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Humildade cultural: conceito estratégico para abordar a saúde dos refugiados no Brasil

Humildade cultural: conceito estratégico para abordar a saúde dos refugiados no Brasil

Autores:

Carmen Santana

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos de Saúde Pública

versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464

Cad. Saúde Pública vol.34 no.11 Rio de Janeiro 2018 Epub 23-Nov-2018

http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00098818

No intuito de colaborar com as análises do Espaço Temático: Populações Refugiadas e Saúde1,2,3, apresentaremos alguns aspectos do refúgio no Brasil, e o conceito de humildade cultural como estratégico na formação dos profissionais da saúde, problematizando o modelo da competência cultural apresentado no artigo Competências em Multiculturalismo, Assistência à Saúde e Transtornos de Comunicação1.

O Brasil é reconhecido como país seguro para refugiados, abriga a maior população de refugiados da América do Sul, vinda de 80 diferentes países. São 10.145 pessoas reconhecidas como refugiadas e 86.007 solicitações de reconhecimento em trânsito. Concentram-se em grandes centros urbanos. Mulheres constituem 34% dessa população. A maioria vem da Síria (39%), República Democrática do Congo (13%), Colômbia (4%), Palestina (4%), Paquistão (3%), Mali (2%), Iraque (1%), Angola (1%), República da Guiné (1%), Afeganistão (1%), Camarões (1%) e outros (30%) 4.

Embora não compartilhem riscos à saúde decorrentes do regime de “não-entrada” descritos por Castiglione 2, refugiados no Brasil enfrentam obstáculos à sua integração: diferenças culturais, étnicas e econômicas, dificuldades com o idioma, perda de relações familiares e sociais, restrições ao reconhecimento da formação acadêmica, violência relacionada às circunstâncias que forçaram o deslocamento. Adicionalmente, sofrem problemas sociais que afetam os brasileiros: dificuldades em conseguir emprego, no acesso à educação superior, no acesso à moradia e à saúde 5.

O Sistema Único de Saúde (SUS) atende a imigrantes, refugiados e solicitantes de refúgio. O planejamento das ações deveria levar em conta a influência da cultura na expressão dos sintomas, na experiência da doença, na evolução e progressão dos quadros clínicos. Aplicar os mesmos protocolos, diagnósticos e tratamentos para uma população culturalmente diferente implica não reconhecer a validade cultural das ações de saúde. A diagnose requer alto nível de compreensão cultural. O profissional vai se comunicar dentro do modelo saúde/doença aprendido por ele. O refugiado nem sempre compartilha esse modelo. Quanto maior a diferença cultural entre o profissional e o usuário do serviço, maiores as chances de erros de comunicação, o que dificulta mais ainda a avaliação diagnóstica 5. Frente à diversidade cultural dos refugiados, na prática os profissionais se queixam de desinformação e despreparo para o atendimento.

O modelo da competência cultural pressupõe que o profissional da saúde aprenda um conjunto de atitudes e habilidades de comunicação que permitirão trabalhar eficazmente no contexto cultural dos pacientes. A humildade cultural é definida como um processo de estar ciente de como a cultura pode afetar comportamentos relacionados à saúde. Diferentemente da competência cultural, a humildade cultural não supõe um conjunto quantificável de atitudes. Refere-se ao processo contínuo de reflexão e crítica. Desenvolver a humildade cultural, portanto, permite aos profissionais apreciar a cultura como entidade dinâmica.

Embora “competência cultural” seja descrita como a estratégia para abordar as disparidades na saúde, a concepção de “humildade cultural” reformula o discurso das desigualdades em saúde e expande os entendimentos tradicionais de raça e etnia, para incluir a cultura de construção de alianças entre grupos e indivíduos de diversas origens, gêneros, orientação sexual, (in)capacidades, níveis educacionais, imigração status e outros indicadores socioeconômicos e de identidade social 6. Uma abordagem humilde e reflexiva implica uma atitude de respeito à diversidade, à individualidade da experiência cultural e seus significados, incluindo múltiplos pontos de vista no desenho do projeto terapêutico. Na prática significa, por exemplo, adotar uma combinação coordenada de tratamentos oferecidos pela “medicina oficial” às ações de curandeiros populares.

Apesar de o Ministério da Saúde compor o Comitê Nacional para Refugiados (CONARE), ainda não contamos com uma política nacional que oriente serviços de saúde quanto aos riscos de replicar modelos etnocêntricos nos processos de formação da equipe e atendimento aos usuários. Tampouco temos registro dos atendimentos prestados pelo SUS aos refugiados. Metodologias participativas, por outro lado, têm ajudado no desenvolvimento de um cuidado em saúde culturalmente sensível no Brasil, contribuindo para a inserção dos refugiados no processo de produção do conhecimento acerca do processo saúde/doença 5. Nesse contexto, apostamos na contribuição do conceito estratégico da humildade cultural e das metodologias participativas para o aprimoramento do modelo de competência cultural. Esse novo enfoque poderia ser implementado por meio da inclusão do conceito de humildade cultural nos currículos de formação dos profissionais da saúde, e nas atividades de educação permanente oferecidas aos trabalhadores já atuantes no SUS.

REFERÊNCIAS

1. Goulart BG, Levey S, Rech RS. Multiculturality skills, health care and communication disorders. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00217217.
2. Castiglione DP. Border policies and health of refugee populations. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00006018.
3. Pacheco-Coral AP. Statelessness, exodus, and health: forced internal displacement and health services. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00027518.
4. Comitê Nacional para Refugiados. Refúgio em números. (acessado em 18/Mai/2018).
5. Santana CLA, Lotufo Neto F. Developing a mental health program for refugees based on participatory Action Research: an experience from Sao Paulo, Brazil. International Journal of Action Research 2016; 11:265-88.
6. Prasad SJ, Nair P, Gadhvi K, Barai I, Danish HS, Philip AB. Cultural humility: treating the patient, not the illness. Med Educ Online 2016; 21:10.3402/meo.v21.30908.