versão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.32 no.12 Rio de Janeiro 2016 Epub 15-Dez-2016
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00194316
A proposta de novo regime fiscal enviada ao Congresso Nacional pelo governo Temer propõe uma regra para as despesas primárias do Governo Federal com duração para 20 anos e possibilidade de revisão - restrita ao índice de correção - em 10 anos, por meio da Proposta de Emenda Constitucional 241/2016 (PEC 241), aprovada pela Câmara dos Deputados e em tramitação no Senado Federal como PEC 55. Nessa regra, os gastos federais, menos o pagamento de juros sobre a dívida pública, ficarão limitados a um teto definido pelo montante gasto do ano anterior reajustados pela inflação acumulada, medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Em síntese, o novo regime fiscal implica um congelamento real das despesas totais do Governo Federal que pressupõe uma redução do gasto público relativamente ao Produto Interno Bruto (PIB) e ao número de habitantes. Ou seja, de acordo com a regra proposta, os gastos públicos não vão acompanhar o crescimento da renda e da população.
Neste breve artigo, desenvolveremos dois aspectos dessa proposta: o primeiro deles é seu impacto macroeconômico, considerando que o novo regime fiscal pressupõe uma situação de austeridade fiscal para os próximos para 20 anos; e o segundo é o impacto da medida nos gastos com educação e saúde do Governo Federal. Mostra-se que (i) a proposta não vai trazer crescimento econômico e (ii) vai reduzir substancialmente os gastos com saúde e educação.
A experiência histórica mostra, como sistematizado por Blyth 1, que o remédio da austeridade agrava os problemas que pretende resolver. O gasto do governo é renda do setor privado, ou seja, quando o governo deixa de gastar alguém deixa de receber. Da mesma forma, o superávit público é o déficit privado e a dívida pública é um ativo do setor privado. Nesse sentido, em meio a uma recessão que se caracteriza pela contração do gasto privado, se o governo procurar evitar o déficit público cortando suas despesas, ele pode simplesmente piorar a sua situação patrimonial e a do setor privado, ou seja, o esforço fiscal cortará ainda mais as receitas do setor privado.
No círculo vicioso da austeridade, cortes do gasto público induzem à redução do crescimento que provoca novas quedas da arrecadação e exige novos cortes de gasto. Esse círculo vicioso só tende a ser interrompido por decisões deliberadas do governo, a menos que haja ampliação das exportações em nível suficiente para compensar a causação cumulativa da retração das demandas interna, pública e privada. Essa exceção é menos provável diante de uma crise internacional como a que o mundo enfrenta nesta década, com lenta recuperação da demanda, maior competição pelos mercados e com o comércio exterior crescendo menos do que o já deprimido PIB mundial.
No Brasil, a virada para a austeridade é a marca do segundo governo Dilma Rousseff, que iniciou adotando a estratégia econômica do candidato derrotado no pleito de 2014, ou seja, realizando um duro ajuste fiscal e monetário na esperança de que o setor privado retomasse a confiança e voltasse a investir. A ideia era a de que a contração fiscal seria expansionista, passando apenas por um curto período recessivo necessário para recuperar a confiança nas políticas do governo. No entanto, apesar de todo o esforço do governo para reduzir as despesas, que em 2015 chegaram à queda real de 2,9% do gasto primário federal, as receitas despencaram e o déficit ficou ainda maior, evidenciando o caráter contraproducente do ajuste: o austericídio. Ou seja, o corte de gasto em conjunturas como a de 2015 não é garantia de melhores indicadores fiscais, pelo contrário, as contas públicas pioraram por conta da própria interrupção de investimentos públicos e contingenciamento de verbas para áreas importantes como saúde e educação.
Apesar dessa experiência, a proposta de novo regime fiscal do governo Temer insiste no remédio da austeridade. O princípio básico da proposta é que o gasto público federal tenha crescimento real nulo, o que implicará uma redução do gasto público em proporção do PIB. Esse princípio pode ser identificado como um esforço de austeridade continuado que busca reduzir sistematicamente a participação do Estado na economia e, consequentemente, no crescimento econômico. Isto é, a demanda pública estará sistematicamente contribuindo para reduzir o crescimento econômico, o que exigirá um esforço muito maior dos componentes privados da demanda (consumo, investimento e demanda externa).
Além disso, diferentemente da experiência internacional, o novo regime fiscal não tem cláusula de escape, ou seja, não permite uma flexibilização das regras fiscais diante de crises econômicas extraordinárias, como aquela de 2009, ano em que a maior parte dos países centrais expandiu o gasto público, realizando enormes déficits fiscais.
Ou seja, do ponto de vista macroeconômico, a reforma fiscal é desastrosa ao impor à demanda pública um caráter contracionista por um longo período e por retirar do Estado os instrumentos fiscais capazes de enfrentar crises econômicas. No entanto, os efeitos sociais do novo regime fiscal são ainda mais críticos.
Como mostra um texto para discussão publicado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) 2, nenhum país do mundo estabeleceu uma regra para gasto público tal como a brasileira, por meio de uma emenda na Constituição. No caso do Brasil, também não havia necessidade de constitucionalizar a regra fiscal, no entanto, para viabilizar a regra são necessárias mudanças constitucionais. No caso da PEC 55, a única medida relevante em matéria constitucional é a desvinculação das receitas destinadas à saúde e educação. Isto é, o novo regime fiscal não precisa de emenda constitucional, o que precisa de mudança constitucional é a desvinculação de receitas para saúde e educação. Nesse sentido, a PEC do novo regime fiscal é, na verdade, a PEC da desvinculação da saúde e da educação.
No Brasil, o mínimo para os gastos públicos com educação, estabelecido pelo Artigo 212 da Constituição Federal, é de 18% da Receita Líquida de Impostos (RLI). Já o mínimo para a saúde foi modificado recentemente por meio da Emenda Constitucional 86, que estabelece um percentual da Recente Corrente Líquida (RCL) de forma escalonada, 13,2% da RCL em 2016, 13,7% em 2017, 14,2% em 2018, 14,7% em 2019 e 15% a partir de 2020.
Já a PEC 55 prevê que em 2017 o gasto com educação será 18% da RLI, o gasto com saúde será 15% da RCL e, a partir de então, ambos terão como piso o gasto em 2017 reajustado pela inflação. Ou seja, o gasto federal real mínimo com saúde e educação será congelado no patamar de 2017.
Comparando as regras atuais com o mínimo estipulado pela PEC, percebe-se que o piso previsto por ela é, na verdade, um piso deslizante (Figura 1). Isto é, ao longo do tempo o valor mínimo destinado à educação e saúde cai em proporção das receitas e do PIB. Na simulação apresentada na Figura 1, com a PEC, o mínimo para educação seria de 14,4% da RLI em 2026 e 11,3% em 2036, e no caso da saúde o mínimo seria de 12% da RCL em 2026 e 9,4% em 2036. Vale notar que, apesar da PEC oferecer um mínimo maior em saúde para 2017 e 2018, desde 2014 o governo já vem destinando mais de 15% da receita líquida para a saúde.
No entanto, apesar do "piso deslizante", existe a possibilidade de aumentos nos gastos para saúde e educação acima do mínimo, a partir da redução de outros gastos. Mas essa possibilidade é limitada pela redução dos gastos totais e pelo crescimento de alguns outros gastos. Ou seja, ao estabelecer um teto que reduz o gasto público em proporção ao PIB, há uma compressão dos gastos sociais.
O documento Austeridade e Retrocesso: Finanças Públicas e Política Fiscal no Brasil3 apresenta uma projeção dos gastos públicos do Governo Federal sobre a vigência da PEC 55 (Figura 2). O gasto primário total do Governo Federal passaria de 19,6% do PIB em 2015, para 15,8% em 2026 e 12% em 2036.
Adicionalmente, os gastos com previdência, hoje em torno de 8% do PIB, devem aumentar por uma questão demográfica, mesmo com uma eventual reforma. Nesse contexto, não há espaço para a manutenção dos gastos de saúde e educação em proporção ao PIB, que tenderão a cair com a nova regra.
Nessa simulação, com o congelamento das despesas com saúde e educação, estas passarão de 4% do PIB em 2015 para 2,7% do PIB em 20 anos, quando a população brasileira será 10% maior. Enquanto que os outros gastos federais (excluindo previdência e juros) que eram 7% do PIB em 2015 serão de 0,6% do PIB em 2036, o que não parece tecnicamente, tampouco politicamente, factível.
Considerando uma improvável estabilização do gasto com a previdência em 8,5% do PIB, com um exercício aritmético simples e um crescimento econômico médio de 2,5% mostra-se que é impossível - matematicamente impossível - o Brasil chegar em 2036 com um maior nível de gasto com saúde e educação em proporção ao PIB, mesmo na hipótese anarcocapitalista de se eliminar todos os outros gastos públicos, executivo, judiciário, legislativo, exército, infraestrutura, investimentos etc. Isso porque, de acordo com a simulação, em 2036 o gasto primário do governo total será de 12,3% do PIB; se os gastos como previdência somarem 8,5% do PIB, sobram apenas 3,8% do PIB, numero inferior aos atuais gastos com educação e saúde, em torno de 4% do PIB em 2016. Nesse sentido, é demagogia defender simultaneamente a PEC e a educação e saúde públicas.
Em síntese, a reforma fiscal proposta pelo governo não é um plano de estabilização fiscal, mas um projeto de redução drástica do tamanho do Estado. No plano macroeconômico, a reforma será um entrave ao crescimento econômico ao institucionalizar e automatizar um ajuste fiscal permanente. Além disso, a reforma tem profundos impactos sociais. Sua lógica pressupõe um crescimento zero do gasto público federal enquanto que a população e a renda crescem, o que implica redução do gasto público per capita e em relação ao PIB. Adicionalmente, enquanto alguns gastos necessariamente terão aumento real, como o gasto com previdência, outros serão reduzidos pressionados pelo teto, de forma a reconfigurar o estado brasileiro. Por fim, argumenta-se que o único motivo para a reforma fiscal ser encaminhada como uma emenda constitucional é a desvinculação de receitas para investimentos em saúde e educação. Dessa forma, a PEC 55 torna impossível qualquer melhora na saúde e educação públicas no Brasil, pelo contrário, abre-se espaço para o sucateamento dessas áreas e para a eliminação de seu caráter universal.