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Imigração, saúde global e direitos humanos

Imigração, saúde global e direitos humanos

Autores:

Miriam Ventura

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos de Saúde Pública

versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464

Cad. Saúde Pública vol.34 no.4 Rio de Janeiro 2018 Epub 29-Mar-2018

http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00054118

Com maior ou menor intensidade as migrações marcaram a história de diversos países, com diferentes repercussões culturais, sociais e políticas. O fenômeno se caracteriza por sua “temporalidade histórica” 1 e natureza mutante, que exige análise crítica dos contextos em que emergem os deslocamentos humanos, das dinâmicas, tensões, condições e repercussões para os indivíduos, as comunidades e os estados nacionais envolvidos - de origem e de destino.

Os fluxos migratórios contemporâneos têm sido mais numerosos, rápidos, diversificados e complexos do que no passado, atingindo todos os continentes, classes sociais, gêneros, etnias/raças, gerações. As razões e motivações para os deslocamentos são igualmente diversas. Os conflitos armados e políticos, e os desastres ambientais têm forçado os deslocamentos de grandes contingentes populacionais. A busca pessoal por melhores perspectivas e condições de vida igualmente motiva migrações em situações nem sempre menos dramática do que a dos refugiados.

A Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 1951, é um exemplo importante de instrumento jurídico de regulação do fluxo migratório, que visa a garantir os direitos humanos daqueles forçados a migrar e estabelecer deveres de solidariedade aos países. No contexto atual, o estatuto se mostra insuficiente para responder às dinâmicas cada vez mais complexas em vista “da real insuficiência fática das medidas de controle de fronteiras2 (p. 182) e das novas circunstâncias.

No Brasil, a migração dos haitianos trouxe a discussão sobre a aplicação do estatuto dos refugiados (Lei nº 9.474/1997) no caso da motivação não política. Além dos obstáculos legais relativos à documentação, revelou-se a ausência de estratégias e políticas para o acolhimento, atitudes discriminatórias e inúmeras dificuldades de integração. Atores da sociedade civil mobilizaram-se em prol de uma nova Lei de Migração nº 13.445, de 21 de novembro de 2017, que incorporou avanços importantes, imediatamente neutralizados e desvirtuados pelo Decreto Presidencial nº 9.199, de 20 de novembro de 2017 3.

A condição de saúde dos imigrantes é um aspecto central para a sua inserção e integração à sociedade. Exige compreender o processo saúde, doença e cuidado desses grupos, e refletir sobre as respectivas responsabilidades dos Estados. Alguns desafios são apontados: a sustentabilidade dos sistemas de saúde nacionais; o efetivo acesso à atenção integral de saúde de nacionais e imigrantes; os meios e recursos adequados para o enfrentamento das doenças transmissíveis e não transmissíveis de impacto local e mundial; captação e alocação de recursos para pesquisa e desenvolvimento científico e tecnológico que atendam à maioria da população mundial.

Na atenção à saúde observa-se que um dos alvos das reformas dos sistemas tem sido a redução da cobertura populacional, com alguns países optando pela “exclusão de imigrantes ilegais e residentes sem qualquer inscrição na Previdência Social4 (p. 2276), atingindo a universalidade do direito humano à saúde. Mesmo em situações em que não há restrições legais expressas estabelecidas, o acesso dos imigrantes à saúde é dificultado por outros fatores (culturais, gênero, raça/etnia, classe social), que apontam que as ações necessárias à integração do imigrante devem considerar aspectos mais amplos.

O Espaço Temático: Populações Refugiadas e Saúde reúne três análises que evidenciam injustiças e desigualdades sociais em saúde, perpetradas por práticas políticas, econômicas e culturais de dominação e exploração de territórios e de grupos de imigrantes 5,6,7. As graves deficiências e insuficiências das leis e políticas migratórias também apontadas denunciam violações aos direitos humanos dos imigrantes e nos levam a refletir sobre o elevado valor ético da saúde, a necessidade de mobilizarmos a solidariedade social, e de exigirmos ações políticas que vinculem a saúde dos imigrantes, sem discriminações, às reivindicações democráticas por cidadania e justiça social.

A imigração constitui, no século XXI, a principal fronteira dos direitos humanos, colocando à prova a capacidade do mundo de universalizar estes direitos e dos países efetivá-los nos seus próprios territórios 2. A “crise do capitalismo democrático” 4 globalizada tem implicado pressões econômicas, demográficas, epidemiológicas e políticas, e impulsionado políticas estatais nem sempre favoráveis aos direitos humanos dos imigrantes.

As evidências apresentadas no Espaço Temático sugerem uma necessária articulação entre direitos humanos e saúde global para análise dos problemas de saúde imigratórios, e nos remetem ao referencial proposto por Mann e colaboradores, nos anos 1990 8, para responder aos desafios da epidemia de HIV/aids. Essa proposta teórico-metodológica de cunho ético-político tem repercutido positivamente para identificar e atender demandas e necessidades, encaminhar conflitos em saúde, e ampliar a pesquisa em saúde.

Explorar essa articulação e vinculação entre direitos humanos e saúde global pode ser uma chave para avançar nas questões de saúde imigratórias, e fortalecer o argumento de que a saúde das pessoas deve ser sustentada por um esforço coletivo internacional, cooperativo e sem fronteiras, que permita a reorganização dos países e uma governança em saúde, que ultrapasse as ações de controle das epidemias e pandemias. Espera-se que essa proposta fortaleça as recomendações internacionais em prol dos sistemas universais de saúde e das necessárias mudanças de políticas e práticas de saúde locais em relação aos imigrantes.

Que a leitura dos artigos nos estimule a avançar na busca de abordagens inovadoras, que ampliem nossa compreensão, e na produção de evidências científicas das injustiças e desigualdades sociais em saúde de territórios e de grupos de imigrantes, em diferentes culturas e contextos sociopolíticos, fundamentais para o enfrentamento das questões de poder e dominação intrínsecas ao fenômeno migratório.

REFERÊNCIAS

1. Vasconcellos MP. Na velocidade do mundo: migrações e mudanças sociais. Saúde Soc 2013; 22:279-82.
2. Schwarz RG. Imigração: a fronteira dos direitos humanos no século XXI. Revista Internacional de Direito e Cidadania 2009; (5):181-5.
3. Ramos AC, Rios A, Clève C, Ventura D, Granja JG, Morais JLB, et al. Regulamento da nova Lei de Migração é contra legem e praeter legem. Consultor Jurídico 2017; 23 nov. .
4. Giovanella L, Stegmüller K. The financial crisis and health care systems in Europe: universal care under threat? Trends in health sector reforms in Germany, the United Kingdom, and Spain. Cad Saúde Pública 2014; 30:2263-81.
5. Goulart BG. Multiculturality skills, health care and communication disorders. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00217217.
6. Castiglione DP. Border policies and health of refugee populations. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00006018.
7. Pacheco-Coral AP. Statelessness, exodus, and health: forced internal displacement and health services. Cad Saúde Pública 2018; 34:e00027518.
8. Gruskin S, Tarantola D. Um panorama sobre saúde e direitos humanos. In: Paiva V, Ayres JRCM, Buchalla CM, organizadores. Vulnerabilidade e direitos humanos. Prevenção e promoção da saúde. Livro I. Curitiba: Juruá; 2012. p. 71-94.