versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.24 no.12 Rio de Janeiro dez. 2019 Epub 25-Nov-2019
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320182412.23132019
O Brasil vive um cenário complexo tanto do ponto de vista econômico como político, com repercussões diretas sobre o setor saúde. Os reflexos da crise econômica mundial que atingiu fortemente diversos países em 2008 foram percebidos no Brasil a partir de 2011, com aumento do desemprego e diminuição da demanda pelas indústrias. Esse quadro foi agravado pela crise política em que disputas do legislativo e executivo, de alguma forma moduladas pelo judiciário, levaram a uma desestabilização institucional e consequente impeachment de Dilma Roussef em 2016, agravando o cenário de instabilidade política no país.
Contextos como estes, que envolvem recessão econômica e crise política, causam desestabilização das instituições e diminuição de verbas para áreas fundamentais como a saúde1,2. Esses ajustes fiscais, preferencialmente por cortes de gastos, são adotados com a justificativa de ajustar a economia e promover o crescimento do país3. O maior exemplo disso no Brasil deu-se pela aprovação da Emenda Constitucional nº 95, em dezembro de 2016, que trata do Novo Regime Fiscal (NRF)4. A contar de 16 de dezembro de 2016, quando foi aprovado, foram inseridos no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias vários dispositivos que programaram um novo regime fiscal com um limite para os gastos do governo federal, limite este do qual nem os setores da Saúde e da Educação foram poupados, e que vigorará pelos próximos 20 (vinte) anos.
Observa-se, na conjuntura internacional, que a adoção de políticas de austeridade fiscal que atingem o setor saúde não é novidade no mundo capitalista atual. Como resposta à crise financeira de 2008, por exemplo, países com Sistemas Universais de Saúde como a Inglaterra, Alemanha e Espanha adotaram políticas de austeridade com contenção de gastos públicos em saúde objetivando o controle do déficit público1,5-7. Entretanto, no caso da política de austeridade brasileira, os gastos ficarão estagnados em termos reais e por um período pré-fixado de duas décadas, sendo mais radical do que medidas adotadas pelos outros países.
Se crises econômicas já são suficientes para piorar a saúde das pessoas, por aumentarem a pobreza e alterarem outros determinantes sociais da saúde, as políticas de austeridade reforçam esse processo, ao reduzirem a proteção social e diminuírem o aporte de recursos ao sistema de saúde3. Nesse contexto, pesquisas recentes já apontam piora de indicadores básicos de saúde brasileiros após o vigor do novo regime fiscal, sugerindo que a redução de investimentos em saúde já se faz sentir nas políticas de promoção, prevenção e atenção2,8. No caso específico da saúde bucal, pode-se antever um cenário ainda mais danoso, tendo em vista que limitações da oferta e do acesso a serviços em saúde bucal fazem com que a cárie dentária não tratada seja, ainda nos dias atuais, a morbidade mais comum entre todas as doenças no mundo, fato que a torna um fardo econômico considerável para o indivíduo e para a sociedade9–12. Entretanto, mesmo diante desse quadro mundial, o Brasil é, atualmente, o único país do mundo a inserir em seu sistema público de saúde (Sistema Único de Saúde - SUS)13 atenção e assistência à saúde bucal para mais de 200 milhões de habitantes, de forma pública, universal e em diferentes níveis de atenção.
As recentes mudanças nas diretrizes das principais políticas públicas, incluindo a política de saúde bucal, podem comprometer gravemente os avanços alcançados. A continuidade da Política Nacional de Saúde Bucal (PNSB) ou Programa Brasil Sorridente depende de vontade política e movimentação popular, pois tradicionalmente no Brasil, programas de governo não são sinônimos de programas de Estado14,15. Considerando que o aporte de recursos para a saúde bucal foi historicamente negligenciado antes da existência do Brasil Sorridente, pode-se supor por um cenário de desafios.
Outros países passaram por crises econômicas importantes e os resultados experimentados pelas ações frente ao setor saúde, tenham sido bem ou mal sucedidos, podem servir de base para o planejamento de medidas nacionais, se nos atentarmos para as devidas especificidades. Diante do exposto, o objetivo deste estudo foi verificar, a partir de uma revisão integrativa da literatura, qual o impacto das crises financeiras sobre os indicadores de saúde bucal. Em face dos achados observou-se como os países propuseram enfrentamentos a este cenário e pretendeu-se uma discussão crítico-reflexiva perante o atual cenário brasileiro.
A revisão integrativa da literatura foi conduzida e relatada em concordância com o Pre-ferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses (PRISMA) Statement16 e a pergunta da pesquisa foi: Qual o impacto das crises financeiras e políticas de austeridade sobre os indicadores de saúde bucal?
A partir da pergunta foram pesquisados por termos específicos extraídos dos Mesh e Emtree para possibilitar a estratégia adequada. Uma busca sistemática foi conduzida em julho de 2019 nas plataformas de dados eletrônicas, incluindo PubMed, EMBASE, Scopus e Lilacs para identificar estudos que analisaram a associação entre as crises financeiras e as políticas de austeridade com os indicadores de saúde bucal. Não houve restrição de idioma ou data e a combinação dos termos com seus sinônimos, bem como os resultados encontrados para cada plataforma de base eletrônica no dia da busca está apresentado detalhadamente no Quadro 1.
Quadro 1 Estratégias de buscas e resultados nas bases de dados indexadas.
Data da busca | Base de Dados | Detalhes da Estratégia | Resultados |
---|---|---|---|
15 de julho de 2019 | PUBMED | ((Economic Recession OR Economic Recessions Recessions, Economic Recession, Economic OR Economic Depression OR Depression, Economic OR Depressions, Economic OR Economic Depressions OR austerity policy)) AND (Oral Health OR Health, Oral OR Stomatognathic Diseases OR Disease, Stomatognathic OR Diseases, Stomatognathic OR Stomatognathic Disease OR Mouth and Tooth Diseases OR Dental Diseases OR Dental Disease OR Disease, Dental OR Diseases, Dental) | 141 |
15 de julho de 2019 | EMBASE | 'economic recession'/exp AND ('mouth disease'/exp OR 'dental health'/exp) | 09 |
15 de julho de 2019 | Lilacs | (tw:(Economic Recession OR Economic Recessions Recessions, Economic Recession, Economic OR Economic Depression OR Depression, Economic OR Depressions, Economic OR Economic Depressions OR austerity policy)) AND (tw:(Oral Health)) | 14 |
15 de julho de 2019 | SCOPUS | (TITLE-ABS-KEY("Economic Recession" OR "Economic Recessions" OR "Economic Depression" OR "austerity policy") AND TITLE-ABS-KEY("Oral Health" OR "Stomatognathic Diseases" OR "Mouth and Tooth Diseases" OR "Dental Disease")) | 16 |
Total | 180 |
Também foi feito busca na literatura cinzenta e contato com pesquisadores da área para recuperação de estudos não publicados (Quadro 2).
Quadro 2 Estratégias de buscas e resultados nas bases não oficiais e literatura cinzentas.
Data da busca | Base de Dados | Detalhes da Estratégia | Resultados |
---|---|---|---|
15 de julho de 2019 | Google Scholar | Economic Recession and Oral Health | 100 (10 primeiras páginas) |
Total | 100 |
Por fim, as referências dos artigos relevantes incluídos para leitura do texto completo também foram checadas para avaliar a inclusão de estudos adicionais.
Somente foram incluídos estudos primários que associassem especificamente os impactos de uma crise econômica e/ou política de austeridade sobre indicadores de saúde bucal.
Foram excluídos estudos de revisão, cartas, editoriais e artigos de opinião.
A busca nas bases de dados resultou em 180 artigos. Foram feitas buscas adicionais no Google Scholar, incluindo a análise das 10 primeiras páginas (100 artigos). As 262 referências foram então exportadas para o Rayyan QCRI17, ferramenta utilizada para remoção das duplicatas e para o processo de triagem dos títulos e resumos de acordo com os critérios de elegibilidade. Ao final de todo o processo de seleção 9 estudos foram incluídos, conforme esquematização apresentada na Figura 1.
Uma planilha em Excel, previamente elaborada, foi utilizada para extrair os seguintes dados: (autor/ano, crise econômica avaliada, impacto em saúde bucal avaliado, conclusões dos autores).
O Quadro 3 apresenta a caracterização dos nove estudos incluídos, contendo informações sobre o desenho e objetivo do estudo, crise econômica, país e indicador de saúde bucal avaliado. A recente crise econômica que afetou os Estados Unidos foi a mais avaliada (04 estudos). Outros países avaliados foram: Islândia (01 estudo), Finlândia (01 estudo), Grécia (01 estudo) e Espanha (01 artigo). Um estudo se propôs a avaliar o efeito da crise econômica sobre 23 países europeus. Não foi encontrado nenhum estudo avaliando o contexto brasileiro.
Os principais indicadores avaliados foram o acesso aos serviços de saúde bucal e a cárie não tratada. Somente um estudo avaliou como indicador a incidência de fraturas maxilofaciais.
Quadro 3 Caracterização dos estudos incluídos conforme critérios de elegibilidade.
Autor, ano | Desenho do estudo | Objetivo | Crise econômica considerada | País | Indicador avaliado |
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Suominen-Taipale e Widström, 199818 | Observacional | Determinar se a recessão econômica na Finlândia durante o início da década de 1990 afetou o uso de serviços odontológicos. | 1991-1994 | Finlândia | Uso dos serviços de saúde bucal |
Wall et al, 201219 | Observacional | Examinar as tendências na utilização de serviços de saúde bucal de 1997 a 2010, cobrindo um período antes, durante e após a recente recessão econômica. | Dezembro de 2007 a junho de 2009 | Estados Unidos | Uso dos serviços de saúde bucal |
Abasaeed et al, 201320 | Observacional | Determinar se a recessão econômica impactou no número de cárie não tratada em dentes decíduos. | Crise de 2007-2009 | Estados Unidos | Cárie não tratada |
McClure e Sæmundsson, 201421 | Observacional | Verificar as mudanças nos comportamentos de saúde bucal e a frequência de visitas ao dentista antes e depois do início do colapso econômico islandês de 2008 | 2008 | Islândia | Frequências de visitas e hábitos de escovação diária e uso de fio dental |
Rallis et al, 201522 | Observacional | Investigar o impacto da crise financeira na etiologia do trauma maxilofacial na Grécia e discutir os parâmetros sociais que podem influenciar os padrões de mudança da lesão. | Crise financeira de 2008 e medidas de austeridade adotadas em 2010 | Grécia | Fraturas maxilofaciais |
Beazoglou et al, 201523 | Observacional | Avaliar o impacto do aumento da taxa do Medicaid e a recessão econômica em relação a mudanças na quantidade de matrícula, nas taxas de utilização e no mix de serviços do Medicaid. | Crise de 2007-2009 | Estados Unidos | Uso dos serviços de saúde bucal (Medicaid) |
Fernández et al, 201524 | Observacional | Estimar os efeitos da crise sobre as necessidades de atenção odontológica não atendidas na Espanha e analisar a evolução das desigualdades socioeconômicas sobre essas necessidades não atendidas antes (2007) e durante (2011) da crise atual. | 2011 | Espanha | Cárie não tratada |
Elstad, 201725 | Observacional | Analisar as desigualdades de renda na autopercepção do acesso ao atendimento odontológico durante os anos de crise em 23 países europeus. | 2008-2013 | 23 países europeus | Cobertura (%) de atendimento odontológico |
Guay, 201926 | Observacional | Quantificar como a Grande Recessão impactou a demanda por cuidados em saúde bucal geral e especificamente ortodônticos. | Dezembro de 2007 a junho de 2009, período que ficou conhecido como Grande Recessão | Estados Unidos | 1. Frequências de visitas ao cirurgião-dentista (clínico-geral) 2. Frequências de visitas ao cirurgião-dentista (ortodontista) |
O Quadro 4 apresenta os resultados e conclusões encontrados pelos autores dos 9 estudos incluídos.
Quadro 4 Resultados e conclusões dos estudos realizados quanto ao impacto das crises econômicas sobre os indicadores de saúde bucal, ordenados por ano de publicação.
Autor, ano | Resultados principais | Conclusões |
---|---|---|
Suominen-Taipale e Widström, 199818 | A única alteração significativa durante os anos de estudo no uso de serviços odontológicos foi observada entre os grupos com direito a cuidados subsidiados, que foram aqueles que reduziram as consultas e procura por atendimento odontológico. | A competição intensificada causada pelo aumento do número de cirurgiões-dentistas provavelmente contrabalançou parcialmente os efeitos da redução econômica, entretanto essa disputa de mercado entre profissionais favoreceu pessoas com faixas de renda mais altas e maior escolaridade. |
Wall et al, 201219 | Entre as crianças, houve um aumento constante na utilização de serviços odontológicos entre 1997 e 2010, fato que coincidiu com uma mudança do seguro privado para o seguro público. Por outro lado, a população de adultos apresentou uma redução no acesso aos serviços odontológicos, particularmente quando se avalia os extratos mais pobres. Isso porque os serviços odontológicos para adultos não são um benefício obrigatório sob o Medicaid. |
A desaceleração econômica entre 2007 e 2009 não resultou em um declínio estatisticamente significativo na taxa de utilização de atendimento odontológico entre a população como um todo. Mas a tendência agregada mascara uma variação significativa por idade e nível de pobreza. |
Abasaeed et al, 201320 | Observou-se que um número menor de crianças está recebendo tratamento dentário necessário por causa da crise econômica de 2007-2009, fato que levou a uma redução nos ganhos recentes feitos no tratamento da cárie dentária em crianças na Carolina do Norte. | Os efeitos deletérios da Grande Recessão sobre a saúde bucal dos alunos do jardim de infância na Carolina do Norte eram pequenos, mas estatisticamente significativos. |
McClure e Sæmundsson, 201421 | No geral, não houve uma mudança geral nos comportamentos de saúde bucal (por exemplo, visitas ao dentista anuais e hábitos adequados de escovação/uso do fio dental). | Estudantes economicamente vulneráveis são menos propensos a procurar atendimento odontológico durante uma crise econômica, enquanto grupos específicos (homens e mulheres desempregadas) aumentam a prática de comportamentos mais saudáveis. |
Rallis et al, 201522 | A taxa de fraturas faciais causadas por acidentes automobilísticos antes do agravamento da crise foi significativamente reduzida no período pós-2010. Por sua vez, a incidência de fraturas por violência interpessoal aumentou durante o período da grave crise econômica. |
Os autores atribuem a diminuição na taxa de fraturas faciais causadas por acidentes automobilísticos aos altos valores no combustível, que levou a uma redução significativa do transporte individual. Em contrapartida, atribuem o aumento da incidência de fraturas por violência interpessoal ao aumento na pobreza e desemprego, o que gerou uma onda de violência no país. |
Beazoglou et al, 201523 | A combinação de aumento das taxas de reembolso do Medicaid para os dentistas inscritos, uma melhor administração do programa e a recessão econômica levaram a um aumento sem precedentes nas taxas de utilização dos serviços de saúde bucal vinculados ao programa. Especificamente, as taxas de utilização dos serviços aumentaram ao mesmo tempo em que os Estados Unidos experimentaram a pior recessão econômica desde a depressão de 1929. |
Embora fosse impossível quantificar os efeitos separados do aumento da taxa da recessão, há evidências indiretas consideráveis de que a recessão contribuiu para as taxas de utilização mais altas. |
Fernández et al, 201524 | Houve um aumento nas necessidades de Atenção à Saúde Bucal. O sistema de saúde espanhol oferece cobertura básica para atendimento odontológico (preventivo e restaurador) com financiamento público para crianças. No entanto, ao contrário de outros serviços de saúde, o atendimento odontológico financiado com recursos públicos para adultos é limitado ao atendimento de patologias agudas. |
A crise econômica trouxe consigo um aumento no número de desempregados e uma diminuição na renda disponível, ambos fatores determinantes das necessidades não satisfeitas de atendimento odontológico pela população de adultos. |
Elstad, 201725 | Houve uma perda de 3.1% na cobertura de atendimento odontológico considerando a média bruta dos países. Os resultados mostram que os países com maior cobertura básica de assistência odontológica - seja oriundo de saúde pública, seguro social compulsório ou ambos - tendem a ter melhor acesso a tratamento odontológico para estratos de baixa renda, bem como menores desigualdades relacionadas à renda na assistência odontológica. |
Os resultados indicam que os estratos de renda mais baixa (ou seja, o quarto mais baixo na hierarquia de renda do país) relataram que a assistência odontológica anterior foi significativamente mais frequente do que o estrato de renda superior, em todos os 23 países analisados, tanto em 2008/2009 quanto em 2012/2013. |
Guay, 201926 | A procura por serviços de saúde bucal declinou durante a recessão tanto para serviços generalistas como para serviços ortodônticos. Em 2015, o grupo de baixa renda acabou ligeiramente abaixo do nível de 2003, enquanto o grupo de renda mais alta experimentou um aumento constante no número de consultas odontológicas (clínica-geral) ao longo do período do estudo, terminando em um nível mais alto em 2015 do que em 2003. Para consultas ortodônticas, por sua vez, o grupo de renda mais alta mostrou um declínio na primeira metade do período do estudo e recuperou-se durante o segundo semestre. O grupo de baixa renda experimentou um ligeiro aumento nas visitas, terminando em uma taxa mais alta de visitas em 2015 do que em 2003. Para ambos os serviços, os gastos diretos diminuíram ligeiramente (4,8% para cuidados gerais de saúde bucal e 0,04% para ortodontia). Essa diferença pode ser explicada pelos pagamentos contratuais frequentemente característicos da assistência ortodôntica que podem moderar os efeitos das mudanças na demanda de curto prazo. O aumento significativo nos pagamentos feitos por programas de assistência governamentais é evidente para os dois tipos de serviços, indicando que esses programas ou isolam as tendências econômicas gerais ou aumentam em resposta a uma desaceleração da economia geral. |
A desaceleração do status da economia geral durante o período da Grande Recessão resultou em uma diminuição na demanda por cuidados gerais de saúde bucal e cuidados ortodônticos nos Estados Unidos. |
No contexto geral dos diversos países pode-se afirmar que os efeitos das crises atingem, de forma mais pronunciada, a população mais vulnerável, de menor renda e menor escolaridade. Pode-se observar também que quando medidas protetivas são tomadas, incluindo aumento do financiamento, as iniquidades em saúde bucal diminuem.
A relação entre condições econômicas e desfechos de saúde é complexa e pode envolver caminhos múltiplos e inter-relacionados. Ainda há poucos estudos que avaliam o impacto de crises econômicas sobre os indicadores de saúde bucal da população. Porém, de modo geral, podemos fazer algumas prospecções para o Brasil se os resultados forem avaliados considerando-se as particularidades de nosso país e de nossa política.
O estudo mais antigo que encontramos fez uma avaliação do impacto da recessão econômica da década de 90 sobre o uso dos serviços de saúde bucal na Finlândia18. A hipótese foi de que a crise teria reduzido a procura por serviços de saúde bucal, mas tal resultado não foi confirmado no contexto geral, pois apenas o grupo de pacientes subsidiado pelo governo teve uma redução significativa na procura por serviços durante os anos de estudo. O aumento do número de cirurgiões-dentistas no país ampliou a competição, reduzindo o custo do tratamento e compensando parcialmente os efeitos da crise econômica. Entretanto, destaca-se que essa competição favoreceu particularmente os estratos sociais de alta renda e alta escolaridade.
Nesse ponto, fazemos um paralelo com a realidade brasileira. O número de cirurgiões-dentistas no país já era considerado alto em 2004, ano do lançamento do Brasil Sorridente. Todavia, isso não resultava em condições de acesso à atenção à saúde bucal para população, fato que fica evidente quando observamos que à época, 28 milhões de brasileiros nunca haviam ido ao dentista27. Até então, a assistência pública odontológica brasileira era focada no modelo materno-infantil, de caráter curativo, com graves problemas de distribuição de recursos humanos em um país de dimensões continentais, e com ausência de planejamento, tornando-se mutilador e elitista28.
Com a implementação do Brasil Sorridente, a população brasileira teve essa demanda atendida por meio da oferta e expansão dos serviços públicos de saúde bucal. Muito embora a questão da distribuição de profissionais ainda não tenha atingido níveis ideais, as políticas públicas de saúde bucal passaram a incentivar o deslocamento de profissionais para o interior e para regiões com maior vulnerabilidade, visando uma oferta mais equitativa dos serviços odontológicos15,29. O impacto positivo de tais medidas pode ser evidenciado inclusive pela melhora alcançada no quadro epidemiológico brasileiro conforme resultados do SB Brasil 201030 e SB São Paulo 201531, em níveis nacional e local, respectivamente.
Além disso, devemos ressaltar que, no Brasil, estima-se que ao menos 80% da população seja dependente de cuidados odontológicos exclusivamente públicos15,32, população esta que, comparativamente à população finlandesa subsidiada, seria a mais fortemente prejudicada, aumentando as disparidades em saúde bucal. Considerando que o governo finlandês adiou os planos de estender o seguro de saúde para cobrir os serviços odontológicos para toda a população adulta devido a restrições econômicas18, podemos admitir que a saúde bucal costuma figurar fora do rol de prioridades de governos quando se trata de garantir acesso à saúde de suas populações.
Dessa forma, destaca-se a importância do Programa Brasil Sorridente para a expansão dos serviços odontológicos no serviço público brasileiro. A continuidade de políticas públicas que combinem a oferta de serviços de saúde baseados em princípios de equidade e na qualidade de atenção são determinantes para o avanço, em resultados futuros, em termos de acesso e utilização, resolutividade e melhoria das condições de saúde bucal da população15. Entretanto, crises políticas e econômicas recentes, no plano mundial e nacional apontam várias mudanças nesse cenário, situação que pode afetar negativamente a saúde bucal população.
Crises econômicas trazem algumas consequências, entre elas, aumento do desemprego e reflexo na diminuição do Produto Interno Bruto (PIB), o que impacta a perda substancial de riqueza. No caso norte americano, citando o Medicaid, tal situação fez com que dentistas de alguns estados experimentassem uma redução acentuada na demanda por atendimento durante a crise 2007-2009. Com a capacidade não utilizada e um aumento no reembolso oferecido pelo Medicaid, houve um interesse crescente destes profissionais pelo programa. Esse fato permitiu que a população assistida pelo Medicaid tivesse mais acesso a serviços odontológicos, o que elevou de forma significativa as taxas de uso de serviços odontológicos. Um dos pontos ressaltados foi de que a atração de profissionais para o programa foi devida a uma atualização nos valores de reembolso oferecidos pelo governo23.
O Medicaid é um programa de recurso social voltado somente para população norte-americana de baixa renda. Com a crise e as altas taxas de desemprego, um número maior de pessoas passou a ser assistida pelo programa. E foi justamente o investimento financeiro em meio à crise (por meio dos aumentos nos reembolsos aos profissionais) que permitiu que o acesso aos serviços de Atenção Odontológica aumentasse23. Essa situação é de alta relevância para o contexto brasileiro, mesmo existindo grande diferença entre as políticas dos países em questão.
Ainda nesse contexto, ao ser analisado o acesso aos serviços sem restringir a avaliação ao Medicaid, observou-se que, quando o resultado é avaliado de forma agregada, apesar de haver um declínio, não há diferença estatisticamente significativa na taxa de utilização de atendimento odontológico entre a população como um todo. Todavia, existe uma variação importante por idade e nível de pobreza. Diferentemente da população infantil, os adultos (mesmo de baixa renda) não são obrigatoriamente assistidos pelo Medicaid. E foi justamente nesta população que o impacto da crise foi mais significativo19.
Tal situação de investimento é exatamente o oposto do que tem acontecido no Brasil, pois, com a crise econômica, o número de pacientes SUS-dependente tende a aumentar. Entretanto, o investimento e a continuidade do Programa Brasil Sorridente têm sido fortemente prejudicados, principalmente devido à precarização do serviço e até certo ponto, de forma perversa, negando-o à população que mais necessita. A desativação de Centros de Especialidades Odontológicas (em todo território nacional), o descredenciamento crescente das Equipes de Saúde da Família (principalmente no RJ) e a implantação da atual Política Nacional de Atenção Básica33,34 suportam este movimento de retrocesso em relação às políticas sociais, o que também é observado em outros campos do SUS, e não apenas na saúde bucal. Em contrapartida, a literatura indica que, em nível macro, as políticas de saúde devem construir uma agenda para o combate às iniquidades, a fim de reduzir a exposição de vulneráveis a fatores danosos à saúde, minimizando o impacto das consequências (sociais, econômicas) das doenças bucais. Isto pode ser atingido pelo fomento à atenção à saúde bucal de forma acessível, apropriada e efetiva, direcionada aos grupos populacionais à margem da sociedade, mais susceptíveis às doenças bucais35.
Frente à crise econômica, o indicador “cárie dentária não tratada” foi avaliado nos Estados Unidos20 e na Espanha24, respectivamente. Ambos estudos evidenciaram um aumento na necessidade de tratamento odontológico na população examinada. Neste contexto, na Espanha, o atendimento odontológico financiado com recursos públicos para adultos foi limitado ao atendimento dos casos agudos (atendimento de urgência) e de patologias agudas. Essa população foi a que teve o quadro de saúde bucal mais afetado, indicando a necessidade de se repensar a oferta de serviços odontológicos públicos no local24. Este tipo de consequência à crise financeira coloca a saúde bucal num patamar não prioritário nos sistemas de saúde, de modo que as ações de atenção ficam restritas à limitação do dano, quadro típico do paradigma odontológico cirúrgico-restaurador, o qual foi tão combatido nas últimas décadas, e que, possivelmente, ganhará sustento novamente, inclusive no Brasil, com o suporte das políticas de austeridade e contenção de gastos sinalizadas pelo governo federal.
Em relação aos hábitos de saúde bucal após a crise que atingiu a Islândia, verificou-se que não houve grandes diferenças na população, embora grupos específicos mereçam atenção especial em tempos de crise como, por exemplo, os grupos economicamente vulneráveis21. Nesta perspectiva, há que se considerar que as doenças bucais afetam desproporcionalmente os segmentos sociais desfavorecidos, evidenciando-se, do ponto de vista epidemiológico, a influência dos gradientes sociais sobre a saúde bucal36. Tal fato sinaliza para importância de ações voltadas para promoção e proteção da saúde bucal, com estímulo ao desenvolvimento de hábitos saudáveis e fortemente ligadas ao aumento de resolutividade do cuidado em saúde bucal na Atenção Primária em Saúde37.
Frente à crise na Grécia, o indicador “incidência de fraturas maxilofaciais” foi analisado, observando-se um aumento nas fraturas causadas por violência interpessoal22. Há que se analisar esse achado sobre dois aspectos. Primeiramente, considerando a questão da violência, e tendo em vista que o Brasil é conhecido por ser um país marcado pela violência (no trânsito, interpessoal) e, finalmente, por esta situação impactar sobre os serviços de saúde. O resultado encontrado por Rallis et al.22 também é esperado para o Brasil. Mas, além disso, é necessário ressaltar que as fraturas maxilofaciais, em geral, demandam por atendimento de maior complexidade, muitas vezes necessitando de cirurgias extensas em ambientes hospitalares. Dessa forma, o aumento em sua incidência tem um impacto maior nos custos para o Sistema, pois demandam a continuidade de investimentos para além das ações de saúde bucal na atenção primária, implicando ações de saúde bucal nos níveis secundários e terciários, as quais necessariamente são onerosas aos cofres públicos.
Ademais, a maior cobertura de atendimento odontológico está significativamente associada a uma menor desigualdade de renda nesse acesso25, fato que reforça a importância de políticas públicas voltadas para a garantia de acesso à Atenção Odontológica de qualidade, a exemplo do Brasil Sorridente, sendo necessário seu fortalecimento do ponto de vista de gestão e a defesa de investimentos financeiros na garantia do combate às iniquidades em saúde bucal no Brasil. Assim, consideramos que a diminuição do aporte ou a inexistência de investimentos que garantam a oferta de serviços de saúde bucal pode comprometer o acesso dos pacientes mais vulneráveis e com isso, agravar as discrepâncias em saúde bucal. Tal constatação toma dimensão crítica quando contextualizada em um país de dimensões continentais como o Brasil, marcado por gritantes diferenças regionais que afetam todos os setores da sociedade (educação e saúde principalmente), e que, se não forem manejadas de forma inclusiva, tendem a ser agravadas.
Dessa forma, parece importante destacar que a crise econômica e política que assola o Brasil desde 2014, com queda do PIB, aumento das taxas de desemprego e diminuição da renda per capita, aliada a um cenário de austeridade com limitações orçamentárias com a publicação da EC 95, aumento da DRU de 20 para 30% e desonerações fiscais têm trazido consequências nos indicadores de saúde no Brasil, no tocante a esse estudo, àqueles relativos à saúde bucal. Isso é particularmente importante se pensarmos que limitação orçamentária traz consigo dificuldades de custeio e manutenção de recursos humanos suficientes para atender à demanda local, implicando em desassistência. Dessa forma, levando-se em consideração princípios básicos de economia, a austeridade econômica em si é um processo retroalimentador de demandas, com profundos impactos nos indicadores de saúde.
Concluiu-se que, frente às crises econômicas, a saúde bucal passa a não ser prioridade enquanto centro nucleador de políticas, o que impacta o acesso ao cuidado dos estratos sociais menos favorecidos. Neste alinhamento, condições de saúde bucal que, ainda nos dias atuais são considerados problemas de saúde pública, portanto, frequentes, preveníveis e de controle conhecido, podem reemergir dentre os mais vulneráveis, ao passo que situações de maior complexidade podem demandar maiores investimentos, considerando-se as especificidades da realidade local.