versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.9 no.4 São Paulo out./dez. 2011
http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082011ao2140
A farmácia clínica, caracterizada nos anos 1960 nos Estados Unidos, compreende atividades voltadas para maximizar a terapia e minimizar os riscos e os custos, promovendo o uso seguro e racional de medicamentos.
O farmacêutico clínico trabalha promovendo a saúde, prevenindo e monitorando eventos adversos, intervindo e contribuindo na prescrição de medicamentos para a obtenção de resultados clínicos positivos, melhorando a qualidade de vida dos pacientes sem, contudo, perder de vista a questão econômica relacionada à terapia(1,2).
Vários estudos relatam o impacto positivo da participação do farmacêutico clínico como na prescrição de antimicrobianos, em que o uso incorreto exerce papel crítico na seleção de micro-organismos resistentes e do risco de superinfecções, além dos custos envolvidos.
Um dos estudos relata que o farmacêutico na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) representou diminuição em 66% dos eventos adversos evitáveis. O evento adverso está associado ao aumento em 1,9 dias de permanência no hospital e aumento do risco de morte(3,4).
Em outro estudo, foram documentadas 844 intervenções envolvendo 201 pacientes transplantados, 28,4% associadas à indicação, 26,6% à dose acima e 18,1% à subdose(5).
De acordo com o Institute of Medicine (IOM) dos Estados Unidos, cerca de 100.000 mortes ocorrem anualmente por erros na assistência ao paciente, sendo 7.000 relacionados a medicamentos, representando uma estimativa de custo associado de US$77 bilhões/ano(6).
Dessa forma, a presença do farmacêutico clínico nos hospitais, trabalhando junto da equipe médica, pode representar aumento da qualidade e segurança no atendimento ao paciente e racionalização de recursos.
Demonstrar quantitativa e qualitativamente a evolução da farmácia clínica em um hospital terciário de grande porte.
Estudo prospectivo realizado no Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE), com cerca de 600 leitos distribuídos em 15 unidades de internação, incluindo três UTIs (adulto, pediátrica e neonatal) no período de 2003 a 2010.
O projeto de farmácia clínica foi iniciado em 1999 para atendimento aos padrões de qualidade pretendidos para o hospital por meio da certificação pela Joint Commission International. Foram identificadas ações específicas para a farmácia clínica e, nessa ocasião, o hospital incluiu um farmacêutico clínico na UTI.
Na execução do trabalho, o farmacêutico foi integrado à equipe em todas as questões envolvendo o paciente. No início, o trabalho do farmacêutico estava relacionado à prescrição médica, visita horizontal junto à equipe médica e implantação de alguns protocolos, como profilaxia antimicrobiana cirúrgica, acompanhamento de consumo de antimicrobianos e interação medicamentosa.
Com a evolução desse processo, novas atividades foram incluídas no escopo de atuação desse profissional e novas áreas do hospital demonstraram interesse pela participação do farmacêutico em suas atividades.
A partir de 2003, começou, então, o processo de expansão da farmácia clínica para todo o hospital e, a partir de 2006, o farmacêutico foi envolvido também em rotinas gerenciadas na instituição e outras atividades clínicas avançadas.
Na primeira fase do projeto, o ano de 2003 foi considerado fase de implantação para a coleta sistematizada dos dados e, a partir dos dados coletados e sistematizados, houve o planejamento para a expansão do trabalho e atendimento as outras unidades de internação do hospital.
Foram avaliados: número de farmacêuticos envolvidos na farmácia clínica, número e tipos de intervenções, aceitação médica e número de paciente/dia.
As intervenções foram classificadas em: via de administração, frequência, dose, compatibilidade, diluição, descrição/legibilidade, interação, alergia, tempo de infusão, indicação, farmacovigilância/reação adversa ao medicamento (RAM), reconciliação, medicamentos versus sonda, aprazamento, anticoagulantes, opioides versus laxantes, hipoglicemiantes.
Considerou-se também a participação do farmacêutico e a adesão médica às rotinas gerenciadas, incluídas a partir de 2006, tais como, o protocolo de utilização da albumina humana, no qual era realizada a verificação da indicação da albumina conforme a RDC n.º 115, de 10 de maio de 2004; antibiótico profilaxia cirúrgica, considerando adesão à rotina na suspensão do antibiótico em até 48 horas e antibiótico terapêutico, considerado como adequação a suspensão em até 14 dias; monitorização de drogas de baixo índice terapêutico (DBIT), considerando critérios de inclusão para monitoramento sérico e acompanhamento de drogas, como vancomicina, fenitoína, carbamazepina, ácido valproico, fenobarbital, além de digoxina e cafeína na unidade de neonatologia.
O processo de intervenção farmacêutica se dava por meio da análise das prescrições médicas e, após a identificação da não conformidade relacionada ao medicamento, o farmacêutico contatava ao médico, sendo exposto e discutido o caso. Se houvesse aceitação pelo médico (adesão), o farmacêutico alterava a conduta e documentava as adequações discutidas na prescrição médica e/ou no prontuário do paciente e relatava todas essas intervenções por meio de um relatório diário (plantão).
As informações foram obtidas por meio dos dados extraídos dos relatórios diários (plantões) com informações como intervenções realizadas durante o plantão e com descrição detalhada do tipo e resolução com aceitação ou não do médico prescritor.
A partir de 2003, com dez farmacêuticos clínicos, havia o atendimento às UTIs adulto, pediátrica e oncologia. As demais unidades de internação tinham o atendimento realizado parcialmente com um farmacêutico para cada duas unidades.
Após sistematização e apresentação de dados em 2003 (janeiro a dezembro), houve subsídio para a expansão do trabalho para as demais clínicas.
Com a apresentação dos dados de aumento no número de 51,1% no número de intervenções entre 2003 e 2004, conseguiu-se justificar o aumento de quadro de farmacêuticos que, em 2005, chegou a 16, representando aumento de 60% do quadro. Passamos, então, a atender todo o hospital com um farmacêutico em cada unidade de internação.
Paralelamente a esse acréscimo de profissionais, houve aumento dos tipos de intervenções realizadas pelo farmacêutico (de 7 para 19) (Tabelas 1 e 2).
Tabela 1 Distribuição dos resultados relacionados à participação do farmacêutico clínico no hospital
Ano | Número de intervenções | Aumento (%)* | Tipos de intervenções | Aumento (%)* | Número de farmacêuticos | Aumento (%)* | Intervenção/ farmacêutico | Paciente/dia |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
2003 | 1.706 | - | 7 | - | 10 | - | 171 | 124.736 |
2004 | 2.577 | 51,1 | 11 | 57,1 | 10 | 0,0 | 258 | 137.443 |
2005 | 6.399 | 148,3 | 12 | 9,1 | 16 | 60,0 | 400 | 141.941 |
2006 | 16.971 | 165,2 | 15 | 25,0 | 16 | 0,0 | 1061 | 140.344 |
2007 | 22.357 | 31,7 | 16 | 6,7 | 16 | 0,0 | 1397 | 138.799 |
2008 | 25.369 | 13,5 | 17 | 6,3 | 20 | 25,0 | 1268 | 150.045 |
2009 | 25.655 | 1,1 | 19 | 11,8 | 22 | 10,0 | 1166 | 159.740 |
2010 | 30.727 | 19,8 | 19 | 0,0 | 22 | 0,0 | 1397 | 183.045 |
*Porcentagens de aumento em relação ao ano anterior
Tabela 2 Evolução das intervenções
Intervenções | 2003 (%) | 2004 (%) | 2005 (%) | 2006 (%) | 2007 (%) | 2008 (%) | 2009 (%) | 2010 (%) |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Via de administração | 11 | 10 | 10 | 12 | 5 | 5 | 4 | 4 |
Frequência | 15 | 10 | 8 | 7 | 6 | 5 | 3 | 5 |
Dose | 45 | 42 | 31 | 25 | 21 | 21 | 23 | 25 |
Compatibilidade | 7 | 6 | 9 | 14 | 12 | 16 | 16 | 8 |
Diluição | 7 | 6 | 5 | 7 | 8 | 8 | 7 | 2 |
Descrição/legibilidade | 14 | 7 | 5 | 2 | 8 | 1 | 1 | 1 |
Interação | 1 | 8 | 10 | 6 | 15 | 17 | 15 | 19 |
Alergia | - | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 | 1 |
Tempo de infusão | - | 2 | 3 | 4 | 5 | 5 | 4 | 1 |
Indicação | - | 3 | 13 | 10 | 3 | 4 | 3 | 4 |
Farmacovigilância/RAM | - | 5 | 5 | 7 | 3 | 3 | 2 | 2 |
Reconciliação | - | - | - | 3 | 1 | 0 | 1 | 1 |
Medicamento versus sonda | - | - | - | 2 | 12 | 9 | 12 | 13 |
Aprazamento | - | - | - | - | - | 3 | 3 | 6 |
Anticoagulantes | - | - | - | - | - | 2 | 2 | 2 |
Opioides versus laxantes | - | - | - | - | - | - | 3 | 1 |
Hipoglicemiante | - | - | - | - | - | - | - | 4 |
RAM: reação adversa a medicamentos
Observou-se também aumento na quantidade de intervenções farmacêuticas a prescrição médica (de 1.706, em 2003, para 30.727, em 2010) (Tabela 1 e Figura 1).
Em relação ao número de intervenções por paciente/dia no hospital, verificamos aumento de 0,014 para 0,168 entre o período do estudo (Tabela 3).
Tabela 3 Número de intervenções farmacêuticas por paciente/dia no hospital
Ano | Número de intervenções | Paciente/dia | Número de intervenções - paciente/dia |
---|---|---|---|
2003 | 1.706 | 124.736 | 0,014 |
2004 | 2.577 | 137.443 | 0,019 |
2005 | 6.399 | 141.941 | 0,045 |
2006 | 16.971 | 140.344 | 0,121 |
2007 | 22.357 | 138.799 | 0,161 |
2008 | 25.369 | 150.045 | 0,169 |
2009 | 25.655 | 159.740 | 0,161 |
2010 | 30.727 | 183.045 | 0,168 |
Para as intervenções farmacêuticas realizadas, ou seja, para os problemas identificados na prescrição médica em que o farmacêutico estabeleceu contato com o médico e sugeriu alteração, observamos 93,4% de adesão médica em 2003, chegando a 99,5% em 2010 (Figura 2).
Para o acompanhamento das rotinas gerenciadas, a partir de 2006, houve aumento da adesão médica a todas as rotinas: de 30% para o uso adequado de albumina humana; de 12% na adesão para a rotina de antibiótico profilaxia cirúrgica; de 5,2% para a terapia antimicrobiana; e de 2,6% para DBIT (Tabela 4).
Tabela 4 Adesão do corpo clínico as rotinas gerenciadas
Período | Albumina humana (%) | Profilaxia antimicrobiana cirúrgica (%) | Antibiótico terapêutico (%) | DBIT (%) |
---|---|---|---|---|
2006 | 68 | 61 | 90 | 96 |
2007 | 74 | 67 | 95 | 98 |
2008 | 87 | 68 | 97 | 95 |
2009 | 97 | 72 | 94 | 98 |
2010 | 98 | 73 | 95 | 98 |
DBTI: drogas de baixo índice terapêutico.
O aumento da segurança no uso de medicamentos está associado a processos seguros, estratégias para prevenção de erros e eventos adversos com redução de suas consequências. A participação do farmacêutico promove segurança por meio da redução de reações evitáveis, diminuição do tempo de internação, mortalidade e custos(7–11).
O aumento na segurança aos pacientes em hospitais está associado a aumento do número de farmacêuticos clínicos e ao serviço de farmácia clinica oferecido a esses pacientes. Uma das formas mais efetivas de redução de erros de medicação em hospitais é ter mais farmacêuticos clínicos e expandir esse trabalho(12).
Em nosso estudo, observamos que, com a participação e a expansão da farmácia clínica no hospital, observamos um aumento do número e dos tipos de intervenções farmacêuticas realizadas na prescrição médica entre os períodos de 2003 a 2010, o que pode representar impacto positivo na segurança do paciente.
Alguns estudos realizados para avaliar as intervenções farmacêuticas identificaram que a maioria das intervenções (de 92,8% a 99%) foram aceitas pela equipe médica(12–14). Em nosso serviço, observamos adesão semelhante, chegando a 99,5% em 2010.
O custo-benefício de um farmacêutico clínico varia dependendo do tipo da instituição, do número de intervenções, do número de leitos monitorados, e dos serviços farmacêuticos oferecidos; entretanto, a presença do farmacêutico clínico consistentemente tem demonstrado uma vantagem econômica significativa(15–17). Um estudo prospectivo e randomizado avaliou as intervenções realizadas pelo farmacêutico em 1.200 hospitais universitários onde pacientes no grupo intervenção tiveram redução de 41% nos custos comparado com o grupo controle(18,19).
Verificou-se que novos tipos de intervenções foram sendo adicionados ao longo do tempo e tornaram-se mais específicos também, como acompanhamento de pacientes utilizando anticoagulantes, hipoglicemiantes e opioides, o que demonstra um envolvimento do farmacêutico na atividade clínica e identificação de novas áreas de atuação.
Observa-se, portanto, a importância do armazenamento e da análise dos dados e acompanhamento dos resultados desse trabalho não só para atendimento aos padrões estabelecidos pela Joint Commission International, mas também como suporte à tomada de decisão clínica e administrativa, bem como ter subsídio para trocas de informações com outros serviços (benchmarking).
A implantação e a expansão da farmácia clínica representaram impacto positivo em relação ao número de intervenções pelo farmacêutico clínico durante o período considerado, podendo promover o uso racional de medicamentos, o aumento da segurança ao paciente e contribuir para redução de custos associados à prescrição médica.
O farmacêutico gradualmente e efetivamente foi inserido, garantindo seu espaço junto à equipe multidisciplinar e no processo de segurança do paciente dentro da instituição.