versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.38 no.4 São Paulo out./dez. 2016
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20160063
Contrastes são substâncias que têm grande capacidade para absorver o raio-X e, assim, possibilitar a visualização de estruturas que normalmente não podem ser observadas nos exames radiológicos.1 Uma das consequências indesejáveis com o uso dos meios de contraste é a nefropatia induzida por contraste (NIC), com incidência de menos de 5%, em populações não selecionadas, e até > 20%, nas populações de alto risco.2
Esta é uma causa iatrogênica de insuficiência renal aguda que tem sido motivo de inúmeros estudos clínicos e experimentais, na tentativa de melhor compreender os seus mecanismos fisiopatológicos e na busca por alternativas que possam preveni-la.2
Os achados histopatológicos na NIC se restringem ao túbulo proximal, tendo como característica a intensa vacuolização das células epiteliais.3,4 Estas alterações são reversíveis após alguns dias do uso do agente de contraste.5 A origem destes vacúolos pode ser devida à redução da diurese induzida pelo contraste, com consequente aumento da sua concentração urinária.6
Com a alta viscosidade, que ocorre especialmente com o uso de contrastes diméricos isosmolares, poderá haver lentificação do fluxo intratubular e maior tempo de exposição celular a estas moléculas.7 Nenhum dano ocorre nas organelas celulares vitais, que permanecem intactas.4
Na tentativa de evitar ou atenuar a ocorrência da NIC, diversas estratégias têm sido propostas. Embora a hidratação com cloreto ou bicarbonato de sódio seja a única medida de proteção inquestionável, dopamina,8 antagonistas da adenosina,9 antagonistas da endotelina,10 prostaglandinas,11 agonistas seletivos da dopamina12,13 e antioxidantes como a n-acetil-cisteína14 têm sido testados, com resultados conflitantes.
Wang et al.15 demonstraram experimentalmente nefroproteção com Magnolin, principal componente ativo da erva Magnolia fargesii, que tem efeitos anti-inflamatórios e antioxidantes. Renalase, enzima monoaminaoxidase recentemente descoberta no rim, mostrou proteção contra a NIC através de mecanismos de antioxidação, antiapoptose e anti-inflamatório e parece ser uma promissora intervenção terapêutica para evitar a NIC.16
Alguns autores têm sugerido que o sexo feminino pode ser um fator de risco para a NIC.17,18 Frequentemente, os estudos experimentais com contrastes radiológicos são realizados em animais do sexo masculino, embora estudos histoquímicos, autorradiográficos e ultraestruturais demonstrem diferenças ligadas ao gênero nos rins de ratos e outros roedores.19
Schiebler e Danner20 observaram que existem diferenças lisossomais significativas nos três segmentos dos túbulos proximais, especialmente em S2 e S3, quando comparados animais machos e fêmeas. É possível que diferenças nestes segmentos possam conferir variações na sensibilidade renal aos contrastes. Este estudo se propôs a avaliar as alterações histomorfométricas renais precoces da NIC em ratos Wistar machos e fêmeas.
Os procedimentos experimentais foram realizados de acordo com normas de vivissecção de animais descritas pelo Colégio Brasileiro de Experimentação Animal (COBEA). O projeto de pesquisa foi aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense.
Ratos Wistar adultos jovens, variante albina, machos e fêmeas, pesando entre 200 e 250 g, foram alojados em sala refrigerada com 12 horas de luz, temperatura (22 ± 2°C) e umidade relativa constantes. Os animais foram distribuídos de acordo com os grupos de tratamento, com cinco animais do mesmo sexo por gaiola de fundo de plástico com leito de maravalha esterilizada e recebendo água e ração padronizada (Nuvital®, Nutrientes SA) ad libitum. Para tornar os animais sensíveis à nefrotoxicidade pelo contraste, optamos pela nefrectomia unilateral e privação de água.4,21
Após permanecerem em período de adaptação por duas semanas, foram submetidos à nefrectomia esquerda sob anestesia com Ketamina 50 mg/kg de peso e Xilazina 8 mg/kg de peso por via intramuscular. No décimo quinto dia após a nefrectomia, os animais foram submetidos à privação de água por 12 horas e receberam as drogas conforme os seguintes grupos, todos constituídos por cinco animais: machos recebendo salina (G1); fêmeas recebendo salina (G2); machos recebendo diatrizoato (G3); fêmeas recebendo diatrizoato (G4).
Contraste iônico hiperosmolar, diatrizoato de sódio/meglumina (Urografina® Schering, Rio de Janeiro Brasil) foi injetado na veia caudal, na dose de 1,9 ml/kg (2,9 g de iodo/kg). Imediatamente após, os animais foram sacrificados com o uso de injeção intracardíaca de ketamina na dose de 80 mg/kg e necropsiados mediante abertura das cavidades abdominal e torácica. Amostras de tecido renal foram obtidas para estudo à microscopia ótica.
As amostras de tecido cortical renal foram fixadas em DuBosq Brasil (solução de Bouin alcoólica), processadas de acordo com a rotina histológica22 para microscopia ótica para preparo de blocos de parafina e obtenção de cortes do tecido com 3 micra de espessura. A coloração utilizada para análise foi a hematoxilina eosina (HE).
Os cortes histológicos dos rins dos grupos experimentais descritos, corados por HE, foram examinados em microscópio ótico Nikon Eclipse E400, utilizando-se condensador aplanático, objetiva 20 x 0,40 acroplan, com o objetivo de identificar áreas de tecido cortical para posterior análise morfométrica da lesão tubular proximal da NIC, caracterizada por vacúolos no epitélio de revestimento. Por meio da captura das áreas selecionadas pela câmera Evolution MP 5.0 acoplada ao computador, foram obtidas imagens para esta análise.
O estudo morfométrico foi realizado com o uso do programa de análise de imagem Image Pro-Plus 4.1 (Media Cybernetic, Silver Spring, EUA) selecionando-se "Manual Point Count". De cada animal dos grupos selecionados para esta avaliação foram contados, no total, 100 túbulos em cortes tubulares transversais com delimitação de membrana basal tubular visível em torno da estrutura. Foram excluídos quaisquer cortes transversais que não preenchessem estes critérios. Destes 100 túbulos com a marcação determinada no sistema, foram também marcados e contados os vacúolos.
A análise estatística dos achados histopatológicos foi realizada pela técnica da Análise da Variância a dois fatores (two-way ANOVA): tratamento e sexo. O teste de Shapiro-Wilk avaliou a normalidade dos dados (data normality) nos grupos formados pelos níveis (levels) dos dois fatores e a homogeneidade das variâncias foi avaliada pelo teste de Levene.
As comparações múltiplas (pairwise comparisons) para identificação de diferenças indicadas pela ANOVA foram realizadas pelo teste da menor diferença significante (MDS) - Least Significant Difference (LSD). As decisões estatísticas foram tomadas ao nível de significância de 0,05 (5%).
Os animais toleraram bem o tratamento e todos sobreviveram até a última etapa da experimentação. As amostras de tecido renal obtidas após a injeção do contraste mostraram grande presença de vacúolos nos túbulos proximais (Figuras 1 a 4). A ANOVA a dois fatores evidenciou diferenças estatisticamente significativas em função do tratamento: diatrizoato e salina (p < 0.0001), do sexo: maior em fêmeas (p < 0.0001) e da interação entre esses dois fatores (p = 0.003).
Figura 1 Microscopia óptica mostrando vacúolos nos túbulos proximais de ratos machos após uso de diatrizoato (HE, 20x).
Figura 2 Microscopia óptica mostrando vacúolos nos túbulos proximais de ratos fêmeas após uso de diatrizoato (HE, 20x).
Figura 3 Microscopia óptica mostrando vacúolos nos túbulos proximais de ratos machos após administração de soro fisiológico (HE, 20x).
Figura 4 Microscopia óptica mostrando vacúolos nos túbulos proximais de ratos fêmeas após administração de soro (HE, 20x).
Os animais que receberam diatrizoato, independentemente do gênero, apresentaram significativamente maior número de vacúolos por túbulo (11,32 ± 5,09) do que os animais que receberam salina (3,78 ± 1,42), p < 0.0001. As fêmeas que receberam diatrizoato exibiram maior número médio de vacúolos por túbulo (15,54 ± 1,48) do que os machos (7,11 ± 3,41), p < 0.0001 (Figura 5). Quanto à salina, machos e fêmeas não exibiram diferença estatisticamente significativa (2:54 ± 0,40 versus 5,03 ± 0,69), p = 0,055 (Figura 5).
O indicador clínico do comprometimento renal decorrente da exposição aos contrastes é a creatinina sérica, na qual se apoia a definição da NIC.2 Estudos experimentais têm demonstrado que a injeção intravascular do agente de contraste causa intensa vacuolização nos túbulos proximais, precedendo a elevação da creatinina.23
À microscopia óptica, todos os animais apresentaram intensa vacuolização das células tubulares proximais, em total concordância com os achados da literatura, que consideram a vacuolização tubular proximal uma característica da exposição ao contraste.5,21
Os animais que receberam diatrizoato mostraram média de vacúolos por túbulo três vezes maior do que a média encontrada nos grupos que receberam a solução salina. Houve diferença estatisticamente significante do número de vacúolos na comparação entre os gêneros, com as fêmeas apresentando vacuolização 50% mais intensa que os machos.
Animais normais são resistentes à nefrotoxicidade dos meios de contraste.23 A exposição aos múltiplos fatores de agressão renal, tais como uninefrectomia, depleção de sal, inibidores da ciclo-oxigenase e isquemia renal induzida, sensibiliza estes animais e permite que eles sejam utilizados como bons modelos experimentais da NIC.23
Em nosso estudo, a vacuolização epitelial tubular ocorreu em todos os animais que receberam o diatrizoato, confirmando que este protocolo foi capaz de induzir a nefrotoxicidade pelo contraste. Moreau et al.6 analisaram material de biópsia renal de 211 pacientes, 10 dias após os mesmos terem sido submetidos à urografia venosa ou arteriografia renal. Encontraram vacuolização das células tubulares proximais em 47 casos6. Observaram que não havia, necessariamente, correlação da então denominada "nefrose osmótica" com o declínio funcional renal, o que foi confirmado em novo estudo 5 anos após.6,8
O aparecimento dos vacúolos pode ser demonstrado, experimentalmente, 5 a 15 minutos após a exposição aos contrastes.21 Tervahartiala et al.24 e Cağlar et al.7 demonstraram vacuolização tubular após duas horas da exposição ao contraste, em protocolo bastante semelhante ao aqui apresentado. Além disso, é relatado que a vacuolização tubular é dose-dependente.6,25 Batternfeld et al.26 observaram que o processo de vacuolização induzida por doses elevadas de ioxaglato por si só não é suficiente para causar falência renal. Outros experimentos com ratos Wistar não submetidos aos vários procedimentos predisponentes de lesão renal necessitaram do uso de doses mais elevadas de contraste iodado, pelo menos duas vezes a utilizada em nosso estudo, a fim de induzir com sucesso a nefropatia.
Embora os contrastes hiperosmolares estejam associados à maior incidência de NIC,25 Tervahartiala et al.24 relataram menor grau de vacuolização com o diatrizoato, um composto de alta osmolaridade, comparado ao iotrolan, um composto isosmolar. É possível que este achado esteja vinculado às outras propriedades fisicoquímicas dos contrastes, especialmente a viscosidade, mais elevada nos compostos isoosmolares.25 Nossos achados permitem supor que as alterações lisossomais não são dependentes, explicitamente, da osmolaridade dos meios de contraste.
Iakovou et al.,17 em um estudo prospectivo envolvendo 8.628 pacientes submetidos a intervenções percutâneas com uso de contraste, concluíram que o sexo feminino é um preditor independente da NIC.7 Outro estudo constatou uma maior incidência de NIC em mulheres após intervenção coronária percutânea, mas atribuiu esse fato principalmente às características de base menos favoráveis, incluindo menor taxa de filtração glomerular e maior incidência de hipertensão.18 Gill et al.27 observaram que o sexo feminino pode ser um fator de risco para a NIC e que as mulheres teriam menor proteção com a hidratação.
No entanto, um estudo mais recente não conseguiu demonstrar que o sexo, a presença de hipertensão ou o diabetes mellitus, o débito cardíaco e o tipo e quantidade de meio de contraste são fatores de risco significativos para a NIC em pacientes submetidos cateterização cardíaca.28
No presente estudo experimental, embora tenhamos nos limitado à avaliação precoce e apenas aos aspectos histomorfométricos, as fêmeas que receberam diatrizoato exibiram significativamente mais vacúolos por túbulo que os machos. A parte contorcida dos túbulos proximais desempenha importante papel na reabsorção de proteínas do filtrado glomerular, que são transferidas para os lisossomas, onde são degradadas e devolvidas para a circulação sanguínea.29
Silverblatt e Kuehn30 demonstraram que os lisossomos são as principais organelas intracelulares para sequestro da gentamicina após captação pelas células tubulares proximais. Agentes estranhos e não digeríveis podem levar essa via à exaustão, com consequentes alterações e alargamentos do lisossomo.26
Os rins de ratos, machos ou fêmeas, possuem sítios livres de ligação para hormônios esteroides e as células dos túbulos proximais têm afinidade pelo estradiol, nas fêmeas, e pela testosterona, nos machos.19 A administração de estrogênio causa alterações tubulares, especialmente lisossomais, no rato31 e adenocarcinoma de túbulos proximais no hamster.31
Estas observações têm, ao nosso ver, especial interesse, já que todos os agentes de contraste induzem alterações lisossomais nas células dos túbulos proximais, e poderiam explicar nossos achados de maior intensidade da vacuolização nas fêmeas.24
O presente estudo experimental confirma a precocidade das alterações estruturais tubulares renais após administração de um meio de contraste venoso e demonstra maior intensidade do acometimento renal histológico no sexo feminino.