Compartilhar

Impacto do rastreamento e monitoramento de glicemia capilar na detecção de hiperglicemia e hipoglicemia em pacientes não graves internados

Impacto do rastreamento e monitoramento de glicemia capilar na detecção de hiperglicemia e hipoglicemia em pacientes não graves internados

Autores:

Rogerio Silicani Ribeiro,
Ricardo Botticini Peres,
Magda Tiemi Yamamoto,
Ana Paula Novaes,
Claudia Regina Laselva,
Adriana Caschera Leme Faulhaber,
Miguel Cendoroglo Neto,
Simão Augusto Lottenberg,
Jairo Tabacow Hidal,
Jose Antonio Maluf de Carvalho

ARTIGO ORIGINAL

Einstein (São Paulo)

versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385

Einstein (São Paulo) vol.9 no.1 São Paulo jan./mar. 2011

http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082011ao1840

INTRODUÇÃO

O diabetes é uma condição de prevalência crescente em todo mundo(1). Dados populacionais de cidades paulistas sugerem aumento da prevalência de diabetes em nosso meio, sendo estimada ao redor de 12%(2). Na fase inicial, o diabetes é frequentemente assintomático, sendo geralmente diagnosticado em exames de rotina. Considerando a baixa aderência a exames de rastreamento na população, cerca de metade dos portadores desconhece o diagnóstico(3). No hospital, a prevalência de diabetes é maior que na população geral, afetando entre 25 e 35% dos internados(45). A prevalência é maior em unidades de maior complexidade, variando de 10 a 12% em unidades não intensivas a até cerca de 50% dos internados nas unidades de cuidados intensivo(5). A maior prevalência pode ser explicada pela associação entre diabetes e complicações cardiovasculares, metabólicas e infecciosas que necessitam internação hospitalar para tratamento. Dos pacientes diabéticos internados, 4 a 10% desconhecem o diagnóstico(5,6). Apesar da elevada prevalência, frequentemente o diagnóstico de diabetes é omitido nos registros de admissão, evolução e alta hospitalar(57). Além disso, alterações glicêmicas transitórias associadas ao estresse podem ocorrer em até 12% dos indivíduos sem história prévia de diabetes(8).

A presença de hiperglicemia devido ao diabetes ou desencadeada por estresse influencia negativamente a evolução clínica de pacientes internados por qualquer condição. Cada aumento de 50mg/dL em um paciente internado aumenta a mortalidade perioperatória em cirurgias não cardíacas e não vasculares em 52%, o risco de complicações (insuficiência renal, sepse e morte) em pacientes recebendo nutrição parenteral em 4,4 vezes, e o tempo de internação em 0,76 dia, além do custo em US$ 1, 769,00 em pacientes submetidos à revascularização. Por outro lado, o tratamento da hiperglicemia em pacientes internados é facilitado pela contínua assistência da enfermagem e pode reduzir a incidência de complicações e mortalidade(4,911).

Recentemente, a hipoglicemia tem sido implicada com maior mortalidade hospitalar, tanto em pacientes críticos como em pacientes não críticos(1214). Dada à variedade de sintomas associados à hipoglicemia e à presença de diversas comorbidades que causam sintomas no paciente internado, a monitorização da glicemia é fundamental no diagnóstico e no tratamento da hipoglicemia. O tratamento da hipoglicemia requer a administração de glicose via oral, nos pacientes conscientes (maioria dos casos), ou endovenosa, nos pacientes inconscientes(14).

A glicemia pode ser mensurada no plasma ou em aparelhos para aferição de glicemia capilar à beira do leito, obedecendo a controles de qualidade necessários para a confiabilidade do método. Segundo as recomendações e diretrizes, os valores de glicemia em pacientes internados não devem ser superiores a 180 mg/dL ou inferiores a 60 mg/dL. A assistência de profissionais treinados em diabetes, a orientação nutricional e a utilização de esquemas de insulinoterapia padronizados permitem atingir o controle de hiper e hipoglicemia de forma eficaz e segura, e os custos do tratamento são inferiores aos custos das complicações(14).

Considerando a elevada frequência de alterações glicêmicas em pacientes internados, o caráter assintomático e o desconhecimento de pacientes quanto à hiperglicemia ou ao diabetes, a subnotificação do diabetes nos registros médicos, a influência da hiperglicemia na morbimortalidade de pacientes internados, a disponibilidade do exame diagnóstico com limite de normalidade bem definido e a disponibilidade de tratamento, o rastreamento de alterações glicêmicas por meio de glicemia capilar na admissão pode ser uma melhoria interessante na qualidade da assistência, reduzindo o tempo e o custo da internação(14).

A partir de Maio de 2009, a coordenação de enfermagem e a diretoria médica do Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE) padronizaram o rastreamento de alterações da glicemia em todos os pacientes internados e a monitorização de glicemia em quatro períodos (antes das refeições principais e às 21h) nos portadores de alteração glicêmica.

OBJETIVO

Analisar o impacto do rastreamento e monitorização de glicemia capilar no diagnóstico de hiper e hipoglicemia em pacientes internados em unidades não graves.

MÉTODOS

Para avaliar a detecção de diabetes no HIAE, foram analisados os prontuários de pacientes internados no período de 2002 a 2007, sendo considerado portador de diabetes o doente com registro de diagnóstico de diabetes, complicações por diabetes (neuropatias ou retinopatias), diabetes gestacional de acordo com o código internacional de doença (CID-10) e a prescrição de insulina.

Para avaliar o impacto do rastreamento de glicemia, foram analisados os dados de glicemia capilar de todos os pacientes admitidos em unidades de internação da Clínica Médico-Cirúrgica (CMC) do HIAE, responsável pela internação de pacientes não críticos, de 1° de Março a 30 de Junho de 2009, período no qual o rastreamento de glicemia capilar foi implantado. Os pacientes foram identificados a partir do número do prontuário registrado durante a realização da glicemia capilar. Aqueles que não realizaram glicemia capilar foram identificados a partir dos dados de alta fornecidos pelo sistema de gestão hospitalar.

A mensuração de glicemia capilar utilizou o glucosímetro Precision PCx (Abbott®) O controle de qualidade desse glucosímetro é realizado a partir dos coeficientes de variação de medidas em soluções-controle de glicose com concentração alta e baixa padronizadas, obrigatoriamente repetidas a cada 24 horas. Todas as medidas de glicemia são enviados ao software PrecisionWeb por unidades de sincronização (dock stations) nas unidades de internação, permitindo relatórios organizados por paciente, local de internação e faixas de glicemia.

A ocorrência de hiperglicemia foi definida como a medida de ao menos um de glicemia capilar ≥ 200 mg/dL, independente de jejum ou após uma refeição em qualquer momento da internação. Em pacientes ambulatoriais, uma medida de glicemia plasmática > 200 mg/dL permite o diagnóstico de diabetes(14). A detecção de hiperglicemia foi definida como a razão entre o total de prontuários com a respectiva alteração da glicemia durante o período de internação e o total de prontuários que receberam alta nesse período, conforme a fórmula que segue. A análise da hipoglicemia utilizou os mesmos princípios da hiperglicemia, sendo a hipoglicemia definida como glicemia capilar ≤ 60 mg/dL.

Detecção de hiperglicemia = (total de prontuários com hiperglicemia) / total de prontuários com alta no período

Para análise descritiva dos dados, utilizamos o software Excel (Microsoft) e para análise estatística, o GraphPad (Prism).

RESULTADOS

Segundo a análise de registro do diagnóstico de diabetes e complicações relacionadas nos prontuários, houve um significativo aumento da notificação nos pacientes internados entre 2002 e 2007, conforme descrito na tabela 1.

Tabela 1 Frequência estimada de diabetes segundo registros de prontuário na admissão, evolução e alta 

2002 2003 2004 2005 2006 2007
Registro de diabetes 977 1.028 1.175 1.172 1.398 2.344
Total de internados 30.687 32.346 33.985 35.246 35.454 35.224
Frequência estimada (%) 3,2 3,2 3,5 3,3 3,9 6,7

De acordo com a análise de ocorrência de hiper e hipoglicemia, foram internados 8.365 pacientes nas unidades de internação da CMC-HIAE, no período de Março a Junho de 2009, dos quais 4.490 (53,7%) realizaram glicemia capilar, sendo que 907 pacientes apresentaram hiperglicemia (10,8% dos pacientes internados) e 206 apresentaram hipoglicemia (2,4% dos pacientes internados).

Conforme descrito na tabela 2, antes da padronização do rastreamento e da monitorização de glicemia, no bimestre Março/Abril de 2009, a glicemia capilar foi mensurada em 1.115 de 4.014 pacientes internados (27%), dos quais 373 apresentaram hiperglicemia e 60 hipoglicemia. Após a adoção do rastreamento e da monitorização, no bimestre Maio/Junho de 2009, a glicemia capilar foi mensurada em 3.375 de 4.350 pacientes internados (77,5%) nesse período. Foram identificados 535 pacientes com hiperglicemia (12,3% dos pacientes internados) e 146 pacientes com hipoglicemia (3,4% dos pacientes internados). O aumento do rastreamento de glicemia nos pacientes internados foi associado a um aumento significativo da detecção de hiperglicemia de 32% (160 casos diagnosticados a mais) e a um aumento da detecção de hipoglicemia de 124% (86 casos a mais). Para cada caso adicional de hiper e hipoglicemia detectado, foram rastreados, respectivamente, 14 e 26 pacientes a mais em relação ao bimestre anterior. A detecção de hiperglicemia foi significantemente maior (p < 0,001) que a frequência de registros de diagnósticos relacionados ao diabetes no último ano da análise (2007).

Tabela 2 Análise descritiva e comparativa de pacientes internados, rastreados e com detecção de hiper e hipoglicemia de Março a Junho de 2009 

Rastreamento Março/Abril Maio/Junho Valor p*
Cobertura de rastreamento – rastreados/internados (%) 1.115/4.014 (27,7) 3.375/4.350 (77,5) < 0,001
Hiperglicemia** – pacientes (%) 373 (9,3) 534 (12,2) < 0,001
Hipoglicemia** – pacientes (%) 60 (1,5) 146 (3,3) < 0,001
Proporção hipo/hiper 1/6,2 1/3,6 < 0,01

*Teste do χ2;

**prevalência em relação ao total de internados.

DISCUSSÃO

Neste estudo, a padronização do rastreamento e da monitorização em quatro períodos aumentaram a detecção de hiper e hipoglicemia em pacientes internados em unidades não graves. A frequência de alterações glicêmicas foi significantemente maior que a proporção de pacientes com diagnóstico de diabetes, de complicações associadas ao diabetes ou com prescrição de insulina registrada nos anos anteriores, em pacientes internados em todas as unidades de internação do HIAE.

O rastreamento de diabetes tem sido indicado para indivíduos com fatores de risco, como idade maior que 45 anos, sobrepeso ou hipertensão – subgrupos populacionais que apresentam prevalência de diabetes ao redor de 35%. O rastreamento para indivíduos com fatores de risco para desenvolver diabetes aumenta a sensibilidade e a especificidade do exame, e reduz o número de indivíduos a serem rastreados para cada caso encontrado, reduzindo o custo. Na população com idade acima de 45 anos e hipertensão, é necessário rastrear entre 13 e 48 indivíduos (mediana das faixas etárias = 22,7 indivíduos) para identificar um portador de diabetes. Nos pacientes internados em unidades não graves, foram rastreados 14 indivíduos a mais em relação ao bimestre anterior, para identificar um portador de hiperglicemia(1418).

Nos grupos populacionais com risco para diabetes, a análise de custo-efetividade do rastreamento é favorável mesmo levando em consideração a utilização de insumos de monitorização e medicamentos por períodos prolongados, para prevenir desfechos que ocorrerão tardiamente, e, ainda assim, tem se demonstrado o benefício do rastreamento(1418). Embora não existam análises de custo-efetividade do rastreamento no hospital, sabe-se que até metade dos gastos com a população de pacientes diabéticos ocorre em internações, e os protocolos de controle glicêmico reduzem a chance de complicações e mortalidade com custo-efetividade favorável(4). Mesmo com esses dados, análises de custo-efetividade do rastreamento da glicemia são necessárias para melhor compreensão do papel do rastreamento no cenário hospitalar.

Embora a maioria dos estudos tenha como foco a influência da hiperglicemia nos desfechos de internação, a hipoglicemia também está associada à maior morbimortalidade, tanto em pacientes internados em unidades de cuidados intensivos quanto em unidades de menor complexidade(1214). A hipoglicemia geralmente ocorre em indivíduos que recebem medicação oral ou insulina para controle da hiperglicemia e pode ser assintomática ou se manifestar por sintomas inespecíficos. Nesse estudo, observamos um aumento da detecção de hipoglicemia, o que pode ser decorrente de um aumento na utilização de hipoglicemiantes orais e insulina; porém, como a proporção de aumento nos casos de hipoglicemia foi significantemente maior que o aumento dos casos de hiperglicemia, isto provavelmente se deve à maior frequência de monitorização de glicemia nos pacientes internados.

CONCLUSÃO

O rastreamento de glicemia em todos os pacientes da admissão e a monitorização de glicemia em quatro períodos permite um significativo aumento da detecção de pacientes com hiper e hipoglicemia, condições frequentes, subdiagnosticadas e que influenciam desfavoravelmente a evolução da internação.

REFERÊNCIAS

1. International Diabetes Federation. Global Burden: Prevalence and Projections, 2010 and 2030. Diabetes Atlas. [cited 2010 Jul 28]. Available from:
2. Bosi PL, Carvalho AM, Contrera D, Casale G, Pereira MA, Gronner MF, et al. Prevalência de diabetes melito e tolerância à glicose diminuída na população urbana de 30 a 79 anos da cidade de São Carlos, São Paulo. Arq Bras Endocrinol Metab. 2009;53(6):726-32.
3. Malerbi DA, Franco LJ. Multicenter Study of the Prevalence of Diabetes Mellitus and Impaired Glucose Tolerance in the Urban Brazilian Population Aged 30-69yr. The Brazilian Cooperative Group on the Study of Diabetes Prevalence. Diabetes Care. 1992;15(11):1509-16.
4. Moghissi ES, Korytkowski MT, DiNardo M, Einhorn D, Hellman R, Hirsch IB, Inzucchi SE, Ismail-Beigi F, Kirkman MS, Umpierrez GE; American Association of Clinical Endocrinologists; American Diabetes Association. American Association of Clinical Endocrinologists and American Diabetes Association consensus statement on inpatient glycemic control. Endocr Pract. 2009;15(4):353-69.
5. Wexler DJ, Nathan DM, Grant RW, Regan S, Van Leuvan AL, Cagliero E. Prevalence of elevated hemoglobin A1c among patients admitted to the hospital without a diagnosis of diabetes. J Clin Endocrinol Metab. 2008;93(11):4238-44.
6. Lisbôa HRK, Souilljee M, Cruz CS, Zoletti L, Gobbato DO. Prevalência de hiperglicemia não diagnosticada nos pacientes internados nos hospitais de Passo Fundo, RS. Arq Bras Endocrinol Metab. 2000;44(3):220-6.
7. Carral F, Olveira G, Aguilar M, Ortego J, Gavilán I, Doménech I, et al. Hospital discharge records under-report the prevalence of diabetes in inpatients. Diabetes Res Clin Pract. 2003;59(2):145-51.
8. Umpierrez GE, Isaacs SD, Bazargan N, You X, Thaler LM, Kitabchi AE. Hyperglycemia: an independent marker of in-hospital mortality in patients with undiagnosed diabetes. J Clin Endocrinol Metab. 2002;87(3):978-82.
9. Thompson CL, Dunn KC, Menon MC, Kearns LE, Braithwaite SS. Hyperglycemia in the hospital. Diabetes Spectrum. 2005;18:20-7
10. Cheung NW, Napier B, Zaccaria C, Fletcher JP. Hyperglycemia Is Associated with adverse outcomes in patients receiving total parenteral nutrition. Diabetes Care. 2005;28(10);2367-71.
11. McAlister FA, Man J, Bistritz L, Amad H, Tandom P. Diabetes and coronary artery bypass surgery. Diabetes Care. 2003;26(5)1518-24.
12. Turchin A, Matheny ME, Shubina M, Scanlon JV, Greenwood B, Pendergrass ML. Hypoglycemia and clinical outcomes in patients with diabetes hospitalized in the general ward. Diabetes Care. 2009;32(7):1153-7.
13. Mechanick JI, Handelsman Y, Bloomgarden ZT. Hypoglycemia in the intensive care unit. Curr Opin Clin Nutr Metab Care. 2007;10(2):193-6.
14. American Diabetes Association. Standards of medical care in diabetes-2010. Diabetes Care. 2010;33 Suppl 1:S11-61.
15. American Diabetes Association. Screening for diabetes. Diabetes Care. 2002;25 Suppl: S1-S24.
16. Ealovega MW, Tabaei BP, Brandle M, Burke R, Herman WH. Opportunistic screening for diabetes in routine clinical practice. Diabetes Care. 2004;27(1):9-12.
17. Centers for Disease Control and Prevention. The cost-effectiveness of screening for type 2 diabetes. CDC Diabetes Cost-Effectiveness Study Group, Centers for Disease Control and Prevention. JAMA. 1998;280(20):1757-63.
18. Hoerger TJ, Harris R, Hicks KA, Donahue K, Sorensen S, Engelgau M. Screening for type 2 diabetes mellitus: a cost-effectiveness analysis. Ann Intern Med. 2004;140(9):689-99.