versão On-line ISSN 2526-8910
Cad. Bras. Ter. Ocup. vol.27 no.3 São Carlos jul./set. 2019 Epub 22-Ago-2019
http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoao1636
O Hospital Dia (HD) ou “Serviço de Internação Parcial”, é uma estrutura organizacional de uma instituição de saúde onde são fornecidos cuidados de modo programado em ambulatório. Esse ambiente oferece cuidados por um período normalmente não superior a 12 horas, e não requer estadia durante a noite (LIMA; BOTEGA, 2001).
Diversas patologias são assistidas neste espaço. No HD em questão, as crianças e adolescentes convivem com Mucopolissacaridose (MPS), que decorre de fatores genéticos. A MPS é causada por erros inatos do metabolismo, em que a produção das enzimas responsáveis pela degradação dos glicosaminoglicanos (GAGs) está diminuída ou ausente. O acúmulo dos GAGs afeta diretamente o funcionamento de todos os órgãos (NEUFELD; MUENZER, 2001).
A MPS não possui cura, entretanto, existem tratamentos que retardam a progressão da doença e proporcionam melhoria na qualidade de vida e capacidade funcional dessas pessoas, promovendo desenvolvimento, participação em atividades significativas e a interação social. Entre os tratamentos específicos, encontra-se a terapia de reposição enzimática para reposição da enzima específica quando a mesma é ausente ou deficitária. Esse tratamento se dá através de internações periódicas e pré-agendadas para medicação, afetando as funções do sujeito em suas atividades diárias por, no mínimo, uma vez por mês, podendo ser até quatro vezes ao mês.
Bury (1982) conceitua doença crônica como um tipo particular de evento que promove uma ruptura na vida cotidiana do indivíduo. A experiência da internação, mesmo que parcial e pré-agendada, traz consigo marcas de rupturas da vida cotidiana (COSTA; LIMA, 2002) e alterações de rotinas simples, como ir à escola, atividades de lazer e brincar (MITRE, 2006). A partir disso, faz-se necessário considerar o cotidiano da família, já que ele precisa estar alinhado com os horários e dias da medicação, causando um impacto na organização da mesma.
O processo de saúde-doença são experiências singulares e subjetivas e é por intermédio da palavra que o sujeito expressa suas questões (AURELIANO, 2012, p. 240). Para a criança e adolescente, a hospitalização, mesmo que programada, traz consequências e limitações que extrapolam os sinais e sintomas físicos. A perspectiva das crianças e adolescentes que passam por esse processo de internação e tem seu cotidiano alterado, pode contribuir para a sua atenção integral. Alguns autores, como Vieira e Lima (2002), Mitre (2006), Mello e Moreira (2010) e Garcia-Schinzari et al. (2014), tratam dos efeitos da hospitalização infantil em dias seguidos ou prolongados e ressaltam a necessidade de conhecer o impacto da hospitalização, partindo da perspectiva das crianças e adolescentes e as entendendo como sujeitos que muito colaboram com este conhecimento ao vivenciarem esse processo.
Em Velho (1978), um autor clássico da Antropologia, buscamos apoio para as vantagens de rever e enriquecer os resultados da pesquisa, somando o que já era conhecido (estudos científicos e, também, por uma das pesquisadoras, através das entradas pelo Projeto de Extensão de “contação” de histórias em um HD de hospital público) com o que pode-se tirar de novo a partir da realização da pesquisa. Esse processo de estranhar o que nos é familiar, como enfatizado por Velho, torna-se possível ao passo em que a postura e o manejo do diálogo são repensados e alterados para fazer emergir os resultados do campo.
Ao realizar pesquisas e buscar as possibilidades de intervenções no campo da terapia ocupacional nesse contexto, notou-se a escassez de estudos com desfechos significativos sobre o impacto da internação parcial recorrente na vida dessas crianças e adolescentes. Fato que instigou ainda mais os questionamentos de como a terapia ocupacional poderia contribuir no cuidado a esses sujeitos.
O estudo teve como objetivo compreender os significados da internação parcial recorrente na perspectiva da criança e do adolescente que convive com a mucopolissacaridose, frente à internação para terapia de reposição enzimática. Além de apreender como esses sujeitos entendem o processo de doença e discutir quais são as intervenções possíveis da terapia ocupacional nesse espaço.
Este estudo tem abordagem qualitativa do tipo exploratório. Foi considerada a perspectiva de crianças e adolescentes com mucopolissacaridose durante suas internações hospitalares para medicação, com vistas a explorar suas experiências e suas possibilidades de expressão enquanto sujeitos de conhecimento.
Estudos qualitativos visam valorizar um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser operacionalizados em variáveis (MINAYO, 2001). Turato (2005) aponta que no contexto da metodologia qualitativa aplicada à saúde é considerada a concepção das Ciências Humanas, em que não se busca estudar o fenômeno em si, mas entender seu significado individual ou coletivo para a vida das pessoas. O pesquisador é o instrumento de pesquisa e busca apreender o objeto e como ele se manifesta.
No estudo, considerou-se adolescente a partir de 12 anos conforme Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (BRASIL, 1990). Foram seguidos os aspectos éticos da pesquisa contidos na Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde, tendo sido aprovado o projeto pelo Comitê de Ética do hospital selecionado sob o número 2.247.962 (CAAE: 69678417.2.0000.5264). Todas as crianças e o adolescente assinaram o Termo de Assentimento e seus responsáveis o de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
O trabalho de campo foi realizado no Hospital Dia de um hospital pediátrico na cidade do Rio de Janeiro entre agosto e setembro de 2017, totalizando nove encontros. O HD referido é composto por seis leitos divididos em boxes. Às quartas-feiras ocorre a terapia de reposição enzimática em crianças e adolescentes com Mucopolissacaridose. Ao todo, sete sujeitos com diagnóstico de MPS, entre 7 e 24 anos, são atendidos nesse espaço que é uma das referências no município em genética médica.
As crianças e adolescentes quando chegam ao hospital, antes de serem encaminhados para o HD, passam por uma avaliação médica em outro setor. Após a liberação, são encaminhados para o Hospital Dia onde aguardam a chegada do remédio para dar início a infusão. As crianças e adolescentes atendidos neste espaço são sempre as mesmas, gerando uma familiaridade entre as famílias e equipe do setor.
Foram incluídos crianças e adolescentes de 7 a 18 anos com MPS, que faziam terapia de reposição enzimática e sabiam de sua doença. Foram excluídos aqueles (as) com qualquer agravo neurológico sinalizado pela equipe, considerando a incapacidade dos sujeitos de compreender as solicitações e concordar em participar da pesquisa, e também aqueles que eventualmente recusaram-se participar. Foi feito um recorte de faixa etária baseada no fato de as crianças com mais de sete anos encontrarem-se na fase de pensamento lógico e coerente e conseguirem, assim, comunicar verbalmente suas ideias, dando significado às experiências (MELLO; MOREIRA, 2010) e menores de dezoito anos, pois é o limite de idade da adolescência estabelecido pelo ECA.
Ao fim do processo de seleção, os sujeitos da pesquisa foram duas crianças, Maria de 7 anos e Felipe de 9 anos, e um adolescente, Eduardo de 12 anos. Foi mantido o anonimato dos sujeitos da pesquisa sendo permitido que eles escolhessem o nome fictício citado acima pelo qual gostariam de ser mencionados no trabalho.
O número de participantes se baseou na quantidade de crianças/adolescente que realizavam terapia de reposição enzimática para MPS no hospital dia escolhido e que atendiam aos critérios deste estudo. Ao todo haviam sete sujeitos no setor em tratamento, sendo que quatro correspondiam aos critérios e apenas três concordaram em participar. A recusa de um deles pode ser contextualizada pelo momento em que a criança passava (pós cirurgia).
Antes de iniciar a pesquisa, e após a sua aprovação no Comitê de Ética, foi feita uma visita ao serviço, com apresentação da proposta e das pesquisadoras aos profissionais, famílias e crianças/adolescentes. A chefia da Genética e do Hospital já haviam dado as cartas de apoio ao projeto que foram devidamente encaminhadas para apreciação no Comitê de Ética.
Na fase de coletas foram realizadas atividades lúdicas como o desenho livre e feitas as seguintes indagações: “Como é para você estar aqui no hospital?” e “Qual a imagem que vem a sua cabeça quando você pensa na sua doença?”. As perguntas não sofreram modificação, mas a explicação, quando solicitada pelos sujeitos, foi adaptada conforme a faixa etária do participante, porém respeitando a temática central. As atividades, entrevistas realizadas e observação da rotina do local, foram registradas em um diário de campo durante a realização da entrevista e, posteriormente, foram disponibilizados os materiais como: folha de ofício, lápis de cor, giz de cera e massinha de modelar. As pesquisadoras permaneceram durante a entrevista realizada no box de cada criança, ressaltando-se que, uma das crianças exigiu que o box fosse fechado com a cortina e que só ficasse uma das pesquisadoras, mas tendo a outra permanecido no setor (fora do box).
Devido à familiaridade dos sujeitos com uma das pesquisadoras pela participação em projeto de extensão que ocorria no local, sua presença foi confundida pelas crianças/adolescente, sendo inicialmente associada às atividades extensionistas. O jaleco branco, diferente do colorido que é usado na extensão, foi um recurso para mudança dessa imagem, além da presença da outra pesquisadora que não fazia parte do referido projeto. A proximidade com as crianças e o espaço foi fator crucial para facilitar a aceitação e abertura para o estudo.
O material da pesquisa foi organizado seguindo a perspectiva teórico analítica (GOMES et al., 2005) com a:
avaliação do material disponível a partir do campo segundo objetivos do estudo;
elaboração de estruturas de análise: uma construção a partir dos núcleos temáticos obtidos no campo e sua fundamentação;
análise contextualizada e triangulada dos dados, sendo possível triangular as entrevistas com informações de diário de campo, observação de atitudes da criança e rotina do hospital estabelecendo diálogo entre diferentes técnicas e fontes;
interpretação qualitativa através do uso da análise dos sentidos, das falas, do desenho e da observação, como caminho para entendimento dos significados, a qual revela lógicas e explicações mais abrangentes sobre um determinado tema (GOMES, 2016), que no artigo se apresenta a partir da terapia ocupacional, da doença crônica e da hospitalização.
A análise da produção deu-se de forma interpretativa (GOMES, 2011), levando em consideração: como a criança se representou, que aspectos valoriza em sua vida, a linguagem e a posição de conhecimento além do manejo da informação sobre o processo da doença através de suas falas e representações gráficas.
As entrevistas tiveram duração média de 40 minutos e foi realizada mais de uma vez com Felipe (9 anos), pois se encontrava sonolento ao final e pediu para continuar outro dia, e também com Maria (7 anos), que durante a primeira entrevista mostrou-se tímida e solicitou mais um dia.
A análise da entrevista não incidiu sobre o desenho em si, mas sim no significado que a criança atribuiu ao próprio processo de desenhar e sobre o que é possível compreender da realidade a partir da imagem produzida (NATIVIDADE; COUTINHO; ZANELLA, 2008). As pesquisadoras consideraram o comportamento da criança/adolescente ao desenhar. Como exemplo, o que relatava sobre o que fazia, mudança no traçado ou na fisionomia, emoção, se o desenho retratava o que era dito na entrevista; ou seja, comportamentos considerados relevantes sobre o objeto de estudo.
Vygotsky (1998) compreende o desenho infantil a partir do contexto histórico-cultural no qual a criança está inserida. Dessa forma para compreender o desenho é necessário fazer uma escuta do que a própria criança fala sobre sua produção.
A entrevista foi registrada no mesmo momento, considerando a presença de duas pesquisadoras, uma conduzia e as duas anotavam. As respostas das crianças/adolescente foram em frases curtas, permitindo anotação durante a entrevista, e em menor quantidade, diferentemente do que ocorre com adultos no mesmo processo. Também foram feitos registros em diário de campo logo após o término da entrevista a partir das memórias das pesquisadoras. Os desenhos realizados tiveram maior destaque pelos sujeitos do campo sendo enfatizados na análise. Foi possível identificar campos ou núcleos temáticos (GOMES, 2011; GOMES, 2016) trazidos pelas crianças/adolescente que serão discutidos posteriormente. Além disso, a partir das falas e observação do setor, foram identificadas ações que podem ser abordadas pela terapia ocupacional.
Os resultados seguem a partir dos dados obtidos na entrevista, análise dos dados do diário de campo e observação dos desenhos e atitudes apresentadas. Para compreendê-los, foi realizada análise interpretativa, de modo a apreender os núcleos de sentido que ficaram assim construídos: reorganização do cotidiano da família, consequências da doença, redes de apoio, influência dos projetos de humanização e terapia ocupacional no processo da hospitalização.
A descoberta da doença crônica produz mudanças no cotidiano tanto do sujeito que recebe o diagnóstico quanto de sua família. No caso de doenças em crianças, os pais/cuidadores são os que mais passam por mudanças em suas rotinas (VIEIRA et al., 2008). A doença crônica pode produzir rompimento nas estruturas da vida cotidiana, como relacionamentos e trabalho, o que faz com que as expectativas e os planos que os indivíduos têm em relação ao futuro sejam reavaliados (BURY, 1982).
A desorganização do cotidiano da família é inevitável, sobretudo quando a criança necessita de internações recorrentes, fato comum tratando-se de condição crônica (SILVA et al., 2010). É importante ressaltar que, no caso das crianças e adolescente entrevistados, a medicação é pré-agendada, tendo claro seu início e fim. Dessa forma, não exige uma internação prolongada.
Durante as entrevistas, a mudança da rotina sofrida pela família apareceu no discurso de duas das três crianças entrevistadas. Essa mudança se apresenta desde alterações nos afazeres cotidianos do cuidador principal, até em mudanças em planos, por exemplo, de viagem, tendo sempre que adequar-se ao dia da medicação.
Embora a temática da pergunta tenha sido sobre como é para essa criança estar no hospital e sobre como ela enxerga sua doença, as respostas foram respondidas evidenciando especialmente, as relações familiares, principalmente com a mãe. A doença crônica faz com que indivíduos, suas famílias e redes sociais próximas fiquem diante da forma mais pura de relação (BURY, 1982).
Em todos os discursos aparecem a percepção da criança com foco em suas mães que estão sempre presentes, demonstrando preocupação com as mudanças na rotina delas e com a sobrecarga que a doença causa. Em uma das entrevistas, a criança trouxe o fato de como descobrir a doença mudou a rotina da família, mencionando pontos como ter que acordar cedo, passar o dia no hospital e ter que esperar o remédio chegar.
Destaca-se a produção de Eduardo, 12 anos, na Figura 1, em que ao ser questionado sobre o que pensa sobre sua doença o mesmo respondeu prontamente: “Penso na minha mãe”. Ao ser questionado sobre o motivo explica que sua mãe é uma guerreira, pois cuida dele. Tal fala demonstra o quanto o adolescente não fica alheio ao que acontece ao seu redor.
Figura 1 Desenho em que a criança retrata a mãe dentro de um coração. No desenho aparecem palavras como “Milagre”, “Deus” e “Fé”.
Diversos estudos discorrem sobre como as doenças crônicas na infância repercutem na vida da mãe. Gavazza et al. (2008) e Alves e Bueno (2018) trazem dados, em que pode-se destacar uma prevalência de mais de 90% dos cuidados a crianças com deficiências/doenças estarem, sobretudo, sob responsabilidade das mães ou de figuras femininas. Mesmo com um espaço de dez anos de um estudo para outro, os dados permanecem atuais. Vieira et al. (2008) complementa que, de uma maneira geral, os pais assumem financeiramente parte dos atendimentos enquanto os cuidados prestados à criança, como vesti-las, alimentá-las e acompanhá-las aos tratamentos e consultas ficam sobre responsabilidade da mãe.
Silva et al. (2010) referem que, muitas vezes, o título de cuidadora está implícito ao papel da mãe, sendo a mesma a responsável pelo cuidado com os filhos. Logo, em situações de doença, cabe a mãe reorganizar sua rotina de forma a atender às necessidades dos filhos. Diante das entrevistas foi possível notar que as crianças e o adolescente se mostraram sensíveis a essas repercussões na vida da mãe, tendo ciência das mudanças ocorridas, demonstrando através do desenho (Figura 1, Figura 2 e Figura 3) e falas, o reconhecimento, a gratidão e a espiritualidade. Santos et al. (2018) reafirmam a importância da espiritualidade como ponto positivo para autoestima e fortalecimento de resiliência nas situações cotidianas, favorecendo o envolvimento desses sujeitos em suas ocupações em casa, na escola e até mesmo no hospital.
Por se tratar de uma doença progressiva e que acomete a lubrificação das articulações, tem como consequências o comprometimento no tecido conjuntivo levando à perda da mobilidade articular, defasagem na amplitude de movimento de várias articulações (especialmente em ombros e cotovelos), perda de força muscular, alterações posturais, alterações nos nervos periféricos e no túnel do carpo levando à perda funcional do polegar e a mão em garra (ROCHA et al., 2012). Em algumas articulações, como joelhos, quadris e cotovelos, os comprometimentos tornam-se visíveis ainda na infância (CARDOSO-SANTOS et al., 2008).
Frente à necessidade de conviver com a doença, que exige hospitalizações frequentes, as crianças e os adolescentes passam, então, a se familiarizar com os procedimentos, nomes dos medicamentos, apropriando-se até mesmo de um vocabulário técnico (VIEIRA; LIMA, 2002). Todos os entrevistados apresentaram-se como conhecedores de suas condições clínicas, mostrando-se capazes de realizarem explicações acerca dos procedimentos e medicações que fazem uso durante o tratamento. Embora uma das crianças diante da pergunta sobre o que vem a sua cabeça quando pensa na doença respondesse que não entende muito bem, ela apresentava entendimento sobre os procedimentos realizados pela equipe de enfermagem.
Diante disso, ao serem questionados sobre a doença, traziam tanto aspectos positivos como negativos. Felipe, 9 anos, descreve que não gosta das consequências nas mãos, pois, por causa da doença, não consegue fechá-las totalmente, apontando que dificulta na realização das atividades do cotidiano, por exemplo, escrever e comer. Ao ser questionado sobre o que vem a sua cabeça quando pensa na doença, Felipe representou um monstro, algo que era ruim (Figura 2).
A doença, algumas vezes, pode ser caracterizada como algo negativo, uma vez que há privação das atividades cotidianas e da participação social (VIEIRA; LIMA, 2002; MELLO; MOREIRA, 2010). Diante de uma doença crônica, a estrutura da vida cotidiana é transformada, exigindo que o paciente mobilize recursos de diferentes ordens para enfrentar e lidar com a doença, fazendo com que sua trajetória de vida seja traçada de acordo com as possibilidades e limites da mesma (MITRE, 2006; ALVES, 2014).
Felipe destaca que em seu processo de internação o momento da punção é a pior parte, devido ao medo da dor. Entretanto, para Maria, 7 anos, a espera do remédio é o momento que gera maior ansiedade, pois é o que determina até que horário permanecerá no hospital. Eduardo destaca o fato de compreender que a medicação faz bem à sua saúde, demonstrando entender a importância e necessidade da medicação. Cuidados da rotina hospitalar como medicação e punções podem influenciar na participação social e acabam por fazer parte dos impactos da hospitalização e da cronicidade mesmo diante de internação programada.
No que diz respeito a Eduardo, as questões referentes a doença, como a baixa estatura, não o afetam, defendendo como uma boa característica. Perguntado sobre o que pensa da doença, respondeu: “a doença me define, pois ela quem me trouxe para o hospital” (sic). Aureliano (2012), debate em sua pesquisa o quanto a visão em torno da doença e do tratamento vão além das visões particulares, sendo construídas a partir das interações que estabelece com o entorno.
As crianças e o adolescente demonstraram compreender a necessidade do tratamento e das hospitalizações, porém, como relatado por Eduardo e Maria, gostariam de estar em casa, realizando atividades cotidianas e brincando. No discurso de Eduardo, podemos destacar ainda uma fala em que diz que gostaria de um milagre: que pudesse fazer o tratamento em casa ou que fosse curado. Porém, ao mesmo tempo que demonstra esse desejo, diz também que tem medo de perder a “família Hospital Dia”. Enquanto fazia seu relato e desenhava, Eduardo mostrava-se agitado (fazia força ao desenhar e manusear a massinha), embora dissesse com tranquilidade que compreendia o fato de ter que estar no hospital. Tal comportamento ao desenhar reforçou a contradição que sentia e reconhece as interações estabelecidas com as pessoas do HD.
Ao utilizar o brincar como recurso, é possível observar, através das atitudes da criança, o que há de repercussão positiva e também negativa. Esse é um estranhamento necessário quando se atua com o brincar. Mesmo o fato de desenhar ser considerado um momento agradável, gerou um comportamento agitado, evidenciando questões sobre a pergunta que a fala por si só não seria capaz de transmitir.
Além das consequências físicas, no discurso de Eduardo, apareceram também questões como falta nos espaços significativos para ele, como na escola a aula de educação física, e de lazer, como a igreja. Embora a medicação seja considerada como um fator limitante que o impeça de frequentar regularmente esses espaços, demonstrou em sua fala o êxito em conciliá-las com as internações pré-agendadas. A escola tem conhecimento sobre sua condição clínica e relata ter as atividades, como conteúdos e provas adaptadas para sua rotina medicamentosa.
Maria não se pronunciou quanto a doença. Disse que sabia o que era, mas que não entendia completamente, mostrou-se reservada quando questionada. Na abordagem com crianças e adolescentes, a confidencialidade é uma das principais estratégias para as propostas de adesão a intervenção (COSTA; BIGRAS, 2007). Embora Maria tenha solicitado total privacidade durante a entrevista, se manifestou com poucas informações sobre sua condição de saúde. Ao final, solicitou a presença da outra pesquisadora, que anteriormente não havia permitido que entrasse no box, mas não conseguiu contar sobre a entrevista, apenas mostrou os desenhos realizados.
Estar ciente da doença, como nos foi afirmado na escolha dos participantes da pesquisa, não significava saber o que se passava ao certo e dava o direito à criança de não se manifestar sobre o assunto. Para Mitre (2006), a experiência do adoecimento ocorre de diferentes maneiras para crianças e adolescentes, mesmo que compartilhem o mesmo diagnóstico e o mesmo espaço para a internação.
As crianças e adolescentes atendidos às quartas-feiras são sempre as mesmas, o que favorece o surgimento do vínculo entre as famílias e a equipe de profissionais do hospital. Nas falas de todas as crianças/adolescente, surgiram a importância das pessoas que compõem aquele espaço, de pacientes e acompanhantes até os profissionais. Durante a observação foi possível notar a amizade existente. De fato, no curso da pesquisa, houve a programação de uma confraternização de data festiva para o mês seguinte e as pesquisadoras foram convidadas a participar no dia do evento, inclusive por outras mães que não participaram do estudo.
Costa e Bigras (2007) ressaltam sobre a importância das redes de apoio no local de tratamento. Eles discorrem sobre a importância das redes de proteção, no caso as associações e instituições que os respaldam e oferecem apoio, e sobre as redes sociais, com a formação de vínculo por pessoas e grupos interligados, possibilitando o compartilhamento de experiências. A identificação das redes sociais, significativas para o paciente, durante o tratamento, pode servir para auxiliar os profissionais, proporcionando um melhor direcionamento de ações e cuidados destinados à família e ao paciente hospitalizado (MENEZES; MORÉ; BARROS, 2015).
Durante os desenhos livres todas as crianças/adolescente desejaram desenhar as pessoas que estavam presentes no Hospital Dia, além dos familiares mais próximos. Também apareceu a importância do cuidado da equipe de enfermagem para tratamento, narrando as diferenças de manejo durante a punção.
Mitre (2006), destaca a importância do estabelecimento de vínculo e relações de confiança entre as crianças e os profissionais de saúde, servindo como facilitador no processo de tratamento.
Além disso, a família tem grande participação no processo, o que pode ser percebido nos desenhos. Todos reforçaram a sua importância para ao tratamento. Na Figura 3, destaca-se o desenho realizado por Maria, que evidencia o retrato de sua família. Durante a entrevista, a mesma referiu-se bastante a ela e o apoio que recebe.
Na Figura 2, apresentada anteriormente, também é possível notar a representação de familiares e amigos.
Para a criança que convive com doença crônica, muitas vezes o espaço hospitalar torna-se a parte de seu espaço social. Foi possível notar a importância da constituição do vínculo entre as crianças, profissionais e acompanhantes servindo como uma rede de apoio eficiente e facilitadora da adesão ao tratamento.
O espaço é marcado pela atuação de projetos de humanização como o de contação de histórias, palhaçaria e Biblioteca Viva. Em um dos dias da entrevista, houve a entrada do projeto de contação de histórias.
Dos entrevistados, o adolescente, Eduardo, é o que realiza tratamento no hospital a mais tempo visto sua idade. Ao ser questionado sobre como é estar no hospital, o mesmo respondeu que o convívio é bom, que no início não gostava, mas que se acostumou. Quando questionado sobre o que mudou desde o início de seu tratamento, o mesmo menciona o projeto de contação de histórias.
Em todas as entrevistas, os projetos de humanização foram mencionados como facilitadores para suas vindas semanais ao hospital. As histórias auxiliam na superação do medo, da tristeza e da ociosidade (GARCIA-SCHINZARI et al., 2014) e ao diminuir o foco na doença, é possível proporcionar alívio e melhor aceitação do tratamento, como foi visto nas entrevistas.
Foi possível observar a participação positiva dessas crianças e adolescentes durante as atividades desenvolvidas pelos projetos como uma oportunidade não relacionada à sua doença, o que aparenta amenizar o desconforto causado por essa hospitalização. Tais encontros remetem a uma naturalidade do brincar, que parecia não estar ocorrendo dentro do espaço hospitalar. Isso se potencializava ao passo que as crianças e adolescentes exerciam seu direito de escolha sobre escutar ou não histórias e sobre qual livro desejava apreciar.
Esses momentos oferecem às crianças/adolescentes a possibilidade de se deslocarem de uma posição passiva, a condição de paciente, para uma mais ativa, passando à ação e desenvolvendo suas potencialidades (VIEIRA; LIMA, 2002).
Para Garcia-Schinzari et al. (2014), o hospital ainda é um espaço que provoca medo e angústia em muitas crianças/adolescentes e seus familiares, e é por isso que programas de humanização, devem ser cada vez mais utilizados como estratégias de diminuir os efeitos negativos da hospitalização.
Definida pela Associação Americana de Terapia Ocupacional (AMERICAN..., 2015), o terapeuta ocupacional utiliza-se das atividades cotidianas (ocupações) com a finalidade de favorecer ou possibilitar a participação dos indivíduos atendidos nos diferentes espaços em que convive. Durante a realização desse estudo foi possível notar as possibilidades de atuação da terapia ocupacional junto à essas crianças e adolescentes no espaço do hospital.
Segundo Carlo, Bartalotti e Palm (2004), o terapeuta ocupacional é o profissional responsável pela promoção da vida ocupacional dos sujeitos, ao abordar condições físicas que estão comprometidas pela doença e atuar na construção de sua autonomia e independência para uma vida ativa. O terapeuta ocupacional é capacitado para auxiliar crianças e familiares a elaborar o enfrentamento para o processo de internação.
A promoção da qualidade de vida do sujeito que está hospitalizado ou que tem sua rotina marcada por hospitalizações recorrentes é primordial, sendo necessário abordar questões relacionadas ao ambiente hospitalar, atividades escolares e de lazer e convívio familiar (OTHERO; CARLO, 2006).
As atividades lúdicas realizadas com as crianças e adolescentes durante a pesquisa, permitiram acesso à elaboração de suas expressões e significações sobre o processo de tratamento (MELLO; MOREIRA, 2010). Através das entrevistas, pôde-se identificar papéis ocupacionais como: ser criança e ser estudante, que em muitos relatos apresentam-se prejudicados pelo desenvolvimento da doença ou pela obrigatoriedade da internação para medicação.
As internações recorrentes provocam diversas alterações na rotina de vida dessas crianças e adolescente, dentre elas a escolar, como observadas nas falas de Eduardo. Com as crianças/adolescente em questão, as medicações são pré-agendadas, facilitando a organização da rotina. Porém, observa-se a importância das articulações com os dispositivos da rede. Nesse sentido, família, escola e hospital devem estabelecer diálogos e dar condições para que a continuidade da escolarização seja preservada.
É possível identificar situações facilitadoras para o processo de aprendizagem escolar, como Eduardo esclarece em sua fala ao dizer que as atividades são organizadas conforme os dias em que ele está na escola, além da oportunidade de aulas de reforço, na tentativa de amenizar as dificuldades encontradas pelas faltas.
É necessário compreender que essa condição clínica pode limitar a participação desse sujeito em atividades educativas, de lazer e brincar e a participação social (MITRE; PFEIFER, 2008), cabendo à equipe de saúde estar atenta não só às demandas trazidas, como também aquelas que são omitidas (COSTA; BIGRAS, 2007). Eduardo traz em sua fala questões de participação social, como atividades da igreja e em aulas de Educação Física, que considera uma perda devido ao dia da medicação. Tanto Felipe quanto Maria não se pronunciaram quanto a perdas específicas, talvez por serem mais novos que Eduardo e encontrarem-se na fase escolar inicial que exige demandas diferentes como estudante. Essa diferença do que o adolescente e as crianças trazem, precisa ser analisada por profissionais que atuam com esses sujeitos e nos provocam a pensar como abordar tal assunto na atenção à saúde. Independente do seu nível de desenvolvimento, consideramos relevantes os aspectos trazidos pelos sujeitos.
A atividade lúdica é inerente à criança e constitui-se como elemento essencial para o desenvolvimento motor, cognitivo e social, devendo ser utilizada como recurso e objetivo no tratamento da terapia ocupacional. O brincar possibilita à criança exercitar sua capacidade de vivenciar o que está sentindo, transmitindo suas necessidades, angústias e vontades (MITRE; PFEIFER, 2008).
As crianças/adolescentes entrevistados sabem que precisam se ajustar a limitações físicas e de socialização nesse processo de tratamento. Dessa forma, tanto os pais quanto os profissionais da saúde devem estimulá-los a manter a autonomia e a independência, próprias da fase de desenvolvimento em que se encontram (VIEIRA; LIMA, 2002).
Diante do trabalho de campo, é possível identificar o terapeuta ocupacional como promotor de ações que possam viabilizar o desenvolvimento da criança/adolescente, facilitando o engajamento em suas ocupações e dando suporte à participação no contexto em que vivem. A internação desses sujeitos ocorre uma vez por semana, dessa forma o acompanhamento poderia ser realizado com objetivo de identificar pontos de intervenção específicos, como atividades lúdicas, que proporcionam a elaboração do entendimento sobre o tratamento, e uso de tecnologias assistivas como prescrição de órteses e dispositivos de locomoção.
Em geral, orientações sobre importância da realização das atividades de vida diária, do brincar e da escola podem ser oferecidas às crianças/adolescente e familiares nesse espaço, acolhendo dúvidas e estabelecendo estratégias que venham a solucionar possíveis demandas. Limitações relacionadas às consequências da doença em membros superiores, como trazidas por Felipe, podem ser tratadas pelo terapeuta ocupacional.
A reorganização do cotidiano que essas crianças/adolescente e suas famílias sofrem deve ser abordada com atenção pelo terapeuta ocupacional, uma vez que a doença não apresenta cura e o tratamento é realizado presencialmente. Articular com a família e o hospital quanto aos horários de medicação e dia é fundamental para que essa tarefa tenha o menor impacto possível na rotina dessas famílias. Cabe ao terapeuta ocupacional reforçar a importância do tratamento, mas também de que há mais do que isso, compreender esses sujeitos, seus direitos e atuar para promover a participação ativa em seus contextos.
O presente estudo identificou algumas das diversas alterações que envolvem a internação recorrente na vida de crianças/adolescente que vivenciam a condição crônica na infância. A reorganização do cotidiano da família, as consequências da doença, as redes de apoio no local, influência dos projetos de humanização e a terapia ocupacional no processo de hospitalização apareceram no trabalho de campo.
Ao ouvir crianças e adolescentes, percebemos a dimensão que a doença tem em suas vidas, a qual é vivenciada de forma singular, ou seja, como uma experiência pessoal. Devido ao tratamento, a criança/adolescente tem suas rotinas modificadas e o hospital assume uma dimensão importante no decorrer desse processo.
Os sentimentos de medo do momento da infusão, da hospitalização semanal e da perda de momentos de lazer são ressaltados e configuram um cenário de ruptura e sofrimento para essas crianças e adolescente. Reconhecer as alterações no cotidiano desses sujeitos é um passo importante para o início de um acompanhamento e de um cuidado diferenciado. Ao mesmo tempo, as relações estabelecidas no hospital devem ser valorizadas facilitando o vínculo entre família e equipe.
Diante dos resultados, é possível identificar o que é significativo para esses sujeitos e contribuir, assim, para novas reflexões acerca do modo como o terapeuta ocupacional e outros profissionais podem realizar o cuidado a crianças e adolescentes, que têm o processo de crescimento e desenvolvimento permeado por internações parciais recorrentes.
Não foi feita caracterização da história das crianças/adolescente e a opção por não gravar ou filmar durante a realização do campo podem ser consideradas limitações do estudo.
Como sugestões para pesquisas futuras, pode-se ampliar o estudo em diferentes instituições, incluindo, além do relato das crianças, o relato dos cuidadores que acompanham a hospitalização recorrente e que tiveram destaque na fala das crianças.