versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.8 no.3 São Paulo jul./set. 2010
http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082010ao1691
Lesão medular cervical alta que resulta em quadriplegia inclui dano ao sistema nervoso motor, sensorial e simpático (SNS). Os pacientes tetraplégicos perdem o controle voluntário central e espinhal autonômico da função vesical, que define a entidade chamada bexiga neurogênica. O centro miccional da medula espinhal está primariamente localizado no nível S2-S4 e depende da integridade das vias neurológicas espinhais para exercer controle perfeito e sincronizado do esvaziamento vesical e armazenamento de urina(1). Após o período de choque medular, as lesões suprassacrais completas (nível S2-S4) resultam classicamente em hiperatividade do detrusor e dissinergia do esfíncter do detrusor. A maioria das lesões da medula cervical leva a hiperatividade/dissinergia do detrusor (42 e 68%), baixa complacência vesical (44%), e alta pressão de perda do detrusor (40%)(2). A avaliação urodinâmica é o padrão-ouro para avaliação e definição de disfunção do trato urinário inferior(3).
Treinamento de marcha com estimulação elétrica neuromuscular (EENM) em indivíduos quadriplégicos é capaz de melhorar os movimentos (mesmo em quadriplégicos com lesões completas), as respostas metabólicas e cardiorrespiratórias e a densidade mineral óssea. Há relatos de que esses achados estão associados com melhor coordenação das funções voluntárias e autonômicas dos músculos e vias nervosas; no entanto, não há um entendimento unânime sobre como e por que isso acontece(4–6).
Os efeitos da estimulação elétrica neuromuscular no trato urinário inferior não foram estudados até o momento. O objetivo deste estudo foi avaliar o impacto da marcha com estimulação elétrica neuromuscular em estudos urodinâmicos de pacientes com bexiga neurogênica secundária a trauma de medula cervical alta.
Após aprovação pelo Comitê de Ética local, oito pacientes foram incluídos no estudo. Todos os indivíduos foram instruídos quanto aos objetivos e riscos da investigação e assinaram o termo de consentimento livre para este estudo.
Oito pacientes masculinos quadriplégicos (idade média: 33,5 anos) com lesão cervical completa variando de C4 a C7 formaram a população do estudo.
Todos os pacientes realizaram apenas fisioterapia convencional antes do início da investigação. Os critérios de inclusão eram neurônios motores inferiores intactos à estimulação elétrica superficial que permitissem contração muscular e marcha, com 30 a 50% de suporte de peso corporal (SPC) por 20 minutos consecutivos, sem lesão de pele ou úlcera cutânea; sem história de doença cardiopulmonar e evidência radiológica e clínica de integridade dos membros inferiores (sem sinais de fratura, alterações articulares degenerativas ou instabilidade articular).
Os pacientes foram submetidos a treinamento de marcha na esteira com estimulação elétrica neuromuscular por 6 meses, 2 vezes por semana, 20 minutos por sessão, após terem o quadríceps e o tibial anterior estimulados por 5 meses para suportar pelo menos 50% do peso corporal (treinamento pré-marcha).
A EENM foi feita com estimulador elétrico de quatro canais que fornecia um sinal de 25 Hz com pulsos monofásicos retangulares de 300 μs de duração e intensidade máxima de 200 V (carga de 1 kΩ).
Foram realizados exames urodinâmicos com uma unidade urodinâmica assistida por computador (Dynamed – Brasil). Os pacientes foram posicionados em posição supina. A bexiga foi cheia e a pressão intravesical registrada via uma sonda transuretral 8F de duplo lúmen. A pressão abdominal foi registrada por uma sonda retal. Para encher a bexiga foi utilizado soro fisiológico estéril à temperatura corporal, a uma velocidade de 20 ml/min até alcançar a pressão de perda do detrusor ou até o paciente ter a sensação que normalmente levaria ao esvaziamento da bexiga. A pressão sanguínea foi medida durante todo o procedimento. Caso ocorressem sinais de disreflexia vegetativa, o enchimento vesical era interrompido imediatamente. O teste urodinâmico foi realizado antes da estimulação elétrica neuromuscular e seis meses depois do início do treinamento.
Os parâmetros urodinâmicos avaliados no estudo antes e depois do treinamento de marcha foram capacidade vesical máxima, complacência vesical, contrações involuntárias do detrusor (CID), amplitude das contrações involuntárias e volume da bexiga que desencadeava o início de CID. Foi feita análise estatística de medidas repetidas com ANOVA ajustado pelo tempo de lesão e idade do paciente para comparar as variáveis urodinâmicas. Os valores eram considerados significantes quando p < 0,05.
Idade, peso e altura médios dos pacientes foram, respectivamente, 33,5 anos (de 22 a 45), 63,52 ± 9,41 kg e 176,28 ± 5,28 cm. Tempo médio após lesão cervical foi de 74,63 meses. Um paciente apresentava uma lesão cervical completa em C4 (12,5%), três em C5 (37,5%), três em C6 (37,5%) e uma em C7 (12,5%).
A capacidade vesical máxima média, antes e depois da estimulação elétrica na marcha foi, respectivamente, 247 ± 154 ml e 288 ± 131 ml (p = 0,5389).
A complacência vesical média, pré- e pós-estimulação, foi respectivamente 12,33±19,48 cm H2O/ml e 17,13±12, 96 cm H2O/ml (p= 0,6883).
O número médio de contrações involuntárias do detrusor durante a fase de enchimento vesical encontrado nos exames antes do tratamento foi 6,25 ± 4,4, e não foi significantemente diferente nos exames após tratamento, com uma média de 5,00 ± 5,10 (p = 0,5840). De acordo com os achados mencionados acima, tampouco houve mudanças significativas no volume vesical que desencadeou o início das CID; estudos antes do tratamento mostraram a primeira contração com um volume vesical médio de 190 ± 147 ml e exames após treinamento com 227 ± 125 ml (p = 0,8797).
A amplitude das contrações pré e pós-estimulação foi 64 ± 25,75 cm H2O e 58,50 ± 41.19 cm H2O, respectivamente (p = 0,1386).
Vários estudos demonstraram que o uso da estimulação elétrica neuromuscular durante o exercício em pacientes tetraplégicos é capaz de melhorar sua capacidade física em função de adaptações cardiovasculares(7, 8), por meio de aumento do retorno venoso, débito e frequência cardíacos, graças à retirada parassimpático vagal e contração muscular. Mais ainda, muitos estudos relataram o efeito da EENM no aumento da força e resistência de músculos paralisados(9–12).
Além disso, estudos anteriores demonstraram que o treinamento de marcha por EENM pode elevar os valores da pressão sanguínea através do aumento da frequência e débito cardíacos(4). Esse treinamento aumentou o débito de oxigênio (VO2) em 36%, a produção de CO2 em 42,97%, ventilação pulmonar em 30,48% e pressão sistólica em 4,8%(5). Pacientes com quadriplegia completa têm uma disfunção autonômica simpática, e alteram a resposta cardiológica normal durante o exercício, que inclui respostas de vasoconstrição e aumento em retorno venoso, frequência e débito cardíacos. Isso significa que o treinamento da marcha em esteira é capaz de aumentar as respostas metabólica e cardiorespiratória em pacientes com quadriplegia completa, independentemente de deficiências autonômicas simpáticas e paralisia muscular extensa.
Esses pacientes também tiveram um aumento eficaz na densidade mineral óssea, sendo que 81,8% apresentaram aumento significativo na formação óssea e 66,7% diminuição significativa de marcadores de reabsorção óssea, assim reduzindo o risco de fraturas em ossos osteoporóticos(6).
Embora haja evidência científica de que os pacientes com lesões cerebrais e medulares se beneficiem da EENM em relação aos parâmetros de reabilitação muscular e cardiorespiratória(13), até hoje não há relato do efeito da neuroestimulação na função do trato urinário inferior.
Pacientes com lesões medulares e consequente hiperatividade do detrusor geralmente apresentam incontinência, infecção recorrente de trato urinário, reservatório urinário com alta pressão e disreflexia autonômica. Todos esses sinais e sintomas devastadores, se não forem tratados adequadamente, levam à perda de função renal a longo prazo.
Várias técnicas de estímulo neuromuscular foram desenvolvidas para tratar bexiga neurogênica secundária a lesão medular. Sauerwein et al. descreveram sua experiência com desaferentação sacral e implante de um estimulador de raiz anterior, que restabelece a função normal de reservatório e continência urinária, interrompendo a atividade reflexa, além de diminuir a frequência de infecções urinárias de 6,3 para 1,2 episódios por ano(14). Seguindo o mesmo raciocínio, Groat et al. desenvolveram uma via reflexa cruzada pele-sistema nervoso central e bexiga, a qual permitiu aos pacientes iniciarem a micção voluntariamente estimulando o dermátomo L5 ipsilateral, tendo resultados promissores(15).
Outros procedimentos menos invasivos mostraram-se também eficazes para melhorar as consequências da hiperatividade do detrusor. O estímulo do nervo tibial posterior é um bom exemplo de uma técnica minimamente invasiva com resultados significativos na função do trato urinário inferior(16).
Este estudo não mostrou diferenças significantes nos parâmetros urodinâmicos antes e depois do treinamento de marcha com estimulação elétrica neuromuscular. Como podemos prever, uma explicação razoável para a resposta modesta é que as fibras sacrais não foram diretamente estimuladas por EENM e, portanto, não desencadearam uma resposta vesical de forma direta.
O estudo demonstrou, no entanto, que o treinamento de marcha com EENM pode ser benéfico para o trato urinário inferior. É importante notar que os achados estatísticos foram prejudicados pelo tamanho da população estudada, sendo que um número maior de indivíduos foi incluído no programa posteriormente.
Sabe-se que pacientes quadriplégicos têm melhoras nos sistemas osteomuscular e cardiorespiratório após treinamento de marcha com EENM. Esse campo promissor e minimamente invasivo necessita de mais estudos para confirmar os possíveis benefícios no trato urinário inferior.
Este estudo demonstrou que a EENM na marcha pode ser benéfica para o trato urinário inferior.