versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.104 no.6 São Paulo jun. 2015 Epub 03-Abr-2015
https://doi.org/10.5935/abc.20150031
A insuficiência cardíaca (IC) é uma das principais causas de hospitalização em adultos no Brasil, no entanto a maioria dos dados disponíveis é limitada a registros unicêntricos. O registro BREATHE é o primeiro a incluir uma ampla amostra de pacientes hospitalizados com IC descompensada de diferentes regiões do Brasil.
Descrever as características clínicas, tratamento e prognóstico intra-hospitalar de pacientes admitidos com IC aguda.
Estudo observacional tipo registro, com seguimento longitudinal. Os critérios de elegibilidade incluíram pacientes acima de 18 anos com diagnóstico definitivo de IC, admitidos em hospitais públicos ou privados. Os desfechos avaliados incluíram causas de descompensação, uso de medicações, indicadores de qualidade assistencial, perfil hemodinâmico e eventos intra-hospitalares.
O total de 1.263 pacientes (64 ± 16 anos, 60% mulheres) foi incluído a partir de 51 centros de diferentes regiões do Brasil. As comorbidades mais comuns foram hipertensão arterial (70,8%), dislipidemia (36,7%) e diabetes (34%). Em torno de 40% dos pacientes apresentavam função sistólica do ventrículo esquerdo normal e a maioria foi admitida com perfil clínico-hemodinâmico quente-úmido. Vasodilatadores e inotrópicos endovenosos foram administrados a menos de 15% da amostra estudada. Indicadores de qualidade assistencial baseados nas orientações de alta hospitalar foram atingidos em menos de 65% dos pacientes. A mortalidade intra-hospitalar afetou 12,6% do total dos pacientes incluídos.
O estudo BREATHE demonstrou a alta mortalidade intra-hospitalar dos pacientes admitidos com IC aguda no Brasil, somada à baixa taxa de prescrição de medicamentos baseados em evidências.
Palavras-Chave: Insuficiência Cardíaca/mortalidade; Epidemiologia; Hospitalização; Prescrição Inadequada
Heart failure (HF) is one of the leading causes of hospitalization in adults in Brazil. However, most of the available data is limited to unicenter registries. The BREATHE registry is the first to include a large sample of hospitalized patients with decompensated HF from different regions in Brazil.
Describe the clinical characteristics, treatment and prognosis of hospitalized patients admitted with acute HF.
Observational registry study with longitudinal follow-up. The eligibility criteria included patients older than 18 years with a definitive diagnosis of HF, admitted to public or private hospitals. Assessed outcomes included the causes of decompensation, use of medications, care quality indicators, hemodynamic profile and intrahospital events.
A total of 1,263 patients (64±16 years, 60% women) were included from 51 centers from different regions in Brazil. The most common comorbidities were hypertension (70.8%), dyslipidemia (36.7%) and diabetes (34%). Around 40% of the patients had normal left ventricular systolic function and most were admitted with a wet-warm clinical-hemodynamic profile. Vasodilators and intravenous inotropes were used in less than 15% of the studied cohort. Care quality indicators based on hospital discharge recommendations were reached in less than 65% of the patients. Intrahospital mortality affected 12.6% of all patients included.
The BREATHE study demonstrated the high intrahospital mortality of patients admitted with acute HF in Brazil, in addition to the low rate of prescription of drugs based on evidence.
Key words: Heart Failure/mortality; Epidemiology; Hospitalization; Inappropriate Prescribing
A insuficiência cardíaca (IC) tem sido apontada como um importante problema de saúde pública e considerada como uma nova epidemia com elevada mortalidade e morbidade, a despeito dos avanços da terapêutica atual. Dados atualizados da American Heart Association (AHA) estimam prevalência de 5,1 milhões de indivíduos com IC somente nos Estados Unidos, no período de 2007-2012. As projeções mostram que a prevalência da IC aumentará 46% de 2012-2030, resultando em mais de 8 milhões de pessoas acima dos 18 anos de idade com IC1.A prevalência em ascensão se deve provavelmente ao aumento da expectativa de vida, uma vez que a IC acomete de forma preponderante faixas etárias mais elevadas2.
A IC é a principal causa de internação hospitalar, baseado em dados disponíveis de cerca de 50% da população sul‑americana3. O retrato mais abrangente da situação das internações por IC no Brasil pode ser obtido através das análises dos registros do DATA-SUS, com as limitações inerentes de um banco de dados de caráter administrativo. Dados demonstram que apenas no ano de 2012 houve 26.694 óbitos por IC no Brasil. Para o mesmo ano, das 1.137.572 internações por doenças do aparelho circulatório, em torno de 21% foram devidas à IC4.
O ônus se torna ainda mais significativo quando consideramos que quase 50% de todos os pacientes internados com este diagnóstico são readmitidos dentro de 90 dias após a alta hospitalar e que essa readmissão hospitalar é um dos principais fatores de risco para morte nesta síndrome5,6. Diversos estudos concentraram-se na identificação de fatores associados com readmissões frequentes7,8. Os habitualmente descritos na literatura internacional são a terapia inadequada, a falta de aderência ao tratamento, o isolamento social, ou a piora da função cardíaca. Entretanto, em aproximadamente 30-40% dos casos não é possível identificar o motivo da descompensação clínica9.
Os dados sobre a morbidade e consequentes custos associados com IC descompensada são incontestáveis em todo o mundo. No Brasil, são escassos os estudos que avaliam de forma compreensiva e prospectiva as características demográficas, clínicas e prognósticas de pacientes que são admitidos com diagnóstico clínico de IC. Iniciativas isoladas sugerem a existência de diferenças regionais significativas em diversas características dos pacientes que internam com IC no Brasil, mas essas comparações são metodologicamente limitadas por delineamentos e critérios de inclusão muitas vezes divergentes10-12. Dessa forma, o estabelecimento de um registro nacional que incorpore um grupo de hospitais públicos e privados das diferentes regiões brasileiras poderá retratar de forma mais precisa quais pacientes internam com diagnóstico de IC, como estes pacientes são tratados em suas instituições e qual seu prognóstico a curto e longo prazo.
O estudo BREATHE é o primeiro registro nacional e multicêntrico de IC aguda a incluir todas as regiões do país, envolvendo 51 hospitais públicos e privados em 21 cidades do Brasil. O objetivo da presente análise é descrever as características clínicas, de tratamento e do prognóstico intra‑hospitalar de pacientes admitidos com IC aguda no Brasil.
Estudo observacional transversal (registro) com seguimento longitudinal.
Os hospitais da rede pública e privada que participaram do Registro de Insuficiência Cardíaca Descompensada do Departamento de Insuficiência Cardíaca da Sociedade Brasileira de Cardiologia foram escolhidos pela comissão de investigadores. Para cada uma das cinco regiões do país foi alocado um número fixo de instituições, e o número de pacientes por região foi definido baseado no número absoluto de internações hospitalares por região no ano de 2004 segundo o IBGE (Anexo I).
Os métodos do BREATHE, incluindo os critérios de inclusão e exclusão, foram previamente descritos13. Pacientes, acima de 18 anos de idade, admitidos em hospitais da rede pública ou privada com quadro clínico definitivo de IC confirmado através dos critérios de Boston foram considerados elegíveis ao estudo14. Aqueles pacientes submetidos a procedimentos de revascularização do miocárdio (angioplastia coronariana ou cirurgia) no último mês da seleção e que apresentavam sinais de IC secundária a um quadro de sepse foram excluídos do estudo.
a) Perfil Clínico-Hemodinâmico:
O perfil clínico-hemodinâmico foi definido, segundo a classificação de Stevenson15, em quatro perfis hemodinâmicos de acordo com os achados do exame físico de congestão pulmonar e perfusão periférica. Os pacientes com IC aguda geralmente estão em um dos seguintes subgrupos: 1) presença de congestão pulmonar sem sinais de hipoperfusão (quente e úmido); 2) presença de congestão pulmonar associada à hipoperfusão (frio e úmido); e 3) hipoperfusão sem congestão pulmonar (frio e seco).
b) Doses-alvo do Tratamento da IC:
As doses-alvo para o tratamento da IC aguda, para fins de avaliação dos dados deste estudo, foram as mesmas recomendadas pela II Diretriz de Insuficiência Cardíaca Aguda da Sociedade Brasileira de Cardiologia16.
c) Causas de Descompensação da IC:
As principais causas de descompensação analisadas incluíram infecção, descompensação por doença valvar aguda, má aderência à terapia medicamentosa, ingestão excessiva de sódio na última semana, arritmias e embolia pulmonar. A classificação foi determinada pelo julgamento clínico do investigador local de acordo com o relato do paciente.
Para a presente análise, além de dados da admissão hospitalar, foram coletados dados durante a internação hospitalar até a data da alta médica ou óbito intra-hospitalar.
O desfecho primário do presente estudo foi a mortalidade intra-hospitalar por todas as causas. Desfechos secundários incluíram a proporção de pacientes que receberam intervenções com benefício comprovado demonstrado por indicadores de qualidade assistencial (uso de inibidores da enzima de conversão da angiotensina [IECA]/bloqueadores dos receptores da angiotensina II [BRA] e uso de betabloqueadores), reinternações por IC, e mortalidade cardiovascular.
O protocolo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Hospital do Coração de São Paulo, SP (HCor) em 1º de fevereiro de 2011, sob o número de registro 144/2011, e na sequência, cada centro participante também teve sua aprovação no seu CEP local. Todos os pacientes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e o estudo clínico foi conduzido de acordo com os princípios da revisão atual da Declaração de Helsinki.
O gerenciamento dos dados foi realizado utilizando o Sistema EDC (Electronic Data Capture). As fichas clínicas foram transcritas através de prontuário-Web e enviadas para o centro coordenador central, sendo incorporados em um banco de dados para validação. O controle de qualidade dos dados do estudo ocorreu, principalmente, por checagem central em busca de possíveis inconsistências (dados sem plausibilidade biológica) ou dados incompletos, e reportados aos centros participantes para confirmação e/ou correção. O Departamento de Insuficiência Cardíaca da Sociedade Brasileira de Cardiologia foi responsável pelo gerenciamento dos dados do estudo.
Na primeira fase do Registro Brasileiro de Insuficiência Cardíaca Descompensada foi prevista a avaliação de 1.200 internações realizadas na rede pública e privada nas diferentes regiões do Brasil. Este tamanho amostral foi definido para representar o maior estudo prospectivo brasileiro de IC descompensada, envolvendo todas as regiões do país, permitindo identificar diferenças regionais de mortalidade intra-hospitalar.
Variáveis contínuas foram descritas com medianas (intervalo interquartil) ou médias (desvio padrão) conforme a distribuição da variável, e as categóricas através de frequências absolutas e relativas. A normalidade foi avaliada com a inspeção visual de histogramas e aplicação do teste de normalidade de Shapiro-Wilks. A distribuição da idade foi comparada entre as regiões segundo um modelo de análise de variância (ANOVA) e a relação entre etiologia e região pelo teste qui-quadrado. O software SAS 9.3 (Statistical Analysis System, Cary, NC) foi utilizado na análise estatística de dados17.
No período de fevereiro de 2011 a dezembro de 2012, foram incluídos 1.263 pacientes em 51 centros de diferentes regiões do Brasil (2 centros na região Norte [164 pacientes], 13 centros no Nordeste [209 pacientes], 5 centros no Centro‑Oeste [66 pacientes], 33 centros no Sudeste [652 pacientes] e 5 centros no Sul [172 pacientes]). Dois pacientes foram excluídos da análise por preencherem critérios de exclusão. O diagrama de fluxo encontra-se no Anexo II.
A média de idade dos pacientes foi de 64 ± 16 anos, com 73,1% acima dos 75 anos e 60% mulheres. A maioria dos pacientes era de etnia branca autorreferida (59%), havia sido admitida na rede pública/Sistema Único de Saúde (64.8%) e proveniente das regiões Sul/Sudeste (65,2%). Pouco mais da metade dos pacientes incluídos possuíam disfunção sistólica do ventrículo esquerdo (58,7%) e a grande maioria era hipertensa (70,8%). A Tabela 1 mostra as características basais da amostra estudada, incluindo dados demográficos e história médica prévia.
Tabela 1 Características basais da amostra
Variáveis | BREATHE (n = 1,261) |
---|---|
Idade (média+/-DP*) | 64,1 ± 15,9 |
Sexo masculino (%) | 40,0 |
Infarto agudo do miocárdio prévio (%)† | 26,6 |
Hipertensão arterial (%)† | 70,8 |
Dislipidemia (%) | 36,7 |
AVC‡ /AIT§ prévios (%)† | 12,6 |
Fibrilação atrial (%)† | 27,3 |
Depressão (%) † | 13,5 |
Doença arterial oclusiva periférica (%)† | 10,8 |
Insuficiência renal crônica (%)† | 24,1 |
Diabetes mellitus (%)† | 34,0 |
Doença pulmonar obstrutiva crônica/Asma (%) | 12,7 |
Fração de ejeção do ventrículo esquerdo (média+/-DP) | 38,8 ± 16,5 |
Sódio (média+/-DP) | 137±16 |
Creatinina (média+/-DP) | 1,7 ± 4,8 |
BNP// (mediana/[IQR¶]) | 1.075 (518;1.890) |
*DP: desvio padrão;
†Valores calculados com total de 1.255 pacientes com informação completa;
‡AVC: acidente vascular cerebral;
§AIT: acidente isquêmico transitório; BNP: peptídeo natriurético cerebral;
¶IQR: variação interquartil.
A distribuição da média de idade por região apresentou diferença estatisticamente significativa com a inclusão de pacientes com idade mais avançada nas regiões Sudeste e Sul e pacientes mais jovens na região Norte (66 ± 15 anos versus 59 ± 17 anos, p = 0,019).
As etiologias isquêmica e hipertensiva foram predominantes na população estudada, acometendo 30,1% e 20,3% dos pacientes, respectivamente. Em torno de 11% dos pacientes tinham o diagnóstico de doença de Chagas (Figura 1).
Figura 1 Distribuição das etiologias de insuficiência cardíaca no registro BREATHE. *CMPD: cardiomiopatia dilatada; QT: secundária a quimioterápicos.
Na análise das etiologias por região, os pacientes provenientes das regiões Sul, Sudeste e Nordeste apresentaram predominância da etiologia isquêmica (33,6%, 32,6%, 31,9%, respectivamente). Nos pacientes da região Norte predominou a etiologia hipertensiva (37,2%), enquanto que entre os pacientes da região Norte predominou a etiologia chagásica (42,4%) (Tabela 2).
Tabela 2 Distribuição das etiologias por região do Brasil
Etiologia | Sul | Sudeste | Centro-Oeste | Nordeste | Norte | Total | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
N | % | N | % | N | % | N | % | N | % | N | % | |
Total | 172 | 100 | 652 | 100 | 66 | 100 | 209 | 100 | 164 | 100 | 1,263 | 100 |
Isquêmica | 58 | 33,6 | 213 | 32,6 | 15 | 22,8 | 67 | 31,9 | 27 | 16,5 | 380 | 30 |
Cardiomiopatia dilatada idiopática | 12 | 7 | 93 | 14,3 | 4 | 6,1 | 41 | 19,6 | 33 | 20,1 | 183 | 14,5 |
Hipertensiva | 56 | 32,6 | 98 | 15 | 7 | 10,6 | 34 | 16,3 | 61 | 37,2 | 256 | 20,3 |
Doença de Chagas | 4 | 2,3 | 80 | 12,3 | 28 | 42,4 | 13 | 6,2 | 11 | 6,7 | 136 | 10,8 |
Doença valvar | 24 | 14 | 80 | 12,3 | 2 | 3 | 30 | 14,4 | 20 | 12,2 | 156 | 12,4 |
Secundária a quimioterápicos | 1 | 0,6 | 2 | 0,3 | 0 | 0 | 2 | 1 | 0 | 0 | 5 | 0,4 |
Miocardite | 2 | 1,2 | 5 | 0,8 | 2 | 3 | 1 | 0,5 | 0 | 0 | 10 | 0,8 |
Outros | 15 | 8,7 | 74 | 11,3 | 8 | 12,1 | 20 | 9,6 | 12 | 7,3 | 129 | 10,2 |
Missing | 0 | 0 | 7 | 1,1 | 0 | 0 | 1 | 0,5 | 0 | 0 | 8 | 0,6 |
As principais causas de descompensação da IC foram má aderência medicamentosa (30%), seguida de infecções (23%) e controle inadequado da ingestão de água e sódio (9%), como demonstrado na Tabela 3.
Tabela 3 Distribuição das causas de descompensação da insuficiência cardíaca
Causa da Descompensação | % (n=1.250) |
---|---|
Infecção | 22,7 |
Má aderência medicamentosa | 29,9 |
Aumento da ingestão de sódio e água* | 8,9 |
Doença valvar aguda | 6,6 |
Arritmia cardíaca | 12,5 |
Embolia pulmonar | 0,4 |
Outros | 32,4 |
*Total com informação completa: 1.242 pacientes.
Em relação ao perfil clínico-hemodinâmico à admissão hospitalar, o predomínio foi para o perfil quente-úmido que totalizou 67,4% dos casos, enquanto que os perfis frio-úmido e frio-seco representaram 17,8% e 5,2%, respectivamente (Figura 2).
A Tabela 4 relaciona os principais procedimentos realizados durante a internação hospitalar, assim como a taxa de mortalidade ainda em fase hospitalar. A soma dos óbitos nas primeiras 24 horas (17 pacientes) e após este período (140 pacientes), totalizou 12,6% da amostra estudada. A troca valvar prevaleceu entre os procedimentos durante a fase hospitalar tendo ocorrido em 156 pacientes.
Tabela 4 Eventos e procedimentos durante internação hospitalar
Eventos/procedimentos | % | (n/total) |
---|---|---|
Mortalidade intra-hospitalar | 12,6 | (1,57/1,245) |
Revascularização do miocárdio | 0,7 | (9/197) |
Troca valvar | 12,4 | (156/197) |
Transplante cardíaco | 1,2 | (15/197) |
Angioplastia coronária | 1,5 | (19/197) |
Desfibrilador implantável/ Ressincronizador | 1,2 | (15/197) |
Marcapasso cardíaco | 1,7 | (22/197) |
*Do total, apenas 197 pacientes realizaram procedimentos durante a internação hospitalar.
Para o tratamento na fase intra-hospitalar da IC aguda, foram predominantes o uso de diuréticos de alça (89,8%), seguidos de betabloqueadores (57,1%). O uso de vasodilatadores endovenosos (6,6%) e inotrópicos (13,6%) representou pequena parcela da terapia desta população (Figura 3).
Figura 3 Medicações Intra-hospitalares. *IECA: inibidor da enzima de conversão da angiotensina; BRA: bloqueador do receptor de angiotensina II.
Segundo os indicadores da Joint Commission on Accreditation of Healthcare Organizations (JCAHO), 63,7% dos pacientes receberam orientações na alta hospitalar sobre a correta tomada da terapia medicamentosa, enquanto que apenas 34,9% e 16,2% foram orientados sobre a dieta a ser seguida em domicílio e prescrição de atividade física, respectivamente (Figura 4).
Os principais achados desta análise do estudo BREATHE são: 1) as caraterísticas basais apontam para um perfil populacional de pacientes predominantemente idosos, principalmente nas regiões Sul e Sudeste do Brasil; 2) a má aderência medicamentosa foi o fator associado com mais frequência à descompensação; 3) a prescrição de medicamentos de acordo com as evidências atuais, principalmente vasodilatadores, foi abaixo do esperado para esta população; e 4) elevada taxa de mortalidade intra-hospitalar.
Pacientes com idade avançada representaram uma parcela importante da amostra estudada no BREATHE e predominaram nas regiões Sul e Sudeste, onde também foi mais prevalente a etiologia isquêmica.
Entre os pacientes com doenças crônicas, aproximadamente 50% não tomam medicamentos como prescritos. Esta baixa adesão à medicação leva ao aumento da morbidade, mortalidade e custos18. Soma-se a isto o fato de que a idade avançada é um fator de risco para a má aderência que aumenta ainda mais com a polifarmácia, aumentando a probabilidade de eventos adversos.
Os estudos sobre a adesão à medicação demonstram taxas muito variáveis de adesão entre os pacientes com IC. Um estudo relatou taxas de aderência de 79% para os IECA/BRA, 65% para betabloqueadores e 56% para a espironolactona após cinco anos da primeira hospitalização por IC19. Em contrapartida, a taxa de não aderência baseada na contagem de comprimidos foi muito menor no estudo CHARM onde 11% dos pacientes tomaram menos de 80% dos comprimidos prescritos20.
A aderência está associada a diversos fatores, e não deve ser considerada como responsabilidade exclusiva do paciente. O estudo BREATHE apontou que apenas pouco mais de 50% dos pacientes receberam orientações para a correta tomada da medicação, enquanto somente 43,5% foram orientados sobre o reconhecimento da piora dos sintomas e consultas futuras. Evidências prévias revelam que em torno de 35% dos pacientes internados com IC aguda recebem instruções apropriadas na alta hospitalar, com os centros acadêmicos apresentando pior performance neste indicador da JCAHO21.
Ainda de maior relevância e que impacta na prescrição de alta é a medicação introduzida ainda na fase hospitalar. Esta análise demonstra que ainda existem lacunas consideráveis no tratamento da IC aguda no Brasil. O tratamento com frequência não segue as diretrizes atuais publicadas, o que pode contribuir para a elevada morbidade, mortalidade e custo econômico desta síndrome16.
O Estudo IMPROVE-HF mostrou que a adição de cada terapia baseada em evidência esteve associada com uma diminuição em 24 meses do risco de mortalidade, com benefício incremental. Esta forte associação positiva entre o uso progressivo de terapias baseadas em evidências e melhora da sobrevida ajustada ao risco atingiu um platô após 4-5 terapias incluídas no arsenal terapêutico do paciente com IC22.
A despeito do perfil clínico hemodinâmico quente-úmido ter sido o mais comum no presente estudo, apenas 6,6% da população recebeu vasodilatador endovenoso enquanto 42,2% dos pacientes incluídos receberam IECA ainda em fase hospitalar. Em torno de 18% dos pacientes se apresentaram frio-úmidos à admissão hospitalar, no entanto, somente 13,6% dos pacientes receberam inotrópicos. A prescrição de betabloqueador foi para somente 57,1% da amostra estudada. Por outro lado, foram prescritos diuréticos de alça para aproximadamente 90% dos pacientes.
Resultados da análise do registro ADHERE sugerem que o início precoce da terapia vasodilatadora, ainda na sala de emergência, se correlacionou com menor tempo de permanência hospitalar e transferência para unidades fechadas, assim como maiores percentagens de pacientes assintomáticos na alta hospitalar23. Adicionalmente, houve uma substancial melhora da sobrevida dos pacientes que receberam vasodilatador endovenoso (nitroglicerina ou nesiritide), em relação àqueles que receberam inotrópicos endovenosos (dobutamina ou milrinone)24. No entanto, é possível que os pacientes que necessitem de terapia inotrópica tenham uma forma mais avançada da IC do que os pacientes que recebem vasodilatadores.
Análise do Euro Heart Survey mostrou claramente que os pacientes incluídos em ensaios clínicos randomizados são um grupo altamente selecionado e que apenas uma pequena proporção dos pacientes deste registro seria elegível. No entanto, para menos da metade dos pacientes elegíveis foi prescrito betabloqueador e IECA e as doses utilizadas foram abaixo daquelas que provaram ser eficazes. Portanto, a falta de semelhança entre pacientes com IC na prática clínica e aqueles em ensaios clínicos não explica adequadamente a subutilização da terapia25.
Invariavelmente, o tratamento intra-hospitalar tem impacto direto nos eventos clínicos durante a internação. O prognóstico da IC é reservado e diretamente relacionado à perda da capacidade funcional. Dados do estudo de Framingham demonstraram uma sobrevida mediana após o diagnóstico de 1,7 anos para homens e 3,2 anos para mulheres. A alta mortalidade, morbidade e comprometimento da qualidade de vida relacionados com a IC afeta principalmente os idosos. Apesar de se observar um benefício consistente e significativo na sobrevida de pacientes com IC através do uso de estratégias farmacológicas agressivas, a mortalidade anual dessa entidade continua elevada26-31. Nos estudos CONSENSUS (Cooperative North Scandinavian Enalapril Survival Study)32 e PROMISE (Prospective Randomized Milrinone Survival Evaluation)33, por exemplo, identificou‑se uma proporção alta de pacientes com mortalidade anual superior a 30%. Em estudos mais recentes, a mortalidade dos pacientes em classe funcional III-IV após um ano de tratamento otimizado, incluindo o uso rotineiro de IECA e betabloquedores, foi de aproximadamente 10‑15%34. Embora estes valores sejam alentadores, tais taxas de mortalidade são ainda semelhantes àquelas observadas em muitas doenças neoplásicas.
Já a mortalidade intra-hospital está compreendida entre 3% a 4% dos pacientes admitidos por IC aguda em estudos prévios35enquanto que a taxa de mortalidade no registro BREATHE supera o dobro do encontrado nos registros americanos e europeus. No estudo ADHERE, a mortalidade intra-hospitalar foi de 4,0% e o tempo médio de permanência hospitalar foi de 4,3 dias36. Semelhante ao registro americano, o Euro Heart Survey apresentou uma taxa de mortalidade total intra-hospitalar de 3,8%, sendo 90,1% de causa cardiovascular. Taxas de mortalidade mais altas foram observadas na presença de choque cardiogênico37.
Algumas limitações inerentes à concepção do BREATHE devem ser consideradas na interpretação dos seus resultados. O diagnóstico da IC aguda foi baseado apenas nos critérios de Boston e não foi definida a data de início dos sintomas, não sendo possível diferenciar a IC aguda nova da IC crônica agudizada. Por conseguinte, por haver heterogeneidade da população, a análise do tratamento e prognóstico exigirá apropriado ajuste. Além disso, o número de dados faltantes (missing) foi elevado para algumas variáveis de preenchimento não obrigatório, interferindo nos resultados encontrados.
O BREATHE representa o primeiro registro brasileiro de IC aguda e seus resultados apontam para a alta taxa de mortalidade intra-hospitalar relacionada às baixas taxas de terapia baseadas em evidências prescritas ao longo da internação, assim como baixo percentual de orientações médicas na alta hospitalar de pacientes internados por IC aguda em diferentes regiões do Brasil. Novas estratégias devem ser adotadas a fim de assegurar melhoria na qualidade do atendimento hospitalar desta doença.