versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.113 no.6 São Paulo dez. 2019 Epub 02-Dez-2019
https://doi.org/10.36660/abc.20190753
O advento da congestão renal na insuficiência cardíaca foi descrito pela primeira vez por Frédéric Justin Collet (1870-1966), um patologista francês que descobriu a noção de congestão renal passiva relacionada à disfunção cardíaca, criando o termo revelador "rein cardiaque" no início de 1900.1 O termo ‘síndrome cardiorrenal’ surgiu em uma conferência do National Heart, Lung, and Blood Institute Working GrouP de 2004, avaliando as complexas interações entre coração e rim.2 Os principais mecanismos fisiopatológicos relacionados a essa condição são o aumento das pressões venosas centrais e intra-abdominais; débito cardíaco e índice cardíaco reduzidos; desregulação neuro-hormonal; estresse oxidativo e mediadores inflamatórios.3 A estenose aórtica (EA) degenerativa representa uma das doenças cardíacas valvares mais prevalentes e uma causa importante de insuficiência cardíaca, tendo forte correlação com o processo do envelhecimento. A combinação de aterosclerose, biomineralização e estresse oxidativo leva à deposição de cálcio nos folhetos valvares.4 A interação “renovalvular” na EA pode representar um caminho de mão dupla, de uma perspectiva fisiopatológica. Por um lado, a EA pode prejudicar a função renal pela hipoperfusão arterial e congestão venosa sistêmica. Por outro lado, a doença renal crônica (DRC) também é um importante fator de risco para EA, devido à calcificação maciça e agressiva dos folhetos, imposta principalmente por desequilíbrios na homeostase do cálcio e fósforo.5
Para pacientes com EA submetidos à substituição da válvula aórtica (SVA) cirúrgica convencional, há um aumento nas taxas de complicações, como sangramento maior e reoperação, em comparação com pacientes com função renal moderadamente reduzida (taxa de filtração glomerular estimada [TFGe] entre 30-60 mL/min/1,73 m2) versus aqueles sem doença renal.6 A mortalidade após a SVA cirúrgica também aumenta com o agravamento da TFG.7
O desenvolvimento da substituição da válvula aórtica transcateter (TAVR, sigla do inglês transcatheter aortic valve replacement) para o tratamento da EA trouxe esperança para um grupo de pacientes sem perspectiva terapêutica efetiva devido ao seu perfil clínico, caracterizado pela presença de fragilidade clínica e múltiplas comorbidades, impossibilitando a SVA cirúrgica.8 Nesse cenário, a TAVR representa uma alternativa terapêutica potencialmente menos invasiva para pacientes com EA e DRC. Alguns estudos anteriores avaliaram o impacto clínico da TAVR em pacientes com DRC. No clássico estudo PARTNER, houve uma mortalidade de 34,4% em 1 ano para pacientes com DRC grave.9 Para pacientes em tratamento dialítico e TAVR, também houve uma maior taxa de mortalidade e sangramento maior.10 Além disso, a ocorrência de lesão renal aguda no período peri-procedimento da TAVR também está associada a prognósticos ruins.11 Por outro lado, alguns estudos anteriores demonstram um impacto positivo da TAVR na função renal, principalmente em pacientes com DRC moderada a grave, com recuperação significativa da TFGe, possivelmente relacionada à melhora do débito cardíaco e redução da congestão venosa sistêmica.12-14
De maneira promissora, o presente estudo realizado por Calça et al.,15 fornece dados adicionais sobre o impacto positivo da TAVR na função renal. Através de um estudo retrospectivo e unicêntrico, 233 pacientes com EA submetidos a TAVR foram estratificados em 3 grupos de acordo com a TFGe basal (mL/min/1,73 m2): grupo 1 (TFGe > 60), grupo 2 (30 ≤ TFGe < 60) e grupo 3 (TFGe < 30). A função renal foi reavaliada novamente um mês e um ano após a TAVR. Os autores observaram uma melhora significativa na TFGe em pacientes com DRC moderada (grupo 2) a grave (grupo 3) (cerca de 15,6% em um ano; cerca de 58,6% em um ano, respectivamente). Por outro lado, os pacientes do grupo 1 apresentaram um declínio progressivo na TFGe um ano após o procedimento de TAVR (P < 0,001 vs. pré-TAVR). No entanto, houve uma baixa incidência de terapia dialítica em um ano (2,4%). As possíveis razões consideradas pelos autores para esse agravamento da TFGe no grupo 1 foram o maior uso de contraste iodado nesse grupo (65% dos pacientes) e o uso de bloqueadores dos receptores da angiotensina e inibidores da enzima de conversão da angiotensina no período pós-procedimento. A análise de regressão logística multivariada identificou que o uso de contraste iodado foi um preditor independente de agravamento da função renal, não relacionado ao volume de contraste utilizado.
Apesar de suas limitações inerentes (centro único, estudo retrospectivo e observacional), o estudo de Calça et al.15 traz uma luz promissora sobre o impacto da TAVR na função renal em pacientes com DRC moderada a grave. Essa disfunção renal pré-procedimento pode não ser um questão de exclusão para a TAVR, dada a possibilidade de melhora a curto e médio prazo. Futuros estudos randomizados, multicêntricos, com um controle do tipo de contraste mais rigoroso e acompanhamento mais longo, são necessários para uma conclusão definitiva.