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Impacto Prognóstico das Alterações do Metabolismo do Ferro em doentes com Síndrome Coronária Aguda

Impacto Prognóstico das Alterações do Metabolismo do Ferro em doentes com Síndrome Coronária Aguda

Autores:

Tatiana Duarte,
Sara Gonçalves,
Catarina Sá,
Rita Rodrigues,
Rita Marinheiro,
Marta Fonseca,
Filipe Seixo,
Rui Caria

ARTIGO ORIGINAL

Arquivos Brasileiros de Cardiologia

versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170

Arq. Bras. Cardiol. vol.111 no.2 São Paulo ago. 2018 Epub 16-Jul-2018

https://doi.org/10.5935/abc.20180116

Resumo

Fundamento:

Alterações do metabolismo do ferro têm sido associadas a um aumento do risco de eventos cardiovasculares. No entanto, o impacto prognóstico em doentes (dts) com síndrome coronária aguda (SCA) encontra-se ainda pouco esclarecido.

Objetivo:

Determinar o valor prognóstico a curto e longo prazo dos níveis séricos do ferro e ferritina em dts com SCA.

Métodos:

Foram avaliados doentes consecutivos admitidos numa Unidade Coronária com o diagnóstico de SCA no período de 2 anos. A população foi agrupada segundo os tercis de distribuição de ferro e ferritina. Os eventos adversos primários foram a ocorrência de morte intrahospitalar e a 1 ano, bem como, insuficiência cardíaca (IC) intrahospitalar e a 1 ano de follow-up.

Resultados:

Estudaram-se 280 dts (73% sexo masculino; idade média de 68 ± 13 anos). O nível médio de ferro sérico e de ferritina foi 59 ± 34 mcg/dl e 205 ± 185 ng/ml, respetivamente. Os doentes incluídos no 1º tercil (≤ 40 mcg/dl) de ferro sérico apresentaram maior percentagem de eventos adversos intrahospitalares e a 1 ano. Níveis mais baixos e mais elevados de ferritina (1º e 3º tercil, respetivamente, ≤ 110; > 219 ng/ml) estiveram associados a uma maior ocorrência de IC em internamento e de morte a 1 ano. Um valor de ferritina > 316 ng/mL constituiu fator de risco independente de morte a 1 ano (OR ajustado 14 IC 95% 2,6-75,9).

Conclusão:

Nesta população alterações do metabolismo do ferro estiveram associadas a uma maior ocorrência de eventos adversos e níveis elevados de ferritina constituíram preditor independente de mortalidade a longo prazo.

Palavras-chave: Síndrome Coronariana Aguda; Distúrbios do Metabolismo do Ferro; Prognóstico

Abstract

Background:

Iron metabolism disorders have been associated with an increased risk of cardiovascular events. However, the prognostic impact on patients (pts) with acute coronary syndrome (ACS) has yet to be clarified.

Objective:

To determine the prognostic value of serum iron and ferritin levels in pts with ACS in the short and long-term.

Methods:

Consecutive pts admitted to a coronary care unit with a diagnosis of ACS, for a period of 2 years, were evaluated. The population was divided into tertiles of serum iron and ferritin distribution. The primary adverse events were the occurrence of in-hospital death or heart failure (HF) and death or HF at 1 year of follow-up.

Results:

We studied 280 pts (73% males; mean age 68 ± 13 years). The mean levels of serum iron and ferritin were 59 ± 34 mcg/dL and 205 ± 185 ng/mL, respectively. Patients included in the 1st tertile of serum iron (≤ 40 mcg/dL) had a higher rate of adverse events, in-hospital and after 1 year. Lower and higher levels of ferritin (1st and 3rd tertiles, ≤ 110; >219 ng/ml, respectively) were associated with a higher incidence of HF during hospitalization and death at 1 year. A ferritin value >316 ng /mL was an independent risk factor for death at 1 year (adjusted OR: 14; 95%CI: 2.6 to 75.9).

Conclusion:

In this population, iron metabolism alterations were associated with a higher rate of adverse events and higher ferritin levels constituted an independent mortality predictor in the long-term.

Keywords: Acute Coronary Syndrome; Iron Metabolism Disorders; Prognostic

Introdução

O ferro é um micronutriente importante no metabolismo celular, necessário para homeostase corporal.1 A deficiência de ferro atinge mais de um 1/3 da população mundial, sendo frequente como complicação de uma doença crónica (Doença inflamatória do intestino, Doença renal crónica, Doença de Parkinson, Artrite reumatoide) e apresenta um papel na ativação do sistema nervoso simpático, bem como na hipertrofia e dilatação ventricular.1

De acordo com o estudo EMPIRE, 1 em cada 3 portugueses tem défice de ferro.2 O défice de ferro é um importante fator de co-morbilidade na insuficiência cardíaca (IC) crónica, bem como nos períodos de descompensação da IC, independentemente da presença de anemia.1,3

O estudo CONFIRM-HF demonstrou um efeito favorável na capacidade funcional e qualidade de vida de doentes com IC, bem como, na redução do número de internamentos por IC descompensada, nos doentes submetidos à terapêutica com ferro endovenoso.1,3,4

Por sua vez, o debate entre o papel da ferritina e do ferro no metabolismo da aterosclerose persiste, não sendo clara a função do metabolismo do ferro na doença coronária. Apesar de pequenos, existem estudos que consideram o ferro como sendo proaterogénico pelo seu papel na formação de radicais livres, com consequente stress oxidativo ao nível vascular.5,6

Estudos em animais têm confirmado que a administração crónica de ferro acelera a formação de trombos.6 Por outro lado, níveis baixos de ferro podem estar associados a isquémia e a eventos cardiovasculares major (MACE) em doentes com Síndrome coronária aguda.5

Um estudo recente, Steen et al, falhou no estabelecimento de qualquer relação entre o ferro e o risco de enfarte do miocárdio, bem como, eventos isquémicos recorrentes.7

A ferritina é considerada por alguns estudos como citoprotectora, contudo análises multivariáveis mostram que níveis baixos de ferritina são preditores de MACE a 30 dias em doentes com SCA.5,8

Apesar dos vários estudos, a controvérsia do papel do ferro na SCA persiste, não se conhecendo até à data a verdadeira correlação entre o ferro e a doença aterosclerótica.

No presente estudo pretendemos determinar o valor prognóstico a curto e a longo prazo dos níveis séricos de ferro e ferritina em doentes admitidos por SCA.

Métodos

Amostra

A amostra foi avaliada retrospetivamente, sendo constituída por doentes consecutivos admitidos numa Unidade Coronária com o diagnóstico de SCA entre Junho de 2011 e Junho de 2013. Foram excluídos doentes cujo perfil de ferro não foi determinado durante o internamento.

Variáveis

A população foi caracterizada de acordo com as suas características basais (idade e sexo); clínicas (antecedentes pessoais; tipo de SCA; Classe de Killip; Fração de ejeção do VE) e laboratoriais (níveis séricos de Creatinina, BNP, Hemoglobina), sendo agrupada segundo os tercis de distribuição de ferro sérico (1º tercil ≤ 40; 2º tercil > 40 e ≤ 67; 3º tercil> 67 mcg/dl) e de ferritina (1º tercil ≤ 110; 2º tercil <110 e ≤ 219; 3º tercil> 219 ng/ml).

Os cut-offs do ferro sérico e da ferritina sérica respetivamente, 60-180 mcg/dl e 10-120 ng/ml, de acordo com o laboratório do centro hospitalar.

End-point

Os prognósticos a curto e a longo prazo foram avaliados partir de eventos adversos primários: Morte intrahospitalar e Morte a 1 ano; Insuficiência cardíaca intrahospitalar (Classe de Killip ≥ 2 e BNP ≥ 400 pg/ml) e no follow-up de 1 ano (fração de ejeção < 50% e Classe de NYHA ≥ 2). Outros end-points secundários - Reenfarte e Acidente isquémico vascular no follow-up de 1 ano.

Análise estatística

Para realizar a análise estatística utilizou-se o programa IBM SPSS Statistics versão 20 para Windows 8. As variáveis contínuas foram expressas em valor médio ± desvio padrão e comparadas de acordo com os tercis de ferro e ferritina através do Teste ANOVA. As variáveis categóricas foram expressas em valor absoluto e/ou percentagem e comparadas com o teste qui-quadrado. As associações foram consideradas estatisticamente significativas na presença de p-value < 0,05. As variáveis contínuas através de curvas de ROC foram associadas aos eventos adversos primários (Morte e IC). O valor preditor dos níveis de ferro e ferritina sobre o risco de eventos adversos intra-hospitalares e a um ano foi determinado pelo Odds-ratio, com intervalo de confiança de 95%.

Resultados

As características basais, clínicas e laboratoriais da população total e de acordo com os tercis de ferro sérico e ferritina são apresentadas nas tabelas 1 e 2. Estudaram-se 280 doentes (73% do sexo masculino) com idade média 68 ± 13 anos. A distribuição dos níveis séricos do ferro e da ferritina encontra-se representada na figura 1.

Tabela 1 Características basais e clínicas, de acordo com os tercis de ferro e ferritina 

Características basais População n = 280 1º tercil ferro (≤ 40 mcg/dL) 2º tercil ferro (> 40 ou ≤ 67 mcg/dL) 3º tercil ferro (> 67 mcg/dL) Valor de p 1º tercil ferritina (≤ 110 ng/mL) 2º tercil ferritina (>110 ou ≤ 219 ng/mL) 3º tercil ferritina (> 219 ng/mL) Valor de p
Idade, anos 68 ± 13 69 ± 15 69 ± 12 67 ± 13 < 0,001 73 ± 12 66 ± 14 67 ± 13 0,001
Sexo masculino 204 (73) 63 (23) 73 (26) 68 (24) 0,12 53 (19) 68 (24) 78 (28) 0,12
Antecedentes pessoais
HAS 186 (66,4) 56 (20) 70 (25) 60 (21) 0,12 69 (25) 58 (21) 57 (20) 0,12
Diabetes melito 90 (32) 36 (13) 30 (11) 24 (9) 0,21 32 (11,4) 32 (11,4) 26 (9,3) 0,69
Dislipidemia 140 (50) 37 (13) 59 (21) 44 (16) 0,87 46 (16) 49 (18) 43 (15) 0,34
Antecedentes IAM 44 (16) 10 (3,6) 18 (6,4) 16 (6) 0,21 18 (6,4) 15 (5,3) 11 (4) 0,42
Antecedentes de IC 9 (3,2) 2 (0,7) 5 (1,8) 2 (0,7) 0,34 2 (0,7) 3 (1,1) 4 (1,4) 0,68
Insuficiência renal 21 (8) 8 (3) 7 (2,5) 6 (2) 0,8 9 (3,2) 6 (2) 6 (2) 0,6
DAP 11 (4) 3 (1) 3 (1) 5 (1,8) 0,7 8 (3) 3 (1) 0 0,7
Tipo de SCA
Angina instável 12 (4,3) 3 (1) 2 (0,7) 7 (2,5) 0,21 7 (2,5) 3 (1) 2 (0,7) 0,85
IAMCST 125 (45) 50 (18) 43 (15,3) 32 (11) 35 (13) 41 (15) 45 (16)
IAMSST 122 (44) 36 (13) 41 (15) 45 (16) 41 (15) 40 (14) 40 (14)
IAM indeterminado 21 (8) 6 (2,1) 6 (2,1) 9 (3,2) 9 (3,2) 10 (4) 2 (0,7)

Resultados expressos como n (%) ou média ± mediana. HAS: hipertensão arterial sistêmica; IAM: infarto agudo do miocárdio; IC: insuficiência cardíaca; DAP: doença arterial periférica; SCA: síndrome coronária aguda; IAMCST: infarto agudo do miocárdio com supradesnivelamento do ST; IAMSST: infarto agudo do miocárdio sem supradesnivelamento do ST.

Tabela 2 Características clínicas e laboratoriais, de acordo com os tercis de ferro e ferritina 

Apresentação clínica População n = 280 1º tercil ferro (≤ 40 mcg/dL) 2º tercil ferro (> 40 ou ≤ 67 mcg/dL) 3º tercil ferro (> 67 mcg/dL) Valor de p 1º tercil ferritina (≤ 110 ng/mL) 2º tercil ferritina (>110 ou ≤ 219 ng/mL) 3º tercil de ferritina (> 219 ng/mL) Valor de p
Classe de Killip I 244 (87) 74 (27) 83 (30) 87 (31) 0,12 73 (26) 88 (31,4) 78 (28) 0,23
Classe de Killip II 18 (6,4) 11 (4) 4 (1,4) 3 (1) 14 (5) 2 (0,7) 2 (0,7)
Classe de Killip III 11 (3,9) 4 (1,4) 4 (1,4) 3 (1) 3 (1) 2 (0,7) 6 (2,1)
Classe de Killip IV 7 (2,5) 6 (2,1) 4 (1,4) 0 2 (0,7) 2 (0,7) 3 (1)
Classificação da fração de ejeção
FEVE > 50% 157 (69) 42 (15) 58 (21) 57 (20) 0,08 43 (15) 59 (21) 54 (19) 0,7
FEVE 41-50% 23 (10) 16 (6) 3 (1) 4 (1,4) 7 (2,5) 9 (3) 7 (2,5)
FEVE 30-40% 38 (17) 16 (6) 14 (5) 8 (3) 16 (6) 8 (3) 11 (4)
FEVE < 30% 11 (5) 4 (1,4) 4 (1,4) 3 (1) 6 (2,1) 2 (0,7) 3 (1)
Avaliação laboratorial
Creatinina, mg/dL 1,08 ± 0,9 1,2 ± 1,2 1,05 ± 0,6 0,9± 1,8 0,9 1,1 ± 0,7 1 ± 0,6 1,1 ± 1,2 0,8
BNP, pg/mL 331,6 ± 499 567 ± 712 266 ± 371 180 ± 212 < 0,001 488 ± 684 204 ± 270 346 ± 427 0,001
Hemoglobina, g/dL 13,1 ± 2 11,8 ± 2,2 13,4 ± 2 14 ± 16 < 0,001 12 ± 2,2 14 ± 1,7 14 ± 2 < 0,001

Resultados expressos como n (%) ou média ± mediana. FEVE: fração de ejeção do ventrículo esquerdo; BNP: peptídeo natriurético cerebral

Figura 1 Distribuição dos níveis séricos de ferro e ferritina na população. 

O diagnóstico principal de admissão foi em 45% (n = 125) dos doentes EAM com SupraST e em 44% (n = 122) EAM sem SupraST.

Cerca de 87% dos doentes (n = 244) apresentaram-se à admissão em Classe de Killip I, sendo que apenas 2,5% (n = 7) foram admitidos em choque cardiogénico. Em 11 (5%) doentes, o ecocardiograma transtorácico evidenciou disfunção sistólica grave do ventrículo esquerdo.

Em termos de prognóstico a curto prazo: 1,1% (n = 3) dos doentes faleceu durante o internamento e 28% (n = 79) apresentou evidência de insuficiência cardíaca. Em relação ao impacto a longo prazo, sensivelmente 7% (n = 19) dos doentes faleceu no 1º ano de follow-up e 12% (n = 33) desenvolveram critérios de IC no decorrer do seguimento clínico (Tabelas 3 e 4).

Tabela 3 Eventos a curto e longo prazo, de acordo com os níveis de ferro 

Evento 1º tercil ferro (≤ 40 mcg/dL) 2º tercil ferro (> 40 ou ≤ 67 mcg/dL) 3º tercil ferro (> 67 mcg/dL) Valor de p
Morte intra-hospitalar 3 0 0 0,04
Morte 1 ano 12 4 3 0,02
IC intra-hospitalar 46 19 14 < 0,001
IC 1 ano 17 9 7 0,08
Reinfarto 1 ano 3 3 2 0,9
AVC 1 ano 0 1 1 0,8

IC: insuficiência cardíaca; AVC: acidente vascular cerebral.

Tabela 4 Eventos a curto e longo prazo de acordo com os níveis de ferritina 

Evento 1º tercil ferritina (≤ 110 ng/mL) 2º tercil ferritina (> 110 ou≤ 219 ng/mL) 3º tercil ferritina (> 219 ng/mL) Valor de p
Morte intra-hospitalar 1 1 1 0,8
Morte 1 ano 9 2 8 0,04
IC intra-hospitalar 38 16 25 0,001
IC 1 ano 13 9 11 0,1
Reinfarto 1 ano 4 3 1 0,1
AVC 1 ano 1 1 0 0,5

IC: insuficiência cardíaca; AVC: acidente vascular cerebral.

A análise de regressão multivariada evidenciou que um valor de ferritina superior a 316 ng/ml é preditor de risco independente para morte a 1 ano (OR ajustado de 14 IC 95% 2,6-75,9; p = 0,0023). (Tabela 5)

Tabela 5 Determinação de variáveis independentes associadas aos eventos cardiovasculares a curto e longo prazo. 

Variável Razão de chances IC95% Valor de p
Morte 1 ano
Ferro ≤ 36 mcg/dL 2,6 0,7-9 0,13
Ferritina > 316 ng/mL 14 2,5-75 0.0027
Hemoglobina ≤ 11,7 g/dL 17 3-102 0,0016
Idade > 70 anos 21 2-237 0,01
Morte intra-hospitalar
Ferro ≤ 14 mcg/dL 3,9 1-9 0,99
Ferritina > 104 ng/ml 1,17 2-70 0,99
Insuficiência cardíaca 1 ano
Ferro ≤ 40 mcg/dL 0,9 0,2-3,9 0,9
Ferritina ≤ 157 ng/mL 0,36 0,06-2,1 0,2
Insuficiência cardíaca intra-hospitalar
Ferro ≤ 30 mcg/dL 1,8 0,6-5,3 0,3
Ferritina ≤ 116 ng/mL 0,5 0,15-1,8 0,3

Valores determinados a partir das curvas Característica de Operação do Receptor. IC95%: intervalo de confiança de 95%.

As curvas de sobrevivência para Morte e IC de acordo com os tercis de ferro e ferritina não mostraram diferença estatística. (Figuras 2 e 3)

Figura 2 Curvas de sobrevivência de acordo com os tercis de ferro. 

Figura 3 Curvas de sobrevivência de acordo com os tercis de ferritina. 

Discussão

A deficiência de ferro é uma co-morbilidade comum e clinicamente relevante da insuficiência cardíaca, estando associada a pior prognóstico. Alguns estudos (CONFIRM-HF) têm evidenciado o benefício na correção do ferro em termos de qualidade vida e tolerância ao esforço em doentes com insuficiência cardíaca com função sistólica deprimida.1,3

De acordo com as atuais recomendações europeias para o tratamento da Insuficiência cardíaca, o ferro endovenoso está indicado, com Classe IIa, em doentes sintomáticos com função sistólica deprimida e deficiência de ferro (níveis de ferritina sérica < 100 ng/ml ou ferritina entre 100-299 ng/ml e Saturação de transferrina < 20%).3 Por outro lado o papel do ferro e da ferritina é dúbio no âmbito da doença aterosclerótica e SCA.5-8

Nesta população, o tipo de SCA, bem como a apresentação clínica desta, em termos de classe de Killip e o compromisso da função sistólica do VE não foram estatisticamente influenciados pelos níveis de ferro nem de ferritina.

A idade apresentou impacto estatístico nos níveis séricos de ferro e ferritina, o que pode ser explicado pelo défice de ferro na alimentação, compromisso na absorção intestinal que aumentam com a idade e a presença de mais co-morbilidades que interferem com o metabolismo do ferro.

Níveis mais baixos de ferro e ferritina estiveram, como seria de se esperar, associados estatisticamente a níveis de Hb mais baixos, com valor médio de 12 g/dl.

Valores médios de BNP > 450 pg/ml, foram estatisticamente associados aos primeiros tercis de ferro e ferritina, o que é concordante com vários estudos no âmbito da IC, nos quais se constatou a deficiência de ferro e ferritina como co-morbilidade frequente da IC.1,3

Alberto Dominguez-Rodriguez, evidenciou que níveis baixos de ferro podem estar associados a eventos cardiovasculares major (MACE) em doentes com SCA.5 Nesta população de doentes com SCA, alterações do metabolismo do ferro estiveram associadas a uma maior ocorrência de eventos adversos.

Níveis de ferro ≤ 40 mcg/dl apresentaram um impacto negativo em termos de mortalidade e IC intra-hospitalar, com significado estatístico, contudo os níveis de ferro sérico não constituíram fator de risco independente para a ocorrência de eventos cardiovasculares.

Será a ferritina cito-protetora ou aterogénica ou, por outro lado, a sua deficiência preditora de eventos cardiovasculares major em doentes com SCA? Os resultados da literatura não são concordantes quanto ao papel da ferritina na aterosclerose.3 Doentes com SCA e eventos cardiovasculares (MACE) apresentaram níveis baixos de ferritina versus doentes com SCA sem eventos adversos.5

Na nossa população, em termos dos níveis de ferritina, os 1º e 3º tercis foram associados à ocorrência de mais eventos adversos, com significado estatístico em termos de IC intra-hospitalar e morte a 1 ano. Um nível de ferritina sérico > 316 ng/ml, foi considerado preditor de risco independente para morte a 1 ano (OR ajustado de 14 IC 95% 2,6-75,9; p = 0,0023), o que contraria as conclusões de alguns estudos, como previamente mencionado. O nível sérico de ferritina não constituiu preditor de risco independente para insuficiência cardíaca.

Limitações

O presente estudo está sujeito às limitações associadas a todas análises retrospetivas, não aleatorizadas e efetuadas num único centro.

Conclusão

Nesta população de doentes com SCA, alterações do metabolismo do ferro estiveram associadas a uma maior ocorrência de eventos adversos. Níveis elevados de ferritina constituíram um preditor independente de mortalidade a longo prazo. Os níveis de ferro sérico não constituíram fator de risco independente para a ocorrência de eventos cardiovasculares.

Estudos adicionais são necessários para esclarecer se os níveis de ferro sérico ou ferritina constituem um biomarcador de lesão vascular/prognóstico em doentes com SCA e estabelecer o “verdadeiro” papel do ferro e da ferritina neste tipo de doença cardiovascular.

REFERÊNCIAS

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