versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.16 no.2 São Paulo 2018 Epub 07-Jun-2018
http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082018ao4189
A disfagia pode ser definida como a dificuldade em deglutir o alimento no trajeto da cavidade oral até o estômago, condição esta que pode se associar a sintomas como regurgitação, aspiração traqueobrônquica, dor retroesternal independente de esforço físico (relacionada ou não à alimentação), pirose, rouquidão, soluço e odinofagia.(1) Apesar de ocorrer em qualquer idade, faixa etária idosa e doenças neurodegenerativas e/ou de cabeça/pescoço são fatores relacionados à sua maior prevalência.(2)
Acredita-se que seja um problema subdiagnosticado, com frequências que variam segundo os métodos de diagnóstico. Na população em geral, as prevalências variam de 2 a 16%, valores que podem ser superiores a 40% em pacientes internados.(3) Especificamente no ambiente hospitalar, a disfagia relaciona-se a maior tempo de hospitalização, custos mais elevados e maior risco de mortalidade.(4)
A disfagia está associada ainda a queda na qualidade de vida, pneumonia aspirativa, desidratação, desnutrição e isolamento social.(5) Diretrizes clínicas recomendam a identificação precoce do risco de disfagia e, neste sentido, o uso de instrumentos para seu rastreamento representa alternativa prática, de baixo custo e que permite identificar precocemente os casos em que uma avaliação mais detalhada é necessária.(6)
O Eating Assessment Tool (EAT-10) é uma ferramenta de triagem desenvolvida nos Estados Unidos em 2008 a partir de informações de 4 82 pacientes. Foi considerado um método válido e robusto de autoavaliação para o risco de disfagia, indicando indivíduos que necessitam de intervenção multidisciplinar precoce.(7) O instrumento possui dez questões de formulação simples e fornece informações sobre funcionalidade, impacto emocional e sintomas físicos que um problema de deglutição pode acarretar na vida de um indivíduo.(8)Gonçalves et al.,(6) realizaram a equivalência cultural do EAT-10 para o português, sem a necessidade de modificação ou retirada de questão do protocolo original.
Idosos apresentam alterações funcionais inerentes ao próprio envelhecimento e, mais frequentemente, doenças que aumentam o risco de transtornos de deglutição.(2) Observa-se também relação significativa entre o sexo feminino e a presença de disfagia, embora não exista consenso na literatura sobre este tema.(9) A desnutrição também pode ter sua frequência aumentada em disfágicos, uma vez que modificações na consistência dos alimentos e a própria dificuldade de ingestão podem causar inadequações dietéticas. Pontuações mais elevadas no EAT-10, indicativas de risco de disfagia, estiveram associadas a alterações no estado nutricional em idosos.(10) Estima-se que de 25 a 54% dos pacientes hospitalizados apresentem algum grau de desnutrição, e aqueles com disfagia apresentam maior risco de deficit nutricionais ou já se encontram desnutridos.(11)
O estado nutricional também é importante aspecto a ser avaliado no ambiente hospitalar. São conhecidos os impactos significativos que a desnutrição exerce, como aumento do risco de infecções, complicações, tempo de hospitalização, custos hospitalares e mortalidade, além de redução da função imunológica. O diagnóstico nutricional pode ser determinado por métodos subjetivos, como a avaliação global subjetiva (AGS), ou ainda pela avaliação de medidas antropométricas objetivas, principalmente o índice de massa corporal (IMC). Já a aferição de perímetros corporais, como o perímetro da panturrilha (PP) e do braço (PB), fornece informações adicionais sobre a preservação de tecidos, principalmente da massa muscular.(12)
Verificar a prevalência do risco de disfagia e seus fatores associados em pacientes hospitalizados, bem como avaliar o estado nutricional por diferentes métodos e correlacioná-los à pontuação do Eating Assessment Tool (EAT-10).
Estudo de delineamento transversal, realizado em um hospital filantrópico, a partir da análise do banco de dados da Equipe Multidisciplinar de Terapia Nutricional da instituição.
Foram analisados os dados dos adultos e idosos internados no período de janeiro a dezembro de 2014, submetidos ao rastreamento de disfagia e à avaliação do estado nutricional. Foram excluídos pacientes em unidade de terapia intensiva, gestantes e puérperas.
Para o rastreamento de disfagia foi aplicado o EAT-10 adaptado culturalmente para o Brasil por Gonçalves et al.(6) Pacientes com pontuação total igual ou maior a 3 pontos foram classificados como “em risco” de disfagia.
O diagnóstico nutricional foi realizado por meio da aplicação da AGS, proposta por Detsky et al., no Canadá. A AGS avalia alterações no peso corporal, modificações no consumo alimentar, sintomas gastrintestinais, capacidade funcional, demanda metabólica relacionada à doença de base, além de exame físico que contempla perda muscular, adiposa e edema. A partir destes parâmetros, foi realizada a classificação dos avaliados como bem nutridos (AGS-A), com suspeita de desnutrição ou desnutrição moderada (AGS-B) e desnutrição grave (AGS-C).(13)
A avaliação antropométrica incluiu a aferição de peso, PP, PB e altura do joelho (AJ).(14) O peso foi mensurado em balança eletrônica portátil (Wiso W801®); os perímetros foram aferidos com fita inelástica (Cercorf®); e a AJ foi medida com o auxílio de um estadiômetro portátil (Sanny®). A estatura foi estimada para todos os avaliados, de acordo com fórmulas preditivas propostas por Chumlea et al.(15)
A partir das medidas de peso e estatura, foi calculado o IMC, o qual foi classificado segundo a proposta da Organização Mundial da Saúde, para adultos,(16) e a de Lipschitz,(17) para idosos (idade igual ou superior a 60 anos). Para a avaliação do PP, foi adotado o ponto de corte <31cm como indicativo de desnutrição.(18) A adequação do PB foi determinada pela equação: adequação PB (%) = [PB obtido (cm) ÷ PB percentil 50] x 100, sendo classificada segundo Blackburn et al.,(19) Foram utilizadas as tabelas de percentis propostas nos Estados Unidos por Frisancho,(20) para indivíduos com até 74,9 anos, e por Kuczmarski et al.,(21) para aqueles com idade superior.
A normalidade da distribuição das variáveis quantitativas foi determinada pelo teste de Kolmogorov-Sminorv, e a comparação entre as proporções do risco de disfagia com sexo, faixa etária e estado nutricional segundo o IMC foi realizada pelo teste do χ2 de Pearson. As diferenças nos parâmetros antropométricos entre os grupos foram avaliadas pelo teste de Mann-Whitney. A correlação entre a pontuação do EAT-10 e as variáveis quantitativas foi verificada segundo Spearman, uma vez que a pontuação na EAT-10 não apresentou distribuição normal (p<0,001). Adotou-se p<0,05 como indicativo de significância estatística em todas as análises. O banco de dados foi construído no Microsoft Excel®, e as análises estatísticas foram realizadas no software Statistical Package for Social Science (SPSS), versão 21.
Este estudo seguiu as determinações da resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, que define Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos, e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Viçosa, sob o parecer 1.0000.31/2015, CAAE: 41396915.9.0000.5153.
Foram avaliados os dados de 909 indivíduos, com média de idade de 54 anos (desvio padrão - DP 20,2 anos). Houve predomínio do sexo feminino e de adultos. Em relação ao rastreamento para a disfagia, 10,9% dos avaliados foram classificados como “em risco” (Tabela 1).
Tabela 1 Caracterização da amostra
Variável | n (%) | |
---|---|---|
Sexo | ||
Masculino | 419 (46,1) | |
Feminino | 490 (53,9) | |
Faixa etária | ||
Adultos | 534 (58,7) | |
Idosos* | 375 (41,3) | |
EAT-10 | ||
Sem risco de disfagia | 814 (89,5) | |
Com risco de disfagia | 95 (10,5) | |
AGS | ||
Bem nutrido | 789 (86,8) | |
Suspeita de desnutrição ou desnutrição moderada | 81 (8,9) | |
Desnutrição grave | 39 (4,3) | |
IMC (n=902) | ||
Magreza/baixo peso | 137 (15,2) | |
Eutrofia | 408 (45,2) | |
Excesso de peso/obesidade | 357 (39,6) | |
PP (n=890), cm | ||
<31 | 177 (19,9) | |
≥31 | 713 (80,1) | |
PB (n=901) | ||
Desnutrição grave (<70%) | 37 (4,1) | |
Desnutrição moderada (70-80%) | 88 (9,8) | |
Desnutrição leve (80-90%) | 237 (26,3) | |
Eutrofia (90-110%) | 405 (45,0) | |
Sobrepeso (110-120%) | 92 (10,2) | |
Obesidade (>120%) | 42 (4,7) |
*60 anos ou mais.
EAT-10: Eating Assessment Tool; AGS: avaliação global subjetiva; IMC: índice de massa corporal; PP: perímetro da panturrilha; PB: perímetro do braço.
As principais causas de internação foram doenças do trato gastrintestinal (15,1%), cardiovasculares (13%), do aparelho respiratório (7,3%), fraturas (9,8%) e neurológicas (5,7%). Como morbidades associadas, 27,8% apresentavam hipertensão arterial e 16,2%, diabetes.
Segundo a AGS, 13,2% dos indivíduos apresentavam algum grau de desnutrição (estágios B ou C), 15,2% baixo peso/magreza segundo o IMC, 19,9% PP abaixo do valor recomendado e 40,2% inadequação do PB.
A comparação da idade e dos parâmetros antropométricos, segundo a classificação de risco, revelou maior idade e menores valores de PP e PB nos indivíduos que apresentavam risco de disfagia (Tabela 2).
Tabela 2 Comparação das variáveis objetivas, segundo presença de risco de disfagia
Variável | Sem risco | Com risco | Valor de p* | ||
---|---|---|---|---|---|
Média (DP) | Mediana (IIQ) | Média (DP) | Mediana (IIQ) | ||
Idade | 53,14 (20,17) | 53,00 (36,75-70,00) | 62,73 (18,42) | 64,00 (49,00-77,00) | <0,001 |
IMC | 24,95 (4,87) | 24,42 (21,50-27,72) | 24,50 (5,87) | 24,42 (20,94-27,88) | 0,480 |
PP | 34,21 (4,08) | 34,45 (31,50-36,57) | 32,97 (5,87) | 32,85 (29,47-36,00) | 0,008 |
PB | 28,86 (6,23) | 28,50 (26,00-31,40) | 27,56 (4,50) | 27,90 (24,45-30,92) | 0,028 |
*Teste de Mann-Whitney.
DP: desvio padrão; IIQ: intervalo interquartil; IMC: índice de massa corporal; PP: perímetro da panturrilha; PB: perímetro do braço.
A faixa etária idosa esteve associada à maior frequência de risco de disfagia (Tabela 3). Do total de indivíduos classificados como “em risco”, 61% possuíam 60 anos ou mais.
Tabela 3 Fatores associados à maior frequência de risco de disfagia
Variável | Sem risco | Com risco | Valor de p* | |
---|---|---|---|---|
n (%) | n (%) | |||
Sexo | ||||
Feminino | 441 (90,0) | 49 (10,0) | 0,664 | |
Masculino | 373 (89,0) | 46 (11,0) | ||
Faixa etária | ||||
Adultos | 497 (93,1) | 37 (6,9) | <0,001 | |
Idosos† | 317 (84,5) | 58 (15,5) | ||
IMC (n=902) | ||||
Magreza/baixo peso | 115 (83,9) | 22 (16,1) | 0,064 | |
Eutrofia | 370 (90,7) | 38 (9,3) | ||
Excesso de peso/obesidade | 323 (90,5) | 34 (9,5) |
*60 anos ou mais.
†χ2 de Pearson.
IMC: índice de massa corporal.
Foi identificada correlação significativa direta, porém fraca, entre a pontuação do EAT-10 e a idade. Já o PP e o PB apresentaram correlações inversas, embora também muito fracas, indicando que uma maior pontuação, sugestiva de maior risco de disfagia, esteve associada a menores medidas antropométricas (Tabela 4).
Tabela 4 Correlação entre a pontuação do Eating Assessment Tool (EAT-10) e variáveis objetivas
Variável | ρ* | Valor de p |
---|---|---|
Idade | 0,156 | <0,001 |
Índice de massa corporal | -0,017 | 0,606 |
Perímetro da panturrilha | -0,080 | 0,018 |
Perímetro do braço | - 0,078 | 0,019 |
*Coeficiente de correlação de Spearman.
Até onde se tem conhecimento, este é o estudo com maior tamanho amostral no Brasil que avaliou a frequência de risco de disfagia, por meio do instrumento de triagem EAT-10, em adultos e idosos hospitalizados.
A prevalência de risco de disfagia encontrada na amostra total e nos idosos foi inferior a de trabalhos que avaliaram grupos específicos. Em estudo recente,(10) foram avaliados 103 idosos hospitalizados sem história prévia de disfagia ou de problemas de deglutição. O EAT-10 identificou 26,2% dos avaliados em risco, estando esta condição significativamente associada à pior capacidade funcional. Sugere-se, assim, que esta é uma ferramenta útil de triagem para a disfagia, e destaca-se sua elevada prevalência identificada, pois aproximadamente um quarto dos idosos apresentava sinais sugestivos de distúrbios de deglutição.
Gálan Sánchez-Heredero et al.,(22) avaliaram a associação entre o risco de disfagia segundo o EAT-10, o estado nutricional e a capacidade funcional em 167 idosos hospitalizados na Espanha. Foi demonstrada a associação entre as alterações de deglutição com a piora da capacidade funcional, maior frequência de comorbidades, maior idade, menor IMC, e presença de risco nutricional e de desnutrição. As prevalências de risco de disfagia e de desnutrição foram de 30,8% e 15,4%, respectivamente, e, em pacientes com risco, a prevalência de problemas nutricionais aumentou em até 75%.(22) Embora em nosso estudo a associação do EAT-10 com o diagnóstico pelo IMC não tenha sido estatisticamente significante, os menores valores de PP e PB no grupo de risco também sugerem possível impacto nutricional. Matsuo et al.,(10) verificaram menores IMC e PP, além de reduzida força de preensão manual e baixo consumo calórico nos disfágicos. O PP é considerado a medida mais sensível de massa muscular em idosos e indica mudanças na massa magra que ocorrem com o envelhecimento e com a diminuição da atividade física.(23) Já o PB apresenta alta correlação com o percentual de gordura corporal e também constitui bom indicador para avaliar desnutrição em idosos.(23,24)
A única variável que se associou de forma significativa ao risco de disfagia foi a idade. Idosos estão mais suscetíveis à disfagia, por apresentarem mais frequentemente doenças que se associam à esta condição, como doença de Parkinson, acidente vascular encefálico, doença de Alzheimer, esclerose lateral amiotrófica, carcinoma de cabeça e pescoço e demência, além das alterações funcionais relacionadas ao próprio envelhecimento, como perda de força e tônus muscular, redução de velocidade, precisão e coordenação dos movimentos, diminuição dos reflexos propulsores, diminuição do peristaltismo esofágico e perda da dentição.(25)
Em estudo realizado por Freire et al.,(26) em um hospital de Porto Alegre (RS), especificamente com portadores de doença de Parkinson, foi identificada a associação entre o risco de disfagia avaliado pelo EAT-10 e a alteração na qualidade de vida, principalmente no domínio da comunicação oral. Em um trabalho com 360 indivíduos disfágicos, verificou-se a pontuação do EAT-10 como preditora para a ocorrência de broncoaspiração.(27)
A escassez de publicações com o EAT-10 no Brasil limita comparações em nível nacional. Apesar dos poucos estudos, a prevalência identificada demonstra a importância do rastreamento de disfagia em hospitais. Destaca-se a necessidade de validação deste instrumento em uma amostra brasileira, no intuito de confirmar a aplicabilidade e a confiabilidade, já comprovadas em outros países.
Em relação à avaliação nutricional, as frequências de desnutrição apresentaram grande variabilidade, de acordo com o método de diagnóstico, variando de 13,2%, quando utilizada a AGS, e 40,2%, segundo o PB. Independentemente do método, os resultados evidenciam a relevância de deficit nutricionais no ambiente hospitalar.
A frequência de desnutrição, segundo a AGS, foi inferior ao encontrado no IBRANUTRI,(28) estudo multicêntrico realizado no Brasil com 4.000 pacientes hospitalizados, que identificou quase metade (48,1%) dos indivíduos com algum grau de desnutrição. Já a prevalência segundo o IMC foi semelhante à do estudo de Marcadenti et al.,(29) que avaliaram 445 indivíduos em um hospital geral e identificaram prevalência de desnutrição de 15,5%.
Foi demonstrada, em um estudo com 874 indivíduos no Japão, a associação independente entre a desnutrição e a disfagia, condições que aumentam o risco de morbidade, a fragilidade e a mortalidade. Sugere-se que alterações na deglutição podem ser importantes preditoras de desnutrição, principalmente em idosos.(30)
Como limitações do deste trabalho, ressaltamos que o delineamento transversal não permite inferências causais em relação à disfagia. Ainda, as medidas antropométricas foram aferidas por avaliadores diferentes. Apesar de treinamentos prévios para a padronização das medidas, deve-se considerar a possibilidade de variabilidade interpessoal. Como pontos positivos, o estudo apresenta a prevalência do risco de disfagia e da desnutrição em uma grande amostra de indivíduos hospitalizados. Pretende-se alertar profissionais de saúde para a importância do rastreamento precoce destas condições, que influenciam significativamente na qualidade de vida, na morbimortalidade, na recuperação e no prognóstico dos pacientes.
A avaliação do risco de disfagia pelo EAT-10 é uma alternativa simples, rápida e de baixo custo para identificar pacientes com problemas de deglutição. A prevalência encontrada alerta para a importância de ações de rastreamento em nível hospitalar, principalmente nos idosos. Além de distúrbios de deglutição, alterações no estado nutricional também devem ser investigadas de forma rotineira, com a adoção das medidas de intervenção, monitoramento e controle adequadas.