versão impressa ISSN 0101-2800
J. Bras. Nefrol. vol.36 no.4 São Paulo out./dez. 2014
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20140065
A disfunção do trato urinário inferior (DTUI) é extremamente complexa devido à multiplicidade de fatores ou processos que podem influenciar o armazenamento e esvaziamento da urina, incluindo o órgão em si (músculo liso, urotélio, tecido conjuntivo e matriz), a contração muscular e o sistema contrátil, as mensagens humoral e endócrina e, não menos importante, todo o neuroeixo a partir de neurônios pós-ganglionares através da medula espinhal e do tronco encefálico para o córtex cerebral.1
Na DTUI, as fases de sístole e diástole vesical podem ser acometidas por problemas anatômicos, neurológicos ou funcionais.2 Ela é capaz de comprometer significativamente a qualidade de vida dos pacientes, sobretudo crianças cuja incapacidade de controlar os esfíncteres, revelada pelo inconveniente sintoma da incontinência urinária e/ou fecal, leva aos transtornos emocionais. Com isto, a criança sofre com a baixa de autoestima, insegurança, angústia e diminuição do convívio social, que também acaba afetando os pais e a dinâmica familiar.
As más formações congênitas do tubo neural, como a mielomeningocele, meningocele e lipomeningocele, são as causas mais frequentes de bexiga neurogênica na infância3 e predispõem à lesão do trato urinário superior devido ao aumento da pressão vesical, à dissinergia detrusor-esfincteriana, ao resíduo pós-miccional, e à infecção urinária com ou sem o refluxo vesicoureteral.4 Trinta a 40% das crianças com mielomeningocele desenvolvem algum grau de disfunção renal. Esta complicação pode ser prevenida ou atenuada pelo tratamento adequado, cujo objetivo é reduzir a pressão da bexiga e tratar o resíduo urinário.5
Crianças com dissinergia detrusor-esfincteriana que não são tratadas desenvolvem lesão do trato urinário superior, que pode estar presente, em alguns casos, mesmo durante a vida fetal.6 É essencial que crianças com bexiga neurogênica sejam acompanhadas ambulatorialmente ainda no primeiro ano de vida, a fim de se detectar sinais precoces de comprometimento renal que podem progredir para doença renal crônica.7,8
Quando a DTUI não tem causa neurológica ou anatômica, passa a ser denominada distúrbio funcional do trato urinário e acredita-se estar relacionada a fatores genéticos, imaturidade neurológica, treinamento esfincteriano e hábitos miccionais inadequados,9-11 problemas emocionais, estresse, abuso sexual ou até causa desconhecida.11
É necessário que seja identificado o tipo de disfunção do trato urinário inferior para que se implemente o tratamento específico para cada situação. É desejável que o tratamento seja interdisciplinar voltado para a preservação da função renal e melhora da continência urinária.12
O presente estudo tem por objetivo avaliar o impacto do tratamento dos pacientes atendidos no Ambulatório de DTUI durante 15 anos de seguimento.
Trata-se de um estudo epidemiológico observacional longitudinal, retrospectivo, do tipo coorte histórica. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição. Os pacientes ou responsáveis que concordaram em participar do estudo assinaram o termo de consentimento.
Foram incluídos no estudo 192 pacientes com DTUI de causa neurológica e não neurológica e que realizaram a propedêutica. Foram excluídos 73 pacientes por não preencherem estes critérios.
Os pacientes estáveis clinicamente eram agendados para retorno à consulta no Ambulatório de DTUI a cada quatro ou seis meses ou em um intervalo de tempo menor mediante a necessidade. Eles foram submetidos à propedêutica de acordo com o protocolo do estudo, que consistiu:
• Avaliação da função renal à admissão e anual e exame de urina rotina e cultura a cada visita clínica.
• Ultrassonografia renal e da dinâmica da micção a cada ano.13
• Uretrocistografia miccional ou cistografia radioisotópica e estudo urodinâmico à admissão para os pacientes com DTUI de etiologia neurológica e naqueles com incontinência urinária associada com infecção do trato urinário, exames que eram repetidos de acordo com a evolução clínica.
• Cintilografia renal estática à admissão, repetida na presença de alteração no exame inicial.
• Cintilografia renal dinâmica quando havia sinais de obstrução urinária.
Baseado na avaliação propedêutica, o tratamento dos pacientes com DTUI consistiu:
Clínico: uso de anticolinérgicos, alfabloqueadores, profilaxia com quimioterápicos, moduladores intestinais e cateterismo vesical intermitente limpo.
Uroterapia: abordagem comportamental com micção de hora marcada, micção de dois tempos, ingestão hídrica adequada, dieta laxativa, postura miccional, mapa miccional, treinamento do assoalho pélvico com utilização do biofeedback ou estimulação elétrica sacral.
Cirúrgico: derivação urinária incontinente (vesicostomia) ou continente, ampliação vesical e conduto anterógrado cólico para a realização de enema retal.
Os dados clínicos, laboratoriais e de imagem dos pacientes foram coletados nos prontuários médicos. Os pacientes foram analisados à admissão (tempo inicial - T0) e na última consulta (tempo final - T1).
Os parâmetros avaliados foram: incontinência urinária diurna, enurese noturna não monossintomática, constipação intestinal, incontinência fecal, infecção do trato urinário, bacteriúria assintomática, espessamento da parede vesical, contrações involuntárias do detrusor, dilatação pélvica e/ou calicinal, dilatação de ureter, parede vesical trabeculada, divertículo vesical, resíduo pós-miccional, refluxo vesicoureteral e cicatriz renal.
Foi realizada uma análise estatística descritiva baseada na apresentação dos dados, sendo, para isso, utilizadas medidas-síntese como mediana, mínimo e máximo, além da distribuição percentual das variáveis categóricas. Em seguida, foram avaliados os resultados das intervenções realizadas no Ambulatório de DTUI. Com essa finalidade, foram comparadas variáveis clínicas e de imagens (ultrassonográficas, radiológicas e de medicina nuclear) na admissão e no final do acompanhamento. Neste contexto, foram calculadas as razões de chance (odds ratio) de um evento ocorrer nos dois diferentes tempos (admissão e final do seguimento) e foram consideradas com níveis de significância estatística, as variáveis com p < 0,05.
Participaram do estudo 192 pacientes (123 ♀, 69 ♂) com mediana de idade de 6,6 (0,1 a 6,8) anos e tempo de seguimento com mediana de 4,9 (0,6 a 15,1) anos.
Quanto à etiologia da DTUI, a maioria era neurológica (n = 16 - 60,4%), sendo a mielomeningocele (MMC) o principal diagnóstico de base (n = 90 - 77,6%), seguidas de agenesia sacral (n = 5 - 4,3%), tumor medular (n = 4 -3,4%), entre outras. A maioria dos pacientes com MMC (70%) desenvolveu hidrocefalia que foi compensada pelo uso da derivação ventrículo peritoneal (DVP).
Com relação às causas não neurológicas, o distúrbio funcional (n = 46 - 60,5%) e o refluxo vesicoureteral (RVU, n = 20 - 26,3%), foram as mais predominantes, sendo que muitos dos pacientes com refluxo foram diagnosticados antes de serem encaminhados para o ambulatório. A função renal esteve normal nos pacientes com DTUI, independentemente da etiologia, com mediana do clearance de creatinina de 138 (36,0 - 456,5) ml/min/1,73 m2 SC.
Como apresentado na Tabela 1, a maioria dos pacientes à admissão tinha incontinência urinária diurna e enurese noturna não monossintomática. Aproximadamente metade dos pacientes tinha constipação intestinal e incontinência fecal. A infecção urinária ocorreu em 15% dos pacientes, enquanto que a bacteriúria assintomática foi mais prevalente, acometendo cerca de 1/3 dos pacientes.
Tabela 1 Impacto do tratamento sobre as variáveis clínicas, laboratoriais e de imagem em T0 e T1
Variáveis | T0 | T1 | OR (CI 5-95%) | p |
---|---|---|---|---|
Incontinência urinária diurna | ||||
Não | 34 | 80 | 0,30 (0,18-0,48) | < 0,001 |
Enurese noturna | ||||
Não | 41 | 84 | 0,46 (0,29-0,73) | < 0,001 |
Constipação intestinal | ||||
Não | 100 | 110 | 0,81 (0,54-1,21) | 0,35 |
Incontinência fecal | ||||
Não | 88 | 114 | 0,58 (0,38-0,86) | 0,010 |
Infecção urinária | ||||
Não | 164 | 180 | 0,39 (0,19-0,79) | 0,0027 |
Bacteriúria assintomática | ||||
Não | 127 | 120 | 1,17 (0,77-1,78) | 0,53 |
Espessamento vesical | ||||
Não | 131 | 118 | 1,34 (0,88-2,05) | 0,205 |
Contrações involuntárias do detrusor | ||||
Não | 58 | 72 | 0,73 (0,47-1,11) | 0,14 |
Dilatação pélvica e/ou calicinal | ||||
Não | 117 | 97 | 1,53 (1,01-2,3) | 0,04 |
Dilatação de ureter | ||||
Não | 98 | 68 | 1,9 (1,26-2,86) | 0,002 |
Parede vesical trabeculada | ||||
Não | 143 | 141 | 1,05 (0,66-1,68) | 0,81 |
Divertículo vesical | ||||
Não | 165 | 157 | 1,2 (0,68-2,11) | 0,60 |
Resíduo pós-miccional | ||||
Não | 100 | 105 | 0,90 (0,60-1,34) | 0,68 |
Refluxo vesicoureteral | ||||
Não | 113 | 135 | 0,54 (0,33-0,88) | 0,01 |
Cicatriz renal | ||||
Não | 162 | 155 | 1,28 (0,76-2,18) | 0,34 |
Quimioprofilaxia | ||||
Não | 99 | 161 | 0,20 (0,12-0,33) | < 0,001 |
Anticolinérgico | ||||
Não | 139 | 102 | 2,31 (1,5-3,5) | < 0,001 |
Cateterismo vesical | ||||
Não | 143 | 122 | 1,67 (1,08-2,6) | 0,021 |
Com relação às características de imagem (Tabela 1), a maior parte dos pacientes apresentava contrações involuntárias do detrusor, cerca de metade tinha dilatação de ureter e resíduo pós-miccional.
Como método de esvaziamento vesical, 49 (25,5%) pacientes usavam o cateterismo vesical intermitente limpo, 93 (48,4%) faziam uso de quimioprofilaxia e 139 (72,4%) não usavam anticolinérgico.
Com relação à abordagem cirúrgica, no T0, 14 pacientes (7,3%) tinham sido submetidos à derivação urinária incontinente, três (1,6%) à derivação urinária continente, dois (1,0%) à ampliação vesical e um paciente (0,5%) havia realizado o conduto anterógrado cólico. No T1, apenas oito pacientes (4,2%) foram submetidos à derivação urinária incontinente, 11 (5,7%) à derivação urinária continente, sete (3,6%) à ampliação vesical e quatro (2,1%) ao conduto anterógrado cólico.
Observamos uma redução significativa da incontinência urinária diurna, enurese noturna não monossintomática, incontinência fecal, ITU e RVU no T1. Também houve diminuição significativa do uso da quimioprofilaxia (OR = 0,20, p < 0,001), aumento significativo do uso de anticolinérgico (OR = 2,31, p < 0,001) e aumento do cateterismo vesical intermitente limpo (OR = 1,67, p = 0,021). A dilatação pielocalicinal e de ureter aumentou significativamente. Não detectamos alteração da bacteriúria assintomática (Tabela 1).
Analisar o impacto do tratamento dos pacientes é uma maneira de buscar compreender e avaliar se as condutas adotadas pela equipe interdisciplinar na assistência a esses pacientes estão sendo eficazes ou precisam ser substituídas ou complementadas por outras intervenções.
A perda urinária noturna e diurna são entidades clínicas comuns na urologia pediátrica, com prevalência entre 2% a 7% em crianças com idade em torno de sete anos.14 No estudo de Leonardo et al.15 com crianças e adolescentes com DTUI, realizado no mesmo ambulatório do presente estudo, a incontinência urinária diurna ocorreu em 88% dos pacientes do grupo neurológico e em 73,6% dos pacientes do grupo não neurológico. Em outra pesquisa, a incontinência urinária diurna acometeu 60,9% dos pacientes com espinha bífida aberta e oculta.16
Vasconcelos et al.17 estudaram pacientes com DTUI funcional refratária ao tratamento convencional e constataram a presença de incontinência urinária diurna em 75% dos pacientes e a enurese noturna não monossintomática em 53,3%, confirmando a alta frequência desses sintomas.
Sabe-se que pacientes com DTUI são mais expostos ao risco de infecção urinária devido à presença de resíduo pós-miccional e outras alterações urodinâmicas, que podem agravar a lesão da bexiga, por meio do processo inflamatório e fibrótico transmural. Portanto, esta condição associada com alta pressão intravesical e/ou RVU pode causar pielonefrite aguda e lesão renal. Os pacientes que apresentam ITU de difícil controle e recidivante acompanhada por febre, principalmente os lactentes, são mais susceptíveis de desenvolverem cicatriz renal.18,19 Deste modo, a ITU, quando presente, necessita de tratamento precoce e agressivo, uma vez que a lesão e a falência renal estão entre as mais graves complicações. Faz parte do protocolo de atendimento do nosso ambulatório o diagnóstico precoce e o tratamento imediato da ITU visando à preservação da função renal.
Como a maioria dos pacientes, neste estudo, tinha bexiga neurogênica e condições urodinâmicas mais complexas, com resíduo pós-miccional acima de 20 ml, a utilização do CIL aumentou significativamente (p = 0,021). Este procedimento, indicado a cada três ou quatro horas, pode ter contribuído para a redução significativa da ITU, da incontinência urinária diurna, da enurese noturna não monossintomática e do RVU. Outros trabalhos também reforçam a utilização do CIL para os casos de esvaziamento vesical incompleto, com resíduo pós-miccional considerável2,10 e bexiga neurogênica.20 Pesquisa desenvolvida anteriormente neste mesmo serviço com os pacientes que realizavam o cateterismo vesical intermitente limpo detectou a eficácia deste procedimento na promoção do esvaziamento vesical, redução da infecção urinária mesmo com a reutilização do cateter e promoção da continência urinária, apesar do aumento da bacteriúria assintomática,21 resultados também descritos na literatura.8,22 Muitos pacientes que realizavam o CIL atingiram a continência social sem apresentarem perda urinária entre os cateterismos. O treinamento para o CIL é realizado com o cuidador, que geralmente é a mãe, ou com a própria criança quando tem interesse no autocuidado e não tem limitação física ou cognitiva.
Neste estudo, a bacteriúria assintomática foi pouco prevalente nos dois grupos de pacientes durante a admissão, porém, apresentou um discreto aumento no tempo final (Tabela 1). Isto pode ser explicado pelo fato de que o CIL, que frequentemente se associa com bacteriúria assintomática, foi amplamente prescrito para os pacientes com resíduo pós-miccional. A presença de bacteriúria assintomática entre os pacientes que realizam o CIL é esperada. Como o procedimento é apenas limpo e não estéril, a inoculação de bactérias para a bexiga é inevitável com a inserção do cateter.23-27 Estudos prévios indicam que a bacteriúria assintomática não causa lesão renal,15,28-30 não sendo recomendado o seu tratamento com antibióticos, cujo uso favorece a seleção de bactérias mais patogênicas, que podem causar ITU resistente aos antimicrobianos.24,27,28
Neste trabalho, a quimioprofilaxia no início do seguimento era praticamente utilizada em metade dos pacientes. Já no tempo final, observou-se uma redução importante da sua utilização em todos os pacientes. Este achado pode ser claramente explicado pela mudança de conduta da equipe médica que assiste os pacientes. O protocolo atual utilizado no Ambulatório de DTUI, ancorado na literatura, preconiza a quimioprofilaxia somente para aqueles pacientes, portadores de RVU, na faixa etária de lactente e para aqueles com ITU recorrente, descartadas outras causas para a manutenção da infecção urinária.30 De acordo com o estudo de Zegers et al.,30 a interrupção da quimioprofilaxia em pacientes com bexiga neurogênica, dissinergia detrusor-esfincteriana e em uso de cateterismo vesical intermitente limpo não aumentou significativamente os casos de ITU, mostrando que o seu uso deve ser interrompido logo que o tratamento específico for instituído.
A redução do refluxo vesicoureteral pode ter sido favorecida pelo aumento significativo do uso do CIL associado ao anticolinérgico (p = 0,0024), que promove o relaxamento do detrusor, diminui a pressão intravesical, aumenta a complacência e a capacidade vesical.27 O anticolinérgico mais usado neste estudo foi a oxibutinina, que tem a vantagem de ter um custo mais reduzido, o que pode facilitar a adesão ao tratamento. Por outro lado, alguns pacientes relataram a presença de efeitos colaterais, sendo que os mais comuns foram: rubor facial, boca seca, visão turva e tonteira, que também são descritos na literatura.20 Para os casos de intolerância à oxibutinina oral, ela foi substituída pela instilação vesical nos pacientes que já realizavam o CIL, com resposta satisfatória. No estudo de Bauer et al.,6 a incidência de efeitos colaterais com oxibutinina oral variou entre 6% a 57%, enquanto que com o uso intravesical caiu para 9%. Para os pacientes que não realizavam o cateterismo, outras medicações foram instituídas.
Para tratar as crianças com DTUI de etiologia não neurológica, mas que apresentavam resíduo pós-miccional, o CIL não foi indicado devido à preservação da sensibilidade uretral, o que dificulta a aceitação do cateterismo. O tratamento de escolha, nesse caso, foi a uroterapia incluindo a terapia comportamental com a micção de tempo marcado e orientações sobre o ato miccional. Também o biofeedback e a estimulação nervosa transcutânea elétrica podem reduzir as perdas urinárias dos pacientes com distúrbio funcional do trato urinário inferior. De acordo com o estudo de Vasconcelos et al.17 realizado com pacientes deste ambulatório, o uso da cinesioterapia e do biofeedback foi capaz de reduzir os sintomas urinários diurnos e noturnos. No entanto, apenas os pacientes submetidos ao biofeedback apresentaram uma redução significativa do resíduo pós-miccional, provavelmente devido ao melhor relaxamento dos músculos do assoalho pélvico. Corroborando esta ideia, Robson & Leung31 consideraram a uroterapia como a intervenção inicial não farmacológica de eleição especialmente para as condições não neurológicas associadas com a incontinência urinária. Para tal, requer o incentivo dos pais, motivação da criança, disponibilidade da família e um tempo médio três a seis meses de terapia.
A constipação intestinal e/ou a incontinência fecal são sintomas presentes em alta frequência nos pacientes com DTUI. Para a associação entre o distúrbio gastrointestinal e urinário, Koff et al.32 propuseram a denominação de síndrome da Disfunção das Eliminações. O tratamento da constipação intestinal é fundamental para o sucesso do tratamento da DTUI, embora os estudos mostrem uma resistência para a resolução completa do distúrbio gastrointestinal.33,34
No presente estudo, aproximadamente metade dos pacientes tinha incontinência fecal e constipação intestinal à admissão (Tabela 1), sintomas que também são muito frequentes nos relatados da literatura.17,35 Ao final do seguimento, a incontinência fecal reduziu significativamente. Nós recomendamos a utilização do reflexo gastrocólico associado à manobra de Valsalva após as refeições principais, na tentativa de promover a eliminação de fezes no vaso sanitário ou penico, minimizando, deste modo, o inconveniente da perda fecal na própria roupa. Outras estratégias utilizadas são: dieta laxativa, aumento da ingesta hídrica, postura adequada durante o ato defecatório com o apoio para os pés, a fim de garantir o relaxamento do assoalho pélvico para auxiliar no esvaziamento intestinal e urinário. O uso de laxativos orais como óleo mineral, hidróxido de magnésio, polietilenoglicol (PEG) sem eletrólitos e lactulose36 são introduzidos quando estas medidas não produzem o resultado desejado. No estudo de Pashankar et al.,37 93% das crianças tratadas com PEG normalizaram o hábito intestinal e 52% não apresentaram mais a encoprese.
Apesar de ter havido uma redução da incontinência fecal, o mesmo não ocorreu com a constipação intestinal. O cuidador ou o próprio paciente na fase escolar ou adolescência acham que o uso de laxativo irá diminuir a consistência das fezes e favorecer os escapes fecais, levando às situações constrangedoras e insegurança. Deste modo, eles preferem ter as fezes ressecadas e acabam abandonando o tratamento. Outro ponto que deve ser levado em consideração é que, muitas vezes, o diagnóstico da constipação se torna difícil, pois depende da informação do cuidador e da habilidade do profissional durante a anamnese. Embora o uso do PEG sem eletrólitos tenha um resultado excelente no controle da constipação,11,38 ele tem sido utilizado por uma parcela menor de pacientes devido ao custo elevado.
Loening-Baucke,35 em seu estudo, confirmou a associação entre constipação e incontinência urinária diurna, sendo que, após instituir um protocolo agressivo para o tratamento da constipação, obteve a resolução desta em 52% dos pacientes, enquanto a melhora da incontinência urinária diurna foi de 89% e da enurese noturna de 63% e não ocorreram mais surtos de ITU.
No Ambulatório de DTUI, para os casos de constipação intestinal crônica refratária à terapia comportamental ou ao uso de medicamentos, para a falta de adesão ao tratamento ou para incontinência fecal são adotadas medidas mais agressivas como o enema retal e, nos pacientes que têm indicação para realizar a cirurgia de ampliação vesical, pode também ser confeccionado o conduto anterógrado cólico para a realização de enemas com solução salina ou água de torneira durante cerca de 30 a 45 minutos, geralmente a cada dois ou três dias, para promover o esvaziamento intestinal.20,27
Durante o período de seguimento apenas seis pacientes foram submetidos a esta intervenção cirúrgica. Todos tinham bexiga neurogênica e cinco eram do sexo feminino; todos adquiriram a continência fecal. Em outro estudo com sete anos de seguimento, foi descrita a realização deste procedimento cirúrgico em seis pacientes, todos eram portadores de bexiga neurogênica. Os resultados foram favoráveis, pois a continência fecal foi alcançada em cinco, com melhora da constipação crônica em todos.39
Outras abordagens cirúrgicas tornaram-se alternativas quando a uroterapia ou farmacoterapia não era viável para preservar a função renal, prevenir a infecção urinária e manter a continência urinária. A derivação urinária incontinente foi indicada para pacientes incapazes de realizar o autocateterismo devido à limitação física ou mental, em lactentes no qual a continência urinária não era uma exigência social e quando o CIL tornava-se inviável de ser realizado pelo cuidador, que geralmente era a mãe.40 Outra opção era a derivação urinária continente, no qual a própria criança ou a família esvaziava a bexiga através do cateterismo intermitente limpo, realizado por um estoma confeccionado a partir da bexiga até a parede abdominal anterior.20 Para os pacientes com bexiga neurogênica associada à hiperatividade do detrusor, capacidade vesical reduzida, baixa complacência vesical e elevada pressão intravesical que não respondiam ao tratamento conservador e com risco iminente de lesão do trato urinário superior, a ampliação vesical era indicada com o objetivo de aumentar a função de armazenamento da bexiga e diminuir a pressão intravesical.40
A dilatação pielocalicinal e de ureteres não foi quantificada, sendo considerada apenas como presente ou ausente e, em muitos pacientes, era leve. Como a sua presença foi associada com o desenvolvimento de cicatriz renal, achamos que sua detecção, quantificação e controle são fundamentais para um melhor controle da progressão da doença renal nestas crianças e, portanto, merece uma avaliação mais detalhada, incluindo a divisão entre leve, moderada e grave.
A detecção precoce da DTUI e a investigação diagnóstica com monitorização constante dos parâmetros clínicos, laboratoriais e de imagem são essenciais para a proposta terapêutica com o objetivo de evitar ou minimizar as alterações do trato urinário superior e promover a continência urinária. Esta abordagem deve ser individualizada e realizada em um centro de atenção especializado e interdisciplinar.