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Impacto da marcha com estimulação elétrica neuromuscular no perfil urodinâmico em pacientes com lesão raquimedular cervical alta

Impacto da marcha com estimulação elétrica neuromuscular no perfil urodinâmico em pacientes com lesão raquimedular cervical alta

Autores:

Carlos Arturo Levi D’Ancona,
Alberto Clilclet,
Lia Yumi Ikari,
Renato Jesus Pedro,
Walter da Silva Júnior

ARTIGO ORIGINAL

Einstein (São Paulo)

versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385

Einstein (São Paulo) vol.8 no.3 São Paulo jul./set. 2010

http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082010ao1691

INTRODUÇÃO

Lesão medular cervical alta que resulta em quadriplegia inclui dano ao sistema nervoso motor, sensorial e simpático (SNS). Os pacientes tetraplégicos perdem o controle voluntário central e espinhal autonômico da função vesical, que define a entidade chamada bexiga neurogênica. O centro miccional da medula espinhal está primariamente localizado no nível S2-S4 e depende da integridade das vias neurológicas espinhais para exercer controle perfeito e sincronizado do esvaziamento vesical e armazenamento de urina(1). Após o período de choque medular, as lesões suprassacrais completas (nível S2-S4) resultam classicamente em hiperatividade do detrusor e dissinergia do esfíncter do detrusor. A maioria das lesões da medula cervical leva a hiperatividade/dissinergia do detrusor (42 e 68%), baixa complacência vesical (44%), e alta pressão de perda do detrusor (40%)(2). A avaliação urodinâmica é o padrão-ouro para avaliação e definição de disfunção do trato urinário inferior(3).

Treinamento de marcha com estimulação elétrica neuromuscular (EENM) em indivíduos quadriplégicos é capaz de melhorar os movimentos (mesmo em quadriplégicos com lesões completas), as respostas metabólicas e cardiorrespiratórias e a densidade mineral óssea. Há relatos de que esses achados estão associados com melhor coordenação das funções voluntárias e autonômicas dos músculos e vias nervosas; no entanto, não há um entendimento unânime sobre como e por que isso acontece(46).

Os efeitos da estimulação elétrica neuromuscular no trato urinário inferior não foram estudados até o momento. O objetivo deste estudo foi avaliar o impacto da marcha com estimulação elétrica neuromuscular em estudos urodinâmicos de pacientes com bexiga neurogênica secundária a trauma de medula cervical alta.

MÉTODOS

Após aprovação pelo Comitê de Ética local, oito pacientes foram incluídos no estudo. Todos os indivíduos foram instruídos quanto aos objetivos e riscos da investigação e assinaram o termo de consentimento livre para este estudo.

Oito pacientes masculinos quadriplégicos (idade média: 33,5 anos) com lesão cervical completa variando de C4 a C7 formaram a população do estudo.

Todos os pacientes realizaram apenas fisioterapia convencional antes do início da investigação. Os critérios de inclusão eram neurônios motores inferiores intactos à estimulação elétrica superficial que permitissem contração muscular e marcha, com 30 a 50% de suporte de peso corporal (SPC) por 20 minutos consecutivos, sem lesão de pele ou úlcera cutânea; sem história de doença cardiopulmonar e evidência radiológica e clínica de integridade dos membros inferiores (sem sinais de fratura, alterações articulares degenerativas ou instabilidade articular).

Os pacientes foram submetidos a treinamento de marcha na esteira com estimulação elétrica neuromuscular por 6 meses, 2 vezes por semana, 20 minutos por sessão, após terem o quadríceps e o tibial anterior estimulados por 5 meses para suportar pelo menos 50% do peso corporal (treinamento pré-marcha).

A EENM foi feita com estimulador elétrico de quatro canais que fornecia um sinal de 25 Hz com pulsos monofásicos retangulares de 300 μs de duração e intensidade máxima de 200 V (carga de 1 kΩ).

Foram realizados exames urodinâmicos com uma unidade urodinâmica assistida por computador (Dynamed – Brasil). Os pacientes foram posicionados em posição supina. A bexiga foi cheia e a pressão intravesical registrada via uma sonda transuretral 8F de duplo lúmen. A pressão abdominal foi registrada por uma sonda retal. Para encher a bexiga foi utilizado soro fisiológico estéril à temperatura corporal, a uma velocidade de 20 ml/min até alcançar a pressão de perda do detrusor ou até o paciente ter a sensação que normalmente levaria ao esvaziamento da bexiga. A pressão sanguínea foi medida durante todo o procedimento. Caso ocorressem sinais de disreflexia vegetativa, o enchimento vesical era interrompido imediatamente. O teste urodinâmico foi realizado antes da estimulação elétrica neuromuscular e seis meses depois do início do treinamento.

Os parâmetros urodinâmicos avaliados no estudo antes e depois do treinamento de marcha foram capacidade vesical máxima, complacência vesical, contrações involuntárias do detrusor (CID), amplitude das contrações involuntárias e volume da bexiga que desencadeava o início de CID. Foi feita análise estatística de medidas repetidas com ANOVA ajustado pelo tempo de lesão e idade do paciente para comparar as variáveis urodinâmicas. Os valores eram considerados significantes quando p < 0,05.

RESULTADOS

Idade, peso e altura médios dos pacientes foram, respectivamente, 33,5 anos (de 22 a 45), 63,52 ± 9,41 kg e 176,28 ± 5,28 cm. Tempo médio após lesão cervical foi de 74,63 meses. Um paciente apresentava uma lesão cervical completa em C4 (12,5%), três em C5 (37,5%), três em C6 (37,5%) e uma em C7 (12,5%).

A capacidade vesical máxima média, antes e depois da estimulação elétrica na marcha foi, respectivamente, 247 ± 154 ml e 288 ± 131 ml (p = 0,5389).

A complacência vesical média, pré- e pós-estimulação, foi respectivamente 12,33±19,48 cm H2O/ml e 17,13±12, 96 cm H2O/ml (p= 0,6883).

O número médio de contrações involuntárias do detrusor durante a fase de enchimento vesical encontrado nos exames antes do tratamento foi 6,25 ± 4,4, e não foi significantemente diferente nos exames após tratamento, com uma média de 5,00 ± 5,10 (p = 0,5840). De acordo com os achados mencionados acima, tampouco houve mudanças significativas no volume vesical que desencadeou o início das CID; estudos antes do tratamento mostraram a primeira contração com um volume vesical médio de 190 ± 147 ml e exames após treinamento com 227 ± 125 ml (p = 0,8797).

A amplitude das contrações pré e pós-estimulação foi 64 ± 25,75 cm H2O e 58,50 ± 41.19 cm H2O, respectivamente (p = 0,1386).

DISCUSSÃO

Vários estudos demonstraram que o uso da estimulação elétrica neuromuscular durante o exercício em pacientes tetraplégicos é capaz de melhorar sua capacidade física em função de adaptações cardiovasculares(7, 8), por meio de aumento do retorno venoso, débito e frequência cardíacos, graças à retirada parassimpático vagal e contração muscular. Mais ainda, muitos estudos relataram o efeito da EENM no aumento da força e resistência de músculos paralisados(912).

Além disso, estudos anteriores demonstraram que o treinamento de marcha por EENM pode elevar os valores da pressão sanguínea através do aumento da frequência e débito cardíacos(4). Esse treinamento aumentou o débito de oxigênio (VO2) em 36%, a produção de CO2 em 42,97%, ventilação pulmonar em 30,48% e pressão sistólica em 4,8%(5). Pacientes com quadriplegia completa têm uma disfunção autonômica simpática, e alteram a resposta cardiológica normal durante o exercício, que inclui respostas de vasoconstrição e aumento em retorno venoso, frequência e débito cardíacos. Isso significa que o treinamento da marcha em esteira é capaz de aumentar as respostas metabólica e cardiorespiratória em pacientes com quadriplegia completa, independentemente de deficiências autonômicas simpáticas e paralisia muscular extensa.

Esses pacientes também tiveram um aumento eficaz na densidade mineral óssea, sendo que 81,8% apresentaram aumento significativo na formação óssea e 66,7% diminuição significativa de marcadores de reabsorção óssea, assim reduzindo o risco de fraturas em ossos osteoporóticos(6).

Embora haja evidência científica de que os pacientes com lesões cerebrais e medulares se beneficiem da EENM em relação aos parâmetros de reabilitação muscular e cardiorespiratória(13), até hoje não há relato do efeito da neuroestimulação na função do trato urinário inferior.

Pacientes com lesões medulares e consequente hiperatividade do detrusor geralmente apresentam incontinência, infecção recorrente de trato urinário, reservatório urinário com alta pressão e disreflexia autonômica. Todos esses sinais e sintomas devastadores, se não forem tratados adequadamente, levam à perda de função renal a longo prazo.

Várias técnicas de estímulo neuromuscular foram desenvolvidas para tratar bexiga neurogênica secundária a lesão medular. Sauerwein et al. descreveram sua experiência com desaferentação sacral e implante de um estimulador de raiz anterior, que restabelece a função normal de reservatório e continência urinária, interrompendo a atividade reflexa, além de diminuir a frequência de infecções urinárias de 6,3 para 1,2 episódios por ano(14). Seguindo o mesmo raciocínio, Groat et al. desenvolveram uma via reflexa cruzada pele-sistema nervoso central e bexiga, a qual permitiu aos pacientes iniciarem a micção voluntariamente estimulando o dermátomo L5 ipsilateral, tendo resultados promissores(15).

Outros procedimentos menos invasivos mostraram-se também eficazes para melhorar as consequências da hiperatividade do detrusor. O estímulo do nervo tibial posterior é um bom exemplo de uma técnica minimamente invasiva com resultados significativos na função do trato urinário inferior(16).

Este estudo não mostrou diferenças significantes nos parâmetros urodinâmicos antes e depois do treinamento de marcha com estimulação elétrica neuromuscular. Como podemos prever, uma explicação razoável para a resposta modesta é que as fibras sacrais não foram diretamente estimuladas por EENM e, portanto, não desencadearam uma resposta vesical de forma direta.

O estudo demonstrou, no entanto, que o treinamento de marcha com EENM pode ser benéfico para o trato urinário inferior. É importante notar que os achados estatísticos foram prejudicados pelo tamanho da população estudada, sendo que um número maior de indivíduos foi incluído no programa posteriormente.

Sabe-se que pacientes quadriplégicos têm melhoras nos sistemas osteomuscular e cardiorespiratório após treinamento de marcha com EENM. Esse campo promissor e minimamente invasivo necessita de mais estudos para confirmar os possíveis benefícios no trato urinário inferior.

CONCLUSÃO

Este estudo demonstrou que a EENM na marcha pode ser benéfica para o trato urinário inferior.

REFERÊNCIAS

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