versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.41 no.3 São Paulo jul./set. 2019 Epub 18-Jul-2019
http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2018-0219
A doença renal crônica (DRC) determina uma série de desarranjos metabólicos no organismo, dentre os quais os distúrbios do metabolismo mineral e ósseo relacionados à DRC (DMO-DRC) assumem um papel central, em decorrência de sua associação com maior risco de eventos cardiovasculares, fraturas e mortalidade.1,2 Nesse contexto, o hiperparatireoidismo secundário (HPTs) emerge como uma das principais complicações desenvolvidas por esses pacientes, especialmente nos estágios mais avançados da DRC e quando em terapia renal substitutiva.3
A patogênese do HPTs à DRC é complexa e envolve diferentes fatores, como hipocalcemia, hiperfosfatemia, deficiência de vitamina D nutricional e de calcitriol. Mais recentemente, tem sido descrita a participação de outros fatores na fisiopatologia dessa condição, dentre os quais a elevação dos níveis séricos do fator de crescimento derivado de fibroblastos 23 (FGF-23) e da esclerostina, e a redução na expressão dos receptores da vitamina D (VDR), dos receptores do FGF23 (FGFR) e de seu cofator Klotho, bem como redução na expressão do receptor sensível ao Cálcio (CaR), todos no tecido paratireoidiano. Em conjunto, esses fatores contribuem para o aumento da síntese e secreção do paratormônio (PTH) pelas células paratireoidianas principais.4
Tradicionalmente, o tratamento do HPTs incluía a manutenção dos níveis normais de cálcio e de fósforo e o controle dos níveis de PTH por meio do uso de quelantes de fósforo, baseados ou não em cálcio, suplementação de vitamina D nutricional e uso de vitamina D ativada (ativação do VDR).2,4 Contudo, para uma parcela significativa dos pacientes, essas medidas têm efeitos limitados e estão associadas ao maior risco de hipercalcemia e hiperfosfatemia, os quais por sua vez têm sido associados à maior mortalidade e a alterações cardiovasculares, como disfunção endotelial e calcificação vascular.4 Adicionalmente, o acesso ao tratamento cirúrgico, a paratiroidectomia (PTX), dos casos mais graves não é universal, além da PTX nem sempre ser resolutiva e estar isenta de riscos.5 No Brasil, segundo dados de 2011 da Sociedade Brasileira de Nefrologia, estima-se que cerca de 11% da população renal crônica em tratamento dialítico seja portadora de HPTs grave, definido com PTH > 1000 pg/mL, o que sugere uma potencial intratabilidade clínica e necessidade de PTX em uma parcela significativa dos pacientes que recebem o até então considerado tratamento farmacológico tradicional.6
A introdução dos calcimiméticos (cinacalcete) na prática nefrológica promoveu um avanço significativo na terapêutica do HPTs.7 Todavia, ainda não existe evidência definitiva de que uma classe terapêutica em particular, ou mesmo a combinação de calcimimético e ativadores do VDR, seja preferível para controlar os níveis de PTH de pacientes em terapia renal substitutiva, seja em hemodiálise (HD), seja em diálise peritoneal (DP).8 As diretrizes mais recentes para o tratamento do DMO-DRC sugerem que: (i) a opção farmacológica inicial para o tratamento do HPTs deve ser guiada pelas medicações em uso concomitante, bem como pelo perfil bioquímico dos pacientes (valores de cálcio e de fósforo) ao tempo da avaliação clínica;9,10 e (ii) o tratamento pode ser baseado em análogos de vitamina D, calcimimético ou mesmo uma combinação de ambos.
O cinacalcete age como um ativador alostérico do CaR, o que aumenta a sensibilidade do CaR ao cálcio extracelular e promove a redução na secreção do PTH, sem provocar aumento na calcemia e na fosfatemia.11,12 Portanto, essa medicação pode ser utilizada mesmo em pacientes com hipercalcemia e/ou hiperfosfatemia, situação na qual há contraindicação para o uso de vitamina D ativada ou seus análogos.
Assim, o objetivo deste estudo foi analisar, retrospectivamente, a efetividade e a segurança do uso de cinacalcete em pacientes renais crônicos em HD ou DP, portadores de HPTs severo com refratariedade ao tratamento clínico convencional, quelantes de fósforo e vitamina D ativada.
Este foi um estudo retrospectivo realizado em um ambulatório de DMO-DRC na cidade de Curitiba, PR, Brasil, ao qual são referenciados pacientes dialíticos crônicos com quadro de HPTs severo (PTH persistentemente > 800 pg/mL) e refratários ao tratamento tradicional, motivando o início de uso de cinacalcete. A hiperfosfatemia foi definida como fósforo sérico > 4,7 mg/dL e a hipercalcemia, como cálcio sérico > 10,3 mg/dL (limites superiores dos métodos). As dosagens de cálcio, fósforo, PTH (radioimunoensaio, valores de referência de 12-65 pg/mL), fosfatase alcalina e 25-hidroxivitamina D (DiaSorin LIAISON 25OH vitamin D assay, DiaSorin Inc. Stillwater, Minnesota, com valores de referência normais de 30-60 ng/mL) foram realizadas através de plataformas conhecidas e publicadas em outros estudos.2,13
Foram incluídos todos os pacientes com mais de 18 anos e estáveis clinicamente, em tratamento por hemodiálise (HD) ou diálise peritoneal (DP) havia pelo menos 3 meses, encaminhados aos cuidados do ambulatório de DMO-DRC da Fundação Pró-Renal (Curitiba, PR, Brasil) e que necessitavam iniciar tratamento com calcimimético ou serem encaminhados à paratireoidectomia em decorrência da presença de HPTs grave associado à hiperfosfatemia e/ou hipercalcemia persistentes, no período de janeiro de 2015 a dezembro de 2016.
Pacientes que foram submetidos à transplante renal, à paratireoidectomia ou que faleceram durante o período de seguimento foram excluídos das análises (pacientes que não completaram 12 meses de seguimento). As informações demográficas, clínicas e laboratoriais foram coletadas na linha de base e as variáveis tradicionais do metabolismo mineral (cálcio, fósforo, PTH) foram analisadas após 30, 60, 90, 180 e 365 dias do início do uso de cinacalcete. Adicionalmente, as doses do calcimimético em uso, bem como parâmetros de segurança (queixas digestivas, episódios de hipocalcemia), efetividade, concentração de cálcio no dialisato e informações a respeito do uso paralelo de quelantes de fósforo e análogos de vitamina D foram registradas. Todos os pacientes, independentemente do valor inicial do PTH, começaram o tratamento com a dose de 30 mg ao dia de cinacalcete. Na linha de base, todos os pacientes foram investigados por método radiológico semiquantitativo tradicional, para presença de calcificação vascular (CV) (escore de Adragão).14
Análise estatística
Resultados de variáveis quantitativas foram descritos por médias, desvios-padrão, mediana e amplitudes. Para variáveis categóricas, foram apresentados frequências e percentuais. A comparação entre os momentos de avaliação, em relação a variáveis quantitativas, foi feita utilizando o modelo de análise da variância (ANOVA) com medidas repetidas ou o teste não paramétrico de Friedman. A condição de normalidade das variáveis foi avaliada pelo teste de Kolmogorov-Smirnov. Para a comparação de dois momentos de avaliação, em relação a variáveis nominais dicotômicas, foi usado o teste binomial. A comparação de dois grupos, em relação a variáveis quantitativas, foi feita usando-se o teste t de Student para amostras independentes. Em relação a variáveis categóricas, as comparações foram feitas considerando-se o teste exato de Fisher. Valores de p < 0,05 foram considerados de significância estatística. Os dados foram analisados com o programa computacional IBM SPSS Statistics v.20.0. Armonk, NY; IBM Incorporation.
A Tabela 1 apresenta os principais dados demográficos e as variáveis clínicas e bioquímicas dos pacientes no início do estudo e que completaram um período de 12 meses de seguimento. Foram inicialmente incluídos 42 pacientes, sendo 30 em tratamento por HD e 12 em DP. Durante o período de observação descrito, ocorreram 6 óbitos (todos por eventos cardiovasculares), 6 transplantes renais e 4 paratireoidectomias, totalizando a exclusão de 16 pacientes. A idade média do grupo foi de 52 ± 12 anos, 55% do gênero feminino, mediana de tempo em terapia renal substitutiva de 54 meses e 30% eram diabéticos. Os valores iniciais médios de PTH eram 1348 ± 422 pg/mL, calcemia média de 9,5 ± 1,0 mg/dL e fosfatemia média de 6,0 ± 1,3 mg/dL. Apenas 2 dos 26 pacientes na linha de base apresentavam valores de 25(OH)D3 > 30 ng/mL. As indicações para uso de cinacalcete foram: presença de hiperfosfatemia persistente em 15 pacientes, hipercalcemia recorrente em 6 pacientes e hiperfosfatemia persistente + hipercalcemia recorrente em 5 pacientes, acompanhados de valores de PTH > 600 pg/mL. Na linha de base, nenhum paciente estava utilizando formas ativas de vitamina D havia pelo menos 30 dias. Com relação ao uso de quelantes de fósforo, 12 pacientes utilizavam hidrocloreto de sevelamer; 7 pacientes, carbonato de cálcio; e 7 pacientes utilizavam combinação de ambos os quelantes.
Tabela 1 Características demográficas, clínicas e bioquímicas iniciais dos pacientes tratados com cinacalcete que completaram seguimento de 12 meses
Variáveis | Resultado N = 26 |
---|---|
Idade (anos) | 52 ± 12 |
Gênero feminino (%) | 55% |
Tempo em TRS (meses) | 54 (4-236) |
Diabéticos (%) | 30% |
Método dialítico (número - HD/DP) | 18 HD / 8 DP |
Raça (brancos – %) | 92% |
Escore de Adragão (mediana / mínimo-máximo) | 1 (0-3) |
Cálcio (mg/dL) | 9,5 ± 1,0 |
Fósforo (mg/dL) | 6,0 ± 1,3 |
Paratormônio (pg/mL) | 1348 ± 422 |
Fosfatase alcalina (UI/L) | 202,7 ± 135,9 |
25-hidroxivitamina D (ng/mL) | 18,2 ± 6,1 |
TRS: Terapia Renal Substitutiva; HD: Hemodiálise; DP: Diálise Peritoneal
Os pacientes em HD foram tratados com cálcio no dialisato em concentração de 2,5 mEq/L e, dentre os pacientes em DP, 5 receberam tratamento com concentração de cálcio no dialisato de 2,5 mEq/L e outros 3 pacientes de 3,5 mEq/L. Com relação ao escore de Adragão, 5 pacientes apresentavam escore zero (ausência de CV pelo método); 11 pacientes, escore um (calcificação leve); 8 pacientes, escore dois (calcificação moderada); e 2 pacientes, escore 3 (severamente calcificados). A dose diária inicial média de cinacalcete foi 30 mg para todos os pacientes, e progressivamente escalonada para 41 ± 15 mg aos 60 dias de seguimento (15-60 mg); para 48 ± 23 mg aos 90 dias de seguimento (0-90 mg); 51 ± 21 mg aos 180 dias (30-90 mg); e finalizando aos 365 dias em 51 ± 28 mg (0-120 mg) (valor de p = 0,03).
A Tabela 2 apresenta as principais informações a respeito do seguimento dos pacientes durante seu período de tratamento. Na linha de base, nenhum paciente apresentava-se com valores de PTH dentro das faixas-alvo preferenciais (150-600 pg/mL). Após 90, 180 e 365 dias de seguimento, 11/25 (44%), 17/26 (65%) e 21/26 (80%) dos pacientes, respectivamente, adentraram as faixas-alvo para valores de PTH (p = 0,004, comparando tempos 180 e 365 dias com a linha de base). Os valores médios de PTH se reduziram de forma significativa durante o período de observação, atingindo 711 ± 394 pg/mL aos 90 dias, 446 ± 221 pg/mL aos 180 dias e 440 ± 210 pg/mL aos 365 dias (p < 0,001 - Figura 1).
Tabela 2 Variáveis laboratoriais e eventos clínicos comparando linha de base e momentos: 3 meses, 6 meses e 12 meses de seguimento
Variável | Linha de base | 3 meses | 6 meses | 12 meses |
---|---|---|---|---|
PTH (150-600 pg/mL) | 0/26 | 11/25 | 17/26 | 21/26 |
P (2,6-4,7 mg/dL) | 5/26 | 6/25 | 6/26 | 14/26 |
Ca (8,4-10,3 mg/dL) | 16/26 | 21/25 | 20/26 | 23/26 |
Hipocalcemia | 0/26 | 4/25 | 7/26 | 2/26 |
Uso de vitamina D Ativa | 0/26 | 16/25 | 17/26 | 19/26 |
Náuseas e vômitos | 0/26 | 4/25 | 5/26 | 6/26 |
No fim do período de observação, 3 pacientes, todos em tratamento por diálise peritoneal, permaneceram com valores de PTH > 800 pg/mL e foram mantidos em lista para realização de paratireoidectomia. O percentual médio de redução do PTH em relação à linha de base foi de 44,8 ± 19,8% aos 90 dias, 60,3 ± 24,3% aos 180 dias e 62,5 ± 24,2% no fim de 12 meses (Figura 2). De maneira semelhante, os valores médios de cálcio se reduziram significativamente em relação à linha de base, evidenciando valores de 9,1 ± 0,6 mg/dL aos 90 dias, 8,9 ± 0,8 mg/dL aos 180 dias e 9,1 ± 0,6 mg/dL aos 365 dias de seguimento (p = 0,004 - Figura 3). Os valores de fósforo também se reduziram em relação à linha de base (p < 0,001 - Figura 4) para 5,5 ± 1,1 mg/dL aos 90 dias, 5,1 ± 1,1 mg/dL aos 180 dias e 4,9 ± 1,1 mg/dL aos 365 dias. Contudo, 12 dos 26 pacientes no fim do estudo permaneciam com valores de p > 4,7 mg/dL. A fosfatase alcalina também se reduziu de forma significativa ao longo dos 12 meses de observação (202 ± 135 vs. 155 ± 109 UI/L; p = 0,006 - Figura 5).
A hipocalcemia (calcemia < 8,4 mg/dL) foi observada em 4/25 pacientes (16%) aos 90 dias, 7/26 (26%) aos 180 dias e 2/26 (7%) dos pacientes aos 365 dias do estudo. Apenas 1 paciente apresentou hipocalcemia severa (cálcio sérico < 7,5 mg/dL), motivando descontinuidade temporária de uso da medicação. A proporção de pacientes com hipocalcemia ao longo do estudo não foi diferente quando comparados os tempos 90, 180 e 365 dias (p = 0,50). As ações para correção da hipocalcemia mais frequentemente utilizadas foram: início de carbonato de cálcio como suplemento de cálcio (4/26 pacientes) e uso de vitamina D ativada (14/26 pacientes). Não houve diferença significativa na proporção de pacientes utilizando vitamina D ativa em cada um dos momentos estudados (p = 0,70). No fim do período de seguimento, náuseas e vômitos foram relatados em até 23% dos pacientes, especialmente quando foram utilizadas dosagens maiores do calcimimético (6/26 pacientes no fim do estudo), e foram manejadas com aumento na dosagem de medicação inibidora de bomba de prótons e introdução de antieméticos, além de orientação para uso da medicação sempre no horário das refeições. Dentre as variáveis idade, gênero, tempo em terapia renal substitutiva, modalidade dialítica e valores de PTH na linha de base, nenhuma delas se associou independentemente com a não obtenção de valores de PTH entre 150-600 pg/mL no fim do tempo de observação (p > 0,05). Ao término do período de seguimento, a maior parte dos pacientes que completou o estudo estava utilizando vitamina D ativada (19/26 pacientes).
Os principais achados do nosso estudo corroboram os dados de segurança e eficiência de estudos previamente publicados com a utilização de cinacalcete em pacientes portadores de DRC e HPTs.12,15 O cinacalcete controla de maneira eficiente e sustentada os valores de cálcio, fósforo e PTH numa fração significativa de pacientes,7,16 e apresenta taxas aceitáveis de complicações relacionadas ao uso do fármaco, como hipocalcemia e distúrbios digestivos.17 Adicionalmente, alguns estudos clínicos demonstraram reduções paralelas nos níveis séricos de FGF-2318,19 e diminuição das taxas de formação óssea, avaliadas por biópsia e histomorfometria óssea, típicas dos casos mais severos de HPTs,20 os quais são, todos em conjunto, alvos terapêuticos associados à maior mortalidade no ambiente da DRC avançada.1
Hipovitaminose D é achado frequente entre pacientes portadores de DRC avançada13 e foi observada em 92% da população neste estudo. Embora o tratamento da hipovitaminose D com colecalciferol seja sugerido pelas diretrizes internacionais de DMO DRC, para todos os pacientes em seus diferentes estágios, sabe-se que essa intervenção, em linhas gerais, não tem impacto em melhor controle do HPTs para pacientes em tratamento dialítico.21 Contudo, é prática nossa instituir essa correção para pacientes dialíticos em seguimento ambulatorial, de acordo com protocolos em estudos publicados, não apenas objetivando melhora do metabolismo ósseo, mas também pelos potenciais efeitos pleiotrópicos da vitamina D.22
A calcificação vascular (CV) é uma complicação frequente em pacientes em terapia dialítica, de fisiopatologia complexa, e intimamente relacionado à maior mortalidade.23 80% de nossos pacientes apresentaram CV, cuja intensidade variou de leve a moderada na maior parte dos casos. A investigação de CV entre pacientes portadores de HPTs é importante, já que sua presença pode determinar modificações no manejo terapêutico da condição, privilegiando cenários em que o uso combinado de calcimimético e análogos de vitamina D em doses baixas parece determinar abrandamento em seu processo de progressão.24
Em nosso estudo, a utilização continuada e em doses progressivamente maiores de cinacalcete (51,9 ± 28 mg em média, aos 12 meses de seguimento) permitiu que a maior parte dos pacientes tratados atingisse valores de PTH entre 150-600 pg/mL, faixa alvo recomendada pelas mais recentes diretrizes internacionais de DMO DRC,9 independentemente dos valores iniciais de PTH e de outras variáveis estudadas, como idade, gênero e tempo em terapia renal substitutiva, tal como observados em estudos prévios.12,15,24,25 Os valores médios de PTH se reduziram de forma significativa durante o período de observação, atingindo 711 ± 394 pg/mL aos 90 dias, 446 ± 221 pg/mL aos 180 dias e 440 ± 210 pg/mL aos 365 dias do estudo (p < 0,001 - Figura 1). A redução média dos valores de PTH no fim do estudo em comparação aos valores basais foi de 62,5% (Figura 2).
Diversos estudos na literatura apontam a superioridade dos tratamentos combinados com calcimimético e análogos de vitamina D, quando comparados a esquemas tradicionais (quelantes de fósforo e vitamina D ativada), para a obtenção de melhor controle nas variáveis bioquímicas do DMO-DRC.17 Entretanto, esse melhor controle não obrigatoriamente se traduz em redução das taxas de paratireoidectomias no tratamento definitivo necessário para o HPTs num percentual ainda significativo de pacientes6,26 que provavelmente deixaram de receber o tratamento adequado em fases mais precoces de evolução da doença.
Cinacalcete é um ativador alostérico do CaR que reduz a síntese e secreção de PTH das glândulas paratireoides, resultando frequentemente em reduções na calcemia e na fosfatemia.15,27 Clinicamente, essas modificações laboratoriais se assemelham à reconhecida "síndrome do osso faminto”, frequentemente observada em pacientes dialíticos quando são submetidos à paratireoidectomia por HPTs grave,28 o que reflete uma ávida incorporação de cálcio e fósforo pelos ossos, favorecendo o processo de mineralização. Contudo, enquanto entre os pacientes que se submetem à paratireoidectomia cirúrgica a hipocalcemia é significativa, abrupta e exige tratamento imediato, o padrão de hipocalcemia associada ao uso de cinacalcete é menos pronunciado e se instala menos rapidamente.29 De fato, diferentes estudos reportaram que aproximadamente 50% dos pacientes em tratamento dialítico e utilizando calcimimético apresentaram ao menos um episódio de hipocalcemia.30,31 Em nosso estudo, 26% dos pacientes apresentaram, em algum momento, calcemia < 8,4 mg/dL, e uma das explicações para essa diferença é que, ao longo do estudo EVOLVE, apenas 17% dos pacientes que experimentaram tal alteração bioquímica passaram a fazer uso de vitamina D ativada para o manejo dessa complicação,32 enquanto os pacientes do nosso estudo, tão logo quando possível, passavam a fazer uso de vitamina D ativada, conforme a bioquímica (cálcio e fósforo) permitia tal associação.
Em nossa observação clínica, todos os pacientes que mantiveram valores de PTH > 800 pg/mL no fim do seguimento de 12 meses estavam em tratamento por DP. Esses pacientes, sem exceção, ao término do estudo permaneceram listados para realização de paratireoidectomia, e o procedimento ainda não havia sido realizado em decorrência das dificuldades de acesso ao tratamento cirúrgico (fila de espera para realização da cirurgia), cenário algo frequente entre os centros brasileiros que realizam tratamento do DMO-DRC.6 Em estudo anteriormente publicado relatando a experiência com cinacalcete em pacientes de DP, observou-se redução inicial significativa nos valores de PTH, mas que não se sustentou após um período de observação de 6 meses.33 Segundo os autores, a alta prevalência de distúrbios digestivos naquele estudo (77%) pode ter contribuído para que o sucesso terapêutico não tenha sido obtido na maior parte dos pacientes. Em outros estudos na população em DP, tais complicações e a ausência de resposta terapêutica adequada não ocorreram com a mesma frequência.34
Valores de PTH persistentemente elevados (PTH > 800 pg/mL por período superior a 6 meses), a despeito de tratamento farmacológico adequado (doses máximas toleradas de análogos de vitamina D e calcimiméticos em combinação), frequentemente acompanhados de hiperfosfatemia e/ou hipercalcemia, constituem-se um dos principais critérios para realização de paratireoidectomia.16 A presença de calcifilaxia (ou alto risco para seu desenvolvimento), bem como anemia hiporresponsiva a eritropoietina (na vigência de PTH persistentemente elevado), além de glândulas paratireoides com volume > 500 mm3 ou > 1 cm no maior diâmetro, avaliadas por exames de imagem, sugerem fortemente a presença de transformação nodular e baixa probabilidade de resposta farmacológica.35 Em nosso serviço de DMO-DRC, não é rotina padronizada a realização de ecografia cervical anterior para estimativa de volume glandular, portanto não utilizamos essa ferramenta como preditora de falta de resposta ao uso de calcimiméticos, baseando-nos para indicação de paratireoidectomia em critérios clínicos e os laboratoriais tradicionais descritos. Adicionalmente, os pacientes do estudo que foram submetidos à paratireoidectomia antes do período de observação de 12 meses de uso do calcimimético acabaram excluídos das análises finais (seguindo os critérios de exclusão do estudo). Reconhecemos assim que, embora o acesso ao melhor tratamento clínico possível tenha sido garantido, uma fração significativa de pacientes portadores de hiperparatireoidismo secundário grave não responderá a esse tratamento e necessitará, em algum momento, de paratireoidectomia para a resolução dessa condição, procedimento necessário em cerca de 15% dos pacientes após 10 anos e 38% após 20 anos em tratamento dialítico.36
Foi verificada uma prevalência de fenômenos digestivos (náuseas, vômitos) em 23% dos pacientes, sem diferença em relação ao método dialítico. Tais efeitos adversos foram manejados conforme as recomendações habituais, com uso de inibidores de bomba de prótons e antieméticos, além de administração da droga no horário da refeição principal.37 Os eventos adversos gastrointestinais são os efeitos secundários mais frequentemente associados ao uso do calcimimético, e a maior parte dos episódios de náuseas e vômitos (e menos frequentemente, diarréia) é de intensidade leve a moderada, transitória, além de algumas vezes serem confundidos com os mesmos efeitos determinados por quelantes de fósforo.37
Embora um melhor controle na fosfatemia tenha sido observado entre os pacientes, no fim do período de seguimento 12/26 pacientes (46%) ainda permaneciam com valores de fósforo > 4,7 mg/dL (hiperfosfatêmicos), o que também foi observado em outros estudos.15 A hiperfosfatemia é uma condição frequente na população em diálise crônica e está associada à maior morbidade e mortalidade.1 Por ter causa multifatorial,38 exige tratamento complexo, que envolve menor ingestão de fósforo, diálise adequada e quelantes de fósforo. Dessa forma, pode-se considerar que a gênese da hiperfosfatemia está apenas parcialmente ligada à maior reabsorção óssea promovida pelo HPTs, e, consequentemente, não se espera resolução satisfatória apenas com melhores controles do PTH, como observado em nosso estudo.
A fosfatase alcalina é um marcador bioquímico de formação óssea que apresenta boa correlação com parâmetros histomorfométricos de remodelação óssea, além de estar diretamente associada à maior morbimortalidade em pacientes dialíticos crônicos.39,40 Embora a fração óssea da fosfatase alcalina (FAo) seja o marcador mais utilizado nos ensaios clínicos com cinacalcete, não foi possível sua mensuração em nosso estudo, por questões econômicas, portanto foi utilizada a fosfatase alcalina total como marcador. Ao longo do período de tratamento, foi possível observar redução significativa nos valores de fosfatase alcalina em relação ao momento inicial (p = 0,006 - Figura 5), diminuição essa que acompanhou a dos valores de PTH. Como citado, não foi possível a utilização da FAo como marcador de formação óssea, contudo os pacientes portadores de vírus de hepatite B e C, bem como de outras hepatopatias clinicamente manifestas, foram excluídos do estudo, tornando assim mais fidedignos, neste estudo, os resultados obtidos com as dosagens da fosfatase alcalina total.
As principais limitações deste estudo são decorrentes do fato de se tratar de uma análise retrospectiva, limitada a um único centro de DMO DRC na cidade de Curitiba, PR, com ausência de grupo controle e feita em um período de observação relativamente curto, isto é, de 12 meses. Todavia, este é um dos primeiros estudos sobre os efeitos do cinacalcete em pacientes portadores de DRC avançada e HPTs grave na população brasileira, o que fortalece a comprovação da eficácia e segurança dessa medicação em nosso meio.
Em nosso estudo, a utilização de cinacalcete em pacientes portadores de DRC em diálise e HPTs severo foi eficiente e segura, determinando redução significativa, progressiva e sustentada nos valores médios de PTH, Ca e FA ao longo de um período de observação de 12 meses. Embora os valores de P tenham, em média, se reduzido de forma significativa, no fim do estudo 46% da população em análise manteve-se hiperfosfatêmica. Os pacientes tratados experimentaram os efeitos secundários conhecidos da medicação, numa frequência algo semelhante aos das populações anteriormente descritas.