,5
Itaigara 5.904 1 16,9
Engenho Velho da Federação 5.897 1 17,0
Barra 9.082 2 22,0
Ondina 11.303 3 26,5
Acupe 6.633 2 30,1

*Registros da Polícia Civil do Estado da Bahia.

**População referente ao censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

No tocante às características sociais e demográficas foi observado que a proporção de homens negros de 15 a 49 anos era de 81,4%, apresentando menor proporção no bairro Itaigara (35,3%) e maior em Fazenda Coutos (91,3%). Em média 92,8% dos bairros possuíam esgotamento sanitário, tendo a menor cobertura em Valéria e a maior em Amaralina. O índice médio de pobreza foi de 5,5, variando o menor e maior índice entre Itaigara e Fazenda Coutos, respectivamente (Tabela 2).

Tabela 2 Indicadores sociais, demográficos e tráfico de drogas nos bairros estudados com maiores e menores coeficientes de homicídios dolosos em 2010. 

Bairros Tráfico de drogas* Proporção de homens negros de 15 a 49 anos Proporção de esgotamento sanitário Índice de pobreza
Salvador 766 81,4 92,8 5,5
Maiores coeficientes
Calçada 7 85,4 93,9 7,5
Comércio 4 85,6 97,5 4,7
Palestina 3 85,4 47,8 13,3
Vale das Pedrinhas 7 85,8 95,6 5,2
Valéria 10 84,1 47,0 11,7
Pau da Lima 9 87,0 86,8 7,1
Fazenda Coutos 29 91,3 89,1 14,6
Rio Sena 7 91,2 85,4 10,0
Periperi 47 86,7 92,4 8,3
Barris 1 64,5 99,5 2,0
Menores coeficientes
Pituba 15 44,8 99,5 0,9
Costa Azul 11 57,4 99,3 1,6
Barreiras 2 87,6 95,8 3,6
Capelinha 2 87,5 93,9 7,1
Nova Sussuarana 1 90,0 89,0 10,5
Itaigara 3 35,3 99,9 0,4
Engenho Velho da Federação 2 83,8 99,7 4,9
Barra 12 49,1 99,7 1,3
Ondina 1 55,5 99,0 1,8
Acupe 1 73,9 99,5 3,2

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

*Registros da Policia Civil do Estado da Bahia.

Nos 65 bairros que não fizeram parte do estudo, foi observada proporção média de 77,5% de homens negros de 15 a 49 anos, com valor minímo de 38,5% (Caminho das Árvores) e máximo 93,3% (Ilha de Maré). O esgotamento sanitário estava presente em média em 84,0% dos domicílios com variação entre 3,2% (Ilha dos Frades) e 100% (Porto Seco de Pirajá). O índice de pobreza apresentou média de 6,4, com variação de 0,3 (Patamares) a 30,1 (Areia Branca).

Ainda em 2010 foram registradas 766 casos de tráfico de drogas (Tabela 2), o que representou média de 7,8 casos nos bairros estudados. O maior registro foi observado para o bairro Centro (54) e o menor registro foi de apenas um caso observado em 16 bairros.

Os dez bairros com os maiores registros de tráfico de drogas representaram 38,4% do total de 766 casos, já os bairros com os menores registros de tráfico de drogas representaram 1,3% desse total.

Os dez bairros onde se observou os maiores coeficientes de homicídios dolosos foram também, em sua maioria, aqueles com uma maior proporção da população de homens negros de 15 a 49 anos. Essa proporção foi maior no bairro de Fazenda Coutos e menor no Itaigara (Tabela 2). Estes bairros apresentaram coeficiente de 244,6 e 16,9 homicídios dolosos por 100mil habitantes, respectivamente.

Foi observado que os bairros com menor cobertura de esgotamento sanitário e maior proporção de homens negros de 15 a 49 anos apresentaram os maiores coeficientes de homicídios dolosos. Nessa mesma direção, dos 10 bairros com os maiores coeficientes de homicídios dolosos 80% tinham piores índices de pobreza. Foi observado o inverso na maioria dos bairros com menores coeficientes de homicídio doloso.

Entretanto, foi evidenciado que os bairros Comércio e Engenho Velho da Federação apresentaram índice de pobreza similar (4,7 e 4,9), mas houve grande diferença nos coeficientes de mortalidade por homicídio doloso (495,0 e 17,0 por 100.000 hab.), respectivamente.

Na análise utilizando-se o modelo de regressão binomial negativa (Tabela 3) foi encontrada associção positiva entre o coeficiente de homicídios dolosos e os preditores tráfico de drogas, proporção de homens negros de 15 a 49 anos e índice de pobreza, e associação negativa entre o coeficiente de homicídio doloso e proporção de domicílios com esgotamento sanitário, sendo que as associações positivas foram estatisticamente significantes.

Tabela 3 Modelo multivariado de regressão binomial negativa para associação entre o coeficiente de mortalidade por homicídio doloso (por 100.000) e indicadores sociais nos bairros de Salvador-BA, 2010. 

Indicadores Coeficiente Exponencial do Coeficiente Erro-padrão p-valor**
Tráfico de drogas
≥ 5 0.3423 1.40 0.1668 0.004
< 5 (ref)* 1.00
Proporção de homens negros de 15 a 49 anos
> 80% 0.6275 1.87 0.2935 0.000
≥ 60% e ≤ 80% 0.6399 1.89 0.3936 0.002
< 60% (ref)* 1.00
Proporção de domicílios com esgotamento sanitário
≤ 96% −0.0330 0.96 0.1384 0.818
> 96% (ref)* 1.00
Índice de pobreza
≥ 5,28% 0.3737 1.45 0.2272 0.017
< 5,28% (ref)* 1.00

*Categoria de referência.

**Ajustado pelas demais variáveis do modelo.

Dessa forma, bairros com mais de 5 pessoas envolvidas com o tráfico de drogas tiveram um risco relativo de 1.4 no coeficiente de homicídios dolosos, comparado com bairros com menos de 5 pessoas envolvidas, tomado como referência.

Do mesmo modo, os bairros com proporção acima de 60% de homens negros de 15 a 49 anos apresentaram risco de homicídio de 1.89 (≥ 60% e ≤ 80%) e naqueles com proporção maior que 80% o risco foi 1.87 (> 80%), quando comparados aos bairros com proporção menor que 60%, tomada como referência.

Nos bairros que apresentaram menores proporções de cobertura de esgotamento sanitário foi observado aumento do coeficiente de homicídio doloso, porém sem significância estatística. Do mesmo modo, este coeficiente aumenta à medida que aumenta o índice de pobreza e esse resultado é estatisticamente significante, porém nem todos os bairros com elevado índice de pobreza apresentaram aumento no coeficiente de homicídios dolosos.

Discussão

Esse estudo mostrou associação estatisticamente significante do coeficiente de homicídio doloso com o tráfico de drogas, índice de pobreza e proporção de homens negros de 15 a 49 anos. Para as demais co-variáveis do estudo foi observado associação, porém sem significância estatística.

Ao comparar os indicadores proporção de homens negros de 15 a 49 anos, cobertura de esgotamento sanitário e índice de pobreza referente aos 98 bairros incluídos no estudo com os 65 bairros não incluídos no estudo, se observou que apesar da média destes bairros apresentarem pior índice de pobreza e de cobertura de esgotamento sanitário, esta condição não foi determinante para a mortalidade por homicídio.

Esse resultado remete a algumas hipóteses: a primeira é que outros fatores poderiam está envolvidos nesse tipo de mortalidade que não seja somente a pobreza; a segunda é que o fato dos 65 bairros terem uma proporção menor de homens negros de 15 a 49 anos poderia explicar um menor risco de morte por homicídio e a terceira seria a subnotificação para esta causa de morte e para os casos de tráfico de drogas.

No ano de 2010 foi observado um coeficiente de 108,5 por 100mil habitantes para os bairros estudados. No estudo realizado por Waiselfisz12 em 2008, na capital baiana, foi observada taxa de homicídios de 158,4 por 100mil, ao considerar a população na mesma faixa etária utilizada nesse estudo.

O alto coeficiente de homicídios dolosos observados para o bairro da Calçada, seis vezes maior em relação a Salvador, pode está relacionado a proporção acima de 80% de homens negros de 15 a 49 anos e piores condições sociodemográficas observadas nesse bairro. Em estudo similar Barbosa et al.23 observaram maiores coeficientes de homicídios nos bairros com piores indicadores na capital do Recife no período de 2004 a 2006. O problema sinalizado na literatura sobre a variabilidade das taxas de um evento devido ao baixo número de casos também poderia justificar esse achado17.

Além disso, se constatou que nos bairros que diferem em 5 ou mais pessoas envolvidas com o tráfico de drogas há aumento de 40% no coeficiente de homicídio doloso. Nesse sentido, o estudo de Meirelles e Gomez24, realizado no Rio de Janeiro em 2004, também mostrou uma associação em torno de 90% entre tráfico de drogas e mortes por homicídio. Andrade3, em seu estudo sobre as políticas de drogas no Brasil também relaciona o tráfico de drogas com os casos de homicídios.

De acordo com Beato Filho e Reis10, as vítimas de homicídios não são pessoas estranhas ao crime, mas os próprios jovens que exterminam-se mutuamente na lógica do tráfico de drogas, ajudados por policiais corruptos que exigem sua parte nos lucros.

Observou-se também que o coeficiente de homicídios dolosos eleva-se nos bairros onde há maior proporção de homens negros de 15 a 49 anos. Similarmente, em estudo realizado em Salvador, Araújo et al.25 mostraram que a cada aumento de um percentil na proporção de população negra por área de ponderação houve um aumento de 18% na taxa de mortalidade por todas as causas externas e 12% na taxa de morte por homicídio, sendo esses resultados estatisticamente significantes. Corroborando o estudo anterior, Barata et al.6, na sua investigação sobre desigualdades sociais e homicídios na cidade de São Paulo, evidenciaram que a maior proporção de vítimas de homicídios são da raça/cor negra pertencente a estratos de piores condições socioeconômicas.

Nesse sentido, Waiselfisz20 em estudo sobre a cor dos homicídios em Salvador, no ano de 2012, mostrou que a taxa de homicídio na população negra foi de 78,3 por 100mil hab., enquanto que na população branca foi de 21,6 por 100mil hab., essa diferença parece auferir risco a população negra apenas pelo fato da cor da pele, mas Batista et al.26 no estudo sobre os óbitos segundo características da raça/cor em São Paulo, afirmam que a raça/cor por si só não é um fator de risco para a mortalidade, mas a inserção social adversa desse grupo é que se constitui em característica de vulnerabilidade.

No presente estudo, foi observado também que os dez bairros com os maiores coeficientes de homicídios dolosos são considerados bairros pobres com dificuldade ou até mesmo ausência de acesso aos bens e serviços sociais, educacionais e de saúde. Corroborando este achado Barata et al.6 ao estudarem as condições de vida da população e os padrões de ocorrência dos casos de homicídios na cidade de São Paulo, observaram que a proporção de óbitos foi maior no estrato E, ou seja, o estrato de maior pobreza.

Entretanto, Lima et al.8, em estudo realizado em Pernambuco no período de 1995 a 1998, observaram associação negativa entre índice de pobreza e taxa de analfabetismo com as taxas de homicídios. Esses resultados se alinham ao pensamento de Land et al.27 sobre a complexidade envolvida nessa relação. Nessa mesma direção, Kilsztajn et al.5 ao analisarem a relação entre pobreza e violência por distrito da capital e municípios da Região Metropolitana de São Paulo observaram que o grupo de unidades com baixas e moderadas taxas de homicídio abrigava distritos e municípios de extrema diversidade social denotando que todas as unidades violentas eram pobres, mas nem todas as unidades pobres eram violentas. Essa observação levou os autores a concluirem que a pobreza, sozinha, não explica a violência.

Em Belo Horizonte, no estudo realizado por Beato Filho et al.11, todos os conglomerados com as maiores taxas de homicídios, apresentaram relação com bairros e favelas nos quais prevalecia o tráfico de drogas. Esse mesmo estudo aponta que não são as condições socioeconômicas as responsáveis pelos conglomerados de homicídios, mas o fato dessas regiões serem assoladas pelo tráfico de drogas. Para Kilsztajn et al.5 as regras impostas pelo tráfico de drogas e que têm como objetivo proteger suas atividades são as responsáveis pelas inúmeras mortes de pessoas envolvidas no tráfico de drogas em localidades pobres.

Corroborando os estudos que descriminalizam a relação entre pobreza e violência, foi observado no presente estudo que os bairros do Comércio e Engenho Velho da Federação, apresentam índice de pobreza similar, porém o primeiro está no grupo dos bairros com os maiores coeficientes de homicídios dolosos, já o segundo faz parte do conjunto dos bairros que apresentaram os menores valores desse coeficiente.

Como afirmam Andrade et al.28, o problema não se situa na pobreza, mas na convivência com desigualdades sociais, a chamada pobreza relativa, que exclui pessoas das oportunidades, na sociedade.

Estudos sobre a relação de homicídios com o tráfico de drogas e indicadores sociais, podem ser ferramentas importantes do ponto de vista da implementação de políticas sociais preventivas para as áreas mais afetadas pelas mortes por homicídios29.

As desigualdades sociais e raciais, o índice de pobreza, a presença do Estado através da prestação de serviços essenciais à população, assim como, o perfil de risco para morte por homicídio e as áreas com maior presença do tráfico de drogas são aspectos que devem estar em pauta na construção de programas preventivos e ações coordenadas para o enfrentamento desses eventos. Contudo, a prevenção precisa ser pensada no contexto interdisciplinar e intersetorial, levando em consideração fatores contextuais e coletivos, culturais, sociais, econômicos e políticos30.

Esse estudo apresenta algumas limitações. Foram utilizados dados de diferentes fontes por se tratar de um estudo ecológico; foi utilizado registros policiais que geralmente possuem vários tipos de inconsistências nos registros das ocorrências e na organização do banco de dados. O SGE também não continha os registros de homicídios por intervenção legal o que certamente contribuiu para a subnotificação dos casos de homicídios dolosos apresentados nesse estudo. Outra limitação se refere ao fato de não se ter trabalhado com a totalidade dos bairros que compõem a cidade de Salvador, já que para 65 bairros não houve registro de ocorrência do desfecho estudado. Entretanto, a não ocorrência do desfecho nestes bairros pode refletir tão somente a ausência do Estado e, consequentemente, a omissão no registro dos dados desse tipo de agravo, haja vista eles apresentarem indicadores sociais e demográficos similares aos bairros que foram incluídos no estudo. A realização de investigações futuras utilizando análises multiníveis poderá contribuir para evidenciar de forma mais clara a relação entre a ocorrência de homicídio, tráfico de drogas e indicadores socioeconômicos.

Conclusão

Esse estudo evidenciou que o coeficiente de homicídios dolosos em quase 80% dos bairros de Salvador aumenta na medida em que há maior presença do tráfico de drogas e maior proporção de população masculina negra, bem como naqueles que possuem os piores índices de pobreza, mas observou-se também que nem todos os bairros pobres apresentaram coeficiente elevado de mortalidade por homicídio.

As evidências empíricas observadas poderão contribuir para o conhecimento sobre o fenômeno dos óbitos por homicídios dolosos nas grandes cidades e poderá auxiliar gestores, segurança pública e a sociedade civil organizada no enfrentamento desse problema, de forma integrada e interdisciplinar, para alcançar resultados efetivos e que contribuam para prevenir mortes que são evitáveis como é o caso dos homicídios.

Nesse sentido, fazem-se necessárias pesquisas que ampliem a utilização de indicadores que sejam sensíveis para a ocorrência ou não de homicídio doloso correlacionando a influência do contexto ambiental, estrutural e social sobre esse evento. Além disso, é necessário maior fomento à realização de estudos interinstitucionais e interdisciplinares para compreensão mais ampla sobre o fenômeno, assim como estudos que proponham formas alternativas de resiliência social no enfrentamento desse problema de saúde pública.

REFERÊNCIAS

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