versão impressa ISSN 1808-8694versão On-line ISSN 1808-8686
Braz. j. otorhinolaryngol. vol.83 no.2 São Paulo mar./abr. 2017
http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2016.02.006
O papilomavírus humano (HPV) é o agente etiológico da infecção viral mais comum do trato genital em todo o mundo. O vírus também está relacionado com uma ampla gama de distúrbios em crianças e adultos de ambos os sexos. O impacto clínico da doença relacionada ao HPV engloba uma gama de distúrbios benignos e malignos.1
A infecção pelo HPV é a doença sexualmente transmissível mais comum no mundo, com mais de 14 milhões de novos casos relatados nos Estados Unidos em 2008. Levando-se em conta todos os indivíduos infectados, estima-se que 79 milhões de americanos foram infectados pelo HPV em 2008.2
O papilomavírus humano é um vírus DNA da família Papillomaviridae. O HPV infecta a pele e a mucosa. Com base nas diferenças das sequências genômicas do L1, o gene que codifica a principal proteína do capsídeo, mais de 190 tipos de HPV foram identificados por análise molecular.3
O HPV foi classificado em tipos de alto e baixo risco, de acordo com seu potencial para induzir câncer em tecidos infectados.1 Embora o contato sexual seja o modo mais amplamente aceito de transmissão, outras formas de contaminação são descritas na literatura.4 A transmissão vertical (infecção de recém-nascidos pela passagem através de um canal de parto contaminado) é 231 vezes maior em mulheres com condiloma vaginal/vulvar do que em mulheres sem a doença clinicamente evidente. A transmissão do HPV por meio de infecção subclínica também pode ser um importante modo de infecção; talvez o maior fator de risco quando se estima a taxa de transmissão materno-fetal.5
As manifestações clínicas de doenças relacionadas ao HPV variam, dependem do tipo de HPV e local da inoculação, mas a verruga é considerada a lesão primária clássica da infecção.6
Embora a infecção persistente do colo do útero por HPV de alto risco (16 e 18) há muito seja considerada o fator causador de câncer cervical e uterino, apenas recentemente houve o reconhecimento de que esse mesmo processo é responsável por câncer do ânus, pênis, vagina, vulva e orofaringe.7,8
A infecção pelo HPV com os tipos 6 e 11 (baixo risco) causa doenças recorrentes como a papilomatose oral e laríngea.9
Considerando a alta prevalência de doença associada ao HPV e seu potencial para recorrência e conversão maligna, os custos relacionados ao diagnóstico e tratamento têm um grande impacto nos sistemas de saúde em todo o mundo. Por exemplo, só em 2003 os Estados Unidos gastaram US$ 418 milhões para o tratamento de doenças relacionadas ao HPV, exclusive os valores gastos com a doença cervical.10
Em 2012, o sistema de saúde italiano gastou 528,6 milhões de euros para o tratamento de doenças relacionadas ao HPV (câncer cervical, vulvar, vaginal, anal, peniano, de cabeça e pescoço, verrugas genitais e papilomatose respiratória.11
Além dos custos extremamente elevados para os sistemas de saúde, as doenças relacionadas ao HPV em todo o mundo estão associadas a altas taxas de morbidade e mortalidade.12
Tal como acontece com outras doenças sexualmente transmissíveis, a prevenção continua a ser a melhor opção para o controle da doença relacionada ao HPV, especialmente porque não há tratamento curativo.9 Entre as diferentes formas de prevenção disponíves para a doença relacionada ao HPV, a vacinação demonstrou boa relação custo-efetividade em vários programas em todo o mundo.9
Contudo, uma das barreiras para a implantação desses programas é o conhecimento limitado sobre o vírus e suas possíveis consequências que a maioria das populações tem.13-16
Estudos feitos em diferentes partes do mundo identificaram que não há uma compreensão adequada do tema quando se consideram os jovens sexualmente ativos.17-19
Positivamente, os países que implantaram programas de imunização observaram que as campanhas de vacinação contribuíram para o aumento dos níveis de conscientização sobre a questão. Essas campanhas, no entanto, tiveram como foco principal o câncer cervical, enquanto as informações fornecidas sobre outras doenças relacionadas ao HPV são limitadas.20
Embora a literatura científica forneça fortes evidências sobre a relação entre a infecção pelo HPV de alto risco e o desenvolvimento de câncer orofaríngeo, o conhecimento popular sobre esse tumor é inadequado ou inexistente.21
Em um estudo com 2.126 adultos americanos que avaliou o conhecimento geral dos cânceres de cabeça e pescoço, menos de 1% dos participantes reconheceu a infecção pelo HPV como um possível fator de risco para o câncer de boca e faringe.22
Curiosamente, existe uma diferença de 10 vezes entre as taxas de infecção oral (4%) e infecção genital (40%) em homens. A despeito das taxas relativamente baixas de infecção, o desenvolvimento de lesões benignas e malignas na cabeça e pescoço tem aumentado a uma taxa alarmante.23
O comportamento sexual foi relacionado a uma taxa crescente de infecção oral pelo HPV, mas não há consenso na literatura sobre o assunto. Os fatores de risco podem incluir o número de parceiros sexuais ao longo da vida e a crescente prática de sexo oral.24,25
A infecção subclínica pode facilitar a disseminação da doença para parceiros não infectados. O uso do preservativo deve ser sempre incentivado, mas não pode fornecer proteção total contra a infecção pelo HPV porque o vírus pode ser eliminado a partir de locais não protegidos pelo preservativo.26
O objetivo deste estudo foi avaliar o nível de conhecimento dos estudantes universitários sobre as questões envolvidas na transmissão do vírus, as manifestações clínicas e as potenciais consequências das infecções persistentes pelo HPV, identificar as lacunas no conhecimento e assim contribuir para campanhas educativas.
Este estudo transversal foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CAAE: 20424413.4.0000.5479). Trezentos alunos dos dois primeiros anos de faculdades de medicina, enfermagem e fonoaudiologia e audiologia foram convidados a participar deste estudo. O questionário era autoaplicável e os indivíduos foram organizados em grupos para minimizar a interferência do currículo de cada uma das faculdades. Os autores supervisionaram o preenchimento dos questionários. Cada questionário foi identificado apenas pelo número para manter o anonimato de cada participante.
Dos 300 estudantes convidados, 194 concordaram em participar e responderam os questionários em sua totalidade. Nenhum questionário foi excluído.
A maioria dos indivíduos (92,8%) respondeu corretamente que quanto maior o número de parceiros sexuais, maior o risco de infecção pelo HPV. Os resultados relativos à transmissão estão apresentados na tabela 1. A maioria dos respondentes reconheceu o contato genital-genital como um modo comum de transmissão, mas o conhecimento sobre outros modos de transmissão era limitado. A maioria dos entrevistados subestimou o risco de transmissão materno-fetal.
Tabela 1 Respostas sobre os modos de transmissão do HPV
Transmissão | Sim n(%) | Não n(%) |
---|---|---|
Genital | 191 (98,5) | 3 (1,5) |
Orogenital | 127 (65,5) | 67 (34,5) |
Anogenital | 125 (54,1) | 89 (45,9) |
Saliva | 19 (9,8) | 175 (90) |
Transplacental | 37 (19,1) | 157 (80,9) |
Parto vaginal | 75 (38,7) | 119 (61,3) |
Cesariana | 16 (8,2) | 178 (91,8) |
Em relação às medidas de proteção, 51% dos participantes declararam que os preservativos oferecem proteção total contra a infecção pelo HPV durante a relação sexual, 12,4% não sabiam responder essa pergunta e 36,6% responderam que essa proteção não seria totalmente eficaz. Quando perguntados se poderiam infectar seus parceiros mesmo quando assintomáticos, 88,7% dos entrevistados responderam positivamente, 2,2% negativamente e 8,8% não sabiam.
Quanto ao desenvolvimento de malignidade, o risco de câncer cervical e peniano foi mais prontamente reconhecido, com apreciação bem menor para o câncer em outros locais (tabela 2). A incerteza sobre o risco de câncer nesses outros locais também ficou evidente.
Tabela 2 Proporção de respostas sobre a participação do HPV na patogênese do câncer em diferentes sítios anatômicos
Neoplasia | Sim (%) | Não (%) | Não sei (%) |
---|---|---|---|
Faringe | 41 (21,1) | 68 (35,1) | 85 (43,8) |
Laringe | 37 (19,1) | 66 (34) | 91 (46,9) |
Vulva | 67 (34,5) | 41 (21,1) | 86 (44,3) |
Vagina | 88 (45,4) | 34 (17,5) | 72 (37,1) |
Pênis | 184 (94,8) | 4 (2,1) | 6 (3,1) |
Ânus | 52 (26,8) | 51 (26,3) | 91 (46,9) |
Cervical | 177 (91,2%) | 11 (5,7%) | 6 (3,1%) |
Em relação aos sinais e sintomas da infecção pelo HPV, os participantes relataram que as verrugas eram o principal sintoma (88%). Sintomas como sangramento (25%), prurido (37%) e dor (22%) foram incorretamente identificados como parte da sintomatologia de rotina (fig. 1).
De acordo com os Centros de Controle de Doenças dos Estados Unidos, 49% das infecções pelo HPV ocorrem em pessoas entre 15 e 24 anos, com custos significativos relacionados ao tratamento.27
O nível socioeconômico e o grau de escolaridade baixos estão correlacionados com um prognóstico ruim em doenças relacionadas ao HPV, como a papilomatose respiratória recorrente (PRR), bem como com as baixas taxas de adesão aos programas de prevenção de infecções.28
No Brasil, 44,9% da população acima de 15 anos não tem educação formal ou tem o ensino fundamental incompleto, enquanto 19% têm o ensino médio incompleto.29
É importante considerar que, embora o nível de escolaridade do grupo do estudo tenha sido maior que o da população em geral, os participantes não tinham educação formal em HPV ou suas doenças relacionadas. Assim, o conhecimento desse grupo é representativo do de seus pares. Nossos resultados mostram um bom conhecimento dos entrevistados sobre algumas questões, mas em outras áreas importantes esse conhecimento é parcial e fragmentado.
A grande maioria dos participantes do estudo (92,8%) indicou que quanto maior o número de parceiros sexuais, maior é o risco de infeção pelo HPV. Esse resultado também foi observado em outros estudos.25,30 A transmissão genital-genital foi prontamente reconhecida como um fator significativo para a infecção pelo HPV. Infelizmente, formas opcionais de transmissão, como orogenital e anogenital, foram reconhecidas por menos da metade dos respondentes, um déficit importante na compreensão do que são consideradas práticas sexuais seguras. Esse dado é particularmente preocupante quando se consideram as possíveis consequências de infecções persistentes nesses locais (transformação maligna) e merece atenção especial para a formulação de futuras políticas educacionais de saúde.24,30
Os participantes deste trabalho pertencem a uma faixa etária com número elevado de parceiros sexuais e baixa frequência do uso de preservativo.31
Nossos resultados indicam que a maioria (63,4%) dos respondentes considera estar totalmente protegida contra a infecção pelo HPV quando usa preservativo. As apresentações clínicas opcionais da infecção viral (PRR e câncer) não foram reconhecidas pela população avaliada, um fato que também deve ser considerado em programas de prevenção.
A grande maioria dos respondentes não reconheceu a possibilidade de transmissão transplacentária do vírus ou mesmo que a transmissão pode ocorrer durante o parto vaginal. Quando consideramos a idade e os anos de vida reprodutiva da população estudada, a compreensão inadequada do HPV nesse grupo representa uma falta de conhecimento séria e arriscada.
Quanto às doenças relacionadas ao HPV, o câncer cervical foi o mais facilmente reconhecido pelos participantes do estudo (91,23%). Infelizmente, houve pouco reconhecimento sobre a associação entre a infecção e outros cânceres. Esses dados são consistentes com os dados epidemiológicos apresentados nos últimos anos sobre essas doenças.25,32
Embora os esforços educacionais tenham obtido sucesso ao estabelecer o reconhecimento da relação entre HPV e câncer cervical, esforços mais agressivos devem ser feitos para estabelecer firmemente esse mesmo reconhecimento com outros tipos de cânceres. Nossos dados indicam que 88,7% dos entrevistados prontamente reconheceram o potencial de propagação da doença quando assintomáticos. A maioria dos respondentes reconheceu a verruga como o clássico sintoma de infecção, uma taxa maior do que a obtida por outros autores,33 mas eles identificaram incorretamente outros sinais e sintomas como componentes da infecção ativa (fig. 1). O autoexame pode ser crucial para o reconhecimento da infecção ativa e deve ser incentivado. A detecção precoce da infecção ativa é importante, pois o diagnóstico tardio está associado a taxas mais altas de complicações.23,34
No entanto, a incapacidade de identificar corretamente os sinais de infecção ativa, como demonstrado neste estudo, representa uma grande barreira que deve ser superada para o sucesso da implantação de um programa de autoexame.
Levando-se em conta a potencial gravidade e os custos relacionados com a doença associada ao HPV, o papel da prevenção é inquestionável. No entanto, para que as medidas de proteção individual sejam eficazes, é necessário que um nível mínimo de conhecimento sobre o assunto seja adquirido pela população.
A partir dos resultados obtidos neste trabalho, identificamos lacunas no conhecimento sobre a infecção pelo HPV. Os dados deste estudo foram obtidos a partir de um grupo que representa um nível de escolaridade acima da média no Brasil, destacaram-se as deficiências nos atuais programas educacionais do país sobre a infecção pelo HPV. É essencial que a política pública brasileira sobre o tema seja reavaliada.
No entanto, outros autores observaram que um aumento do conhecimento sobre o problema não se reflete na consciência da importância das medidas preventivas a serem adotadas. Esses autores recomendaram uma informação direta e acompanhada de argumentos que não podem ser mal interpretados.35
O fato de que nossa amostra não foi representativa de toda a população brasileira, bem como a limitação do recrutamento a apenas uma universidade são potenciais limitações do estudo. Contudo, acreditamos que este trabalho possa fornecer informações úteis para políticas de orientação para a população.
As lacunas no conhecimento sobre a infecção pelo HPV e as suas potenciais consequências podem diminuir a eficiência e o alcance dos programas de prevenção. Embora os programas de vacinação já estejam em execução para uma grande parcela da população, esses programas devem ser complementados com informações para toda a população. Caso contrário, a eficácia dos programas de vacinação pode ser prejudicada. É essencial promover campanhas educativas sobre os riscos de transmissão, as formas de proteção e as consequências das doenças relacionadas ao HPV para minimizar a morbidade individual e diminuir os custos para o sistema de saúde. Políticas públicas de saúde para a educação e orientação da população devem ser implantadas no Brasil.
O conhecimento sobre o HPV da população avaliada neste estudo é parcial e fragmentado. A falta de conhecimento pode contribuir para a propagação da doença. Políticas públicas de saúde para a educação e orientação da população devem ser implantadas no Brasil.