versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.113 no.2 São Paulo ago. 2019 Epub 02-Set-2019
https://doi.org/10.5935/abc.20190144
A miocardiopatia dilatada (MCD) é uma síndrome caracterizada por dilatação ventricular esquerda e disfunção contrátil, sendo considerada a causa mais comum de insuficiência cardíaca em adultos jovens. O uso do sequenciamento de nova geração tem contribuído com a descoberta de uma grande quantidade de dados genômicos relacionados à MCD, identificando mutações que envolvem genes que codificam proteínas do citoesqueleto, sarcômero e canais iônicos, os quais são responsáveis por aproximadamente 40% dos casos classificados como MCD idiopática. Nesse cenário, geneticistas e especialistas em genética cardiovascular passaram a atuar em conjunto, agregando conhecimento e estabelecendo diagnósticos mais precisos. No entanto, é fundamental interpretar corretamente os resultados genéticos, sendo necessário criar e fomentar equipes multidisciplinares dedicadas à gestão e análise das informações coletadas. Nesta revisão, abordamos os fatores genéticos associados à MCD, aspectos prognósticos, além de discutirmos como o emprego dos testes genéticos, quando bem indicados, pode ser útil na tomada de decisão na prática clínica dos cardiologistas.
Palavras-chave Cardiomiopatia Dilatada/genética; Disfunção Ventricular Esquerda; Insuficiência Cardíaca; Testes Genéticos/métodos; Transplante de Coração
Dilated cardiomyopathy (DCM) is a clinical syndrome characterized by left ventricular dilatation and contractile dysfunction. It is the most common cause of heart failure in young adults. The advent of next-generation sequencing has contributed to the discovery of a large amount of genomic data related to DCM. Mutations involving genes that encode cytoskeletal proteins, the sarcomere, and ion channels account for approximately 40% of cases previously classified as idiopathic DCM. In this scenario, geneticists and cardiovascular genetics specialists have begun to work together, building knowledge and establishing more accurate diagnoses. However, proper interpretation of genetic results is essential and multidisciplinary teams dedicated to the management and analysis of the obtained information should be considered. In this review, we approach genetic factors associated with DCM and their prognostic relevance and discuss how the use of genetic testing, when well recommended, can help cardiologists in the decision-making process.
Keywords Cardiomyopathy, Dilated/genetics; Ventricular Dysfunction, Left; Heart Failure; Genetic Testing/methods; Heart Transplantation
As miocardiopatias primárias (MCP) são um grupo heterogêneo de doenças predominantemente genéticas que podem apresentar alterações estruturais e funcionais patológicas do miocárdico.1-3 Estas doenças evoluem para insuficiência cardíaca (IC) com frequência, sendo a miocardiopatia dilatada (MCD) a principal indicação de transplante cardíaco (TxC).3 Atualmente, estima-se que a prevalência da MCD idiopática seja em torno de 1 caso para cada 2.500 indivíduos, mas autores como Hershberger et al.,4 descrevem uma frequência dez vezes maior.4 Particularmente nas últimas duas décadas obteve-se maior compreensão sobre a etiologia e o curso clínico de muitas destas doenças.5,6 Este cenário foi proporcionado por avanços substanciais no emprego do diagnóstico genético em serviços de miocardiopatia e centros de pesquisa por todo o mundo.
Tradicionalmente, a MCD é definida como dilatação do ventrículo esquerdo (VE) ou de ambos, com consequente prejuízo no desempenho contrátil do músculo cardíaco, na ausência de condições anormais de sobrecarga e/ou doença isquêmica do coração.4-6 Entretanto, essa síndrome pode englobar uma diversidade de distúrbios genéticos e adquiridos que podem se expressar mais ou menos com o passar dos anos. Nesse particular, alguns indivíduos portadores de mutações e também diagnosticados em estágios iniciais de MCD podem apresentar fenótipos intermediários que não atendem às clássicas definições da doença, criando, assim, limitações que dificultam o diagnóstico.2,4 Por esta razão, a reformulação de alguns conceitos que definem subgrupos de pacientes com esta síndrome torna-se importante, como é o caso da MCP hipocinética não dilatada,2 onde a disfunção sistólica pode não estar associada à dilatação do VE.
De fato, a heterogeneidade clínica observada é em parte reflexo dos diversos genes relacionados às proteínas do sarcômero, citoesqueleto, uniões intercelulares, membrana celular e canais iônicos (Tabela 1),2,4,7,8 que têm sido associados às MCD. Muitos destes genes também estão associados a outras formas de MCP (não compactada, arritmogênica, hipertrófica e restritiva), sendo distinta a prevalência de variantes patogênicas em cada um destes genes.4,7 Mutações com potencial patogênico são identificadas em até 40% dos casos descritos como MCD idiopática, dependendo da coorte.9,10 Inclusive, tem sido sugerido que a rentabilidade do estudo genético seria maior em coortes de pacientes com MCD dita idiopática já em lista de TxC, podendo alcançar os 70%.11,12
Tabela 1 Principais genes associados à miocardiopatia dilatada
Gene | Proteína | Contribuição estimada |
Associação com outras Miocardiopatias |
Outros fenótipos | Herança | Nível de evidência* |
---|---|---|---|---|---|---|
Sarcômero | ||||||
TTN | Titina | 18-25% | MNC | Miopatias | AD | 1 |
TNNT2 | Troponina T tipo 2 | 2-3% | MCH, MCN | - | AD | 1 |
TNNI3 | Troponina tipo I3 | 1-2% | MCH, MCR | - | AR | 1 |
TPM1 | Tropomiosina 1 | 1-2% | MCH, MNC | Doença cardíaca congênita | AD | 1 |
MYH7 | Miosina-7 (cadeia pesada de β-miosina) | 3-5% | MCH, MNC | Miopatias | AD | 1 |
MYBPC3 | Proteína C de ligação de miosina cardíaca | 2% | MCH, MNC | - | AD | 1 |
BAG3 | BCL-2 associada ao athanogene 3 | 2% | - | Miopatiamiofibrilar | AD | 1 |
ACTC1 | Actina cardíaca | <1% | MCH, MNC | - | AD | 1 |
Citoesqueleto | ||||||
ACTN2 | α-actinina 2 | < 1% | MCH | Doença cardíaca congênita | AD | 2 |
FLNC | Filamina C | 2.2% | MCH, MCR | - | 1 | |
LDB3 | Proteína 3 de ligação ao domínio LIM | <1% | ND | Miopatiamiofibrilar | AD | 2 |
ANKRD1 | Domínio de repetição anquirin 1 | < 1% | MCH | Doença cardíaca congênita | AD | 3 |
VCL | Vinculina | 1% | ND | - | AD | 3 |
JUP | Placoglobina de junção | 1 % | DAVD | Doença de Naxos | AD/AR | 1 |
DMD | Distrofina | 1% | ND | Distrofia muscular de Duchenne e Becker |
Ligado ao X | 1 |
DES | Desmina | 1-2% | MCH, MCR | Miopatiamiofibrilar | AD | 1 |
Membrama celular | ||||||
LMNA | Lamina A/C | 5-10% | MCH | Miopatias musculares, lipodistrofias, progeria |
AD | 1 |
EMD | Emerina | ND | ND | Distrofia muscular de Emery-Dreifuss |
Ligada ao X | 1 |
Canais iônicos | ||||||
SCN5A | Canal de sódio cardíaco | 2-3% | MNC | Síndrome de Brugada/SQTL | AD | 1 |
ABCC9 | Canal de potássio sensível ao ATP | < 1% | - | Osteocondrodisplasia | AD | 3 |
Desmossomo | ||||||
DSC2 | Desmoscolina 2 | 1-2% | MCA | Ceratodermiapalmoplantar | AD | 1 |
DSG2 | Desmogleína 2 | 1-2% | MCA | - | AD/digênica | 1 |
DSP | Desmoplaquina | 3% | MCA | Síndrome de Carvajal | AR | 1 |
PKP2 | Placofilina 2 | <5% | MCD | - | AD | 1 |
Lisossomo | ||||||
LAMP2 | Proteína de membrana associada ao lisossoma 2 |
4% | MCH | Doença de Danon | Ligada ao X | 1 |
Retículo Sarcoplasmático |
||||||
PNL | Fosfolambano | 1% | MCH, MCA | - | AD | 1 |
RYR2 | Receptor 2 de rianodina | ND | - | TVPC | AD | 2 |
RBM20 | Proteína de ligação ao RNA 20 | 2% | MNC | - | AD | 1 |
MCPs: miocardiopatias; MCH: miocardiopatia hipertrófica; MCR: miocardiopatia restritiva; MNC: miocadiopatia não-compactada; MCA: miocardiopatia arritmogênica; DAVD: displasia arritmogênica do ventrículo direito; TVPC: taquicardia ventricular polimórfica catecolaminérgica; SQTL: síndrome do QT longo; ND: Não disponível; AD: Autossômica dominante; AR: Autossômica recessiva.
*Os genes foram classificados de acordo com três níveis. Nível 1: múltiplos estudos, variantes e famílias relatados e cosegregação com doença estabelecida. Nível 2: único ou poucos estudos, variantes e famílias relatados e cosegregação limitada observada. Nível 3: único ou poucos estudos, variantes e famílias relatados e cosegregação não estabelecida.
Nível 1: múltiplos estudos, variantes e famílias relatados e cosegregação com doença estabelecida. Nível 2: único ou poucos estudos, variantes e famílias relatados e cosegregação limitada observada. Nível 3: único ou poucos estudos, variantes e famílias relatados e cosegregação não estabelecida.
Há cerca de 10 anos, diretrizes estabeleceram critérios para a utilização dos testes genéticos na MCD.9 Estes, por sua vez, podem auxiliar no manejo de pacientes e de seus familiares, otimizando inclusive a estratificação de risco. Nesse âmbito, a avaliação clínica cuidadosa, assim como uma história familiar associada aos resultados genéticos, são pilares fundamentais. Assim sendo, o objetivo principal desta revisão é o de descrever aspectos clínicos e epidemiológicos das principais etiologias genéticas relacionadas ao espectro da MCD, uma vez que o emprego de testes moleculares no manejo de pacientes com esta doença ainda é uma realidade incipiente em nosso país.
A utilização de plataformas de sequenciamento genético de nova geração (do inglês, "NGS") possibilitou duas abordagens diagnósticas na MCD:
O estudo ampliado: através do exoma, o qual aborda “todos” éxons e regiões flanqueantes do genoma humano, na qual, de fato, se considera somente aqueles genes para os quais já exista informação clínica correlacionada. A utilização do exoma vem sendo mais empregada em contextos de pesquisa clínica aplicada, resultando na descoberta de novos genes de possível associação com MCD.13,14 Estes "novos" genes, também são chamados de genes candidatos, pois sua patogenicidade é de menor grau ou mesmo incerta, o que resultaria em um maior número de variantes de significado clínico incerto;
O estudo dirigido: através de painéis de NGS, sendo constituído por um determinado número de genes para o qual existe maior evidência de sua associação causal com a MCD (Tabela 1).15,16 Aqui, o maior volume de casos já descritos com variantes patogênicas/possivelmente patogênicas nestes genes possibilita informação mais embasada para a tomada de decisão clínica.17 É importante enfatizar que a maioria das mutações descritas na MCD são restritas a uma única família, o que dificulta a interpretação dos dados genéticos. Portanto, características clínicas e integração da história familiar são necessárias para aperfeiçoar a tomada de decisão.17 Existe em torno de uma centena de genes associados à MCD, com diferentes níveis de evidência. Para muitas etiologias, é importante mencionar que a presença de uma variante genética nem sempre significa que a doença irá se desenvolver. Existem diferenças na penetrância (porcentagem de portadores que desenvolverão o fenótipo) entre os diferentes genes.18 Os genes mais documentados são listados na Tabela 1.
Nos últimos anos, o aumento expressivo da utilização de painéis de NGS permitiu a identificação de um número significativo de indivíduos portadores com variantes em um mesmo gene. Essa amostra populacional vem possibilitando descrições clínicas relevantes na MCD, como nos estudos mais recentes que abordaram diferentes genes (TTN, LMNA, FLNC ou BAG3).19-21 Nestes genes, a cosegregação de variantes genéticas como causa de MCD em múltiplas famílias foi demonstrada, assim como o crescente número de portadores identificados viabilizou análises de correlação genótipo-fenótipo sobre o prognóstico da doença.22,23
De forma sucinta, o estudo genético, através das diferentes técnicas, pode auxiliar o cardiologista em três situações clínicas importantes:8-10,24,25
No manejo familiar;
Na definição etiológica;
Na estratificação de risco.
Ao se estudar uma coorte de pacientes em estágio avançado de IC encaminhados para TxC, se identificou que o diagnóstico da MCD familiar (MCDF) vinha sendo sistematicamente negligenciado.26 O simples emprego do heredograma aumentou de 4,1% para 26% tal diagnóstico. Por sinal, em coortes prospectivas foi demonstrado que de 25 a 40% dos casos de MCD não isquêmica eram de fato de caráter familiar,9,24 chamando a atenção para o componente hereditário da síndrome, assim como para a importância da detecção precoce e tratamento dos familiares afetados. Neste contexto, a realização do heredograma com no mínimo três gerações, assim como a solicitação do teste genético na MCD, é fortemente recomendado.9
A identificação de uma variante patogênica/provavelmente patogênica em um caso índice (probando) permite que toda a família do paciente possa ser potencialmente beneficiada através do rastreamento genético em cascata (screening genético familiar).4,9 Isto é útil em casos onde somente a avaliação clínica não foi capaz de estabelecer o diagnóstico em um parente.2,4 Além disso, a identificação precoce de um familiar portador assintomático, ou em fase subclínica da doença, pode ser particularmente relevante quando o teste genético revela etiologias com maior potencial arritmogênico ou de evolução reconhecidamente mais célere.19,20 Mais ainda, nesse cenário seria possível instituir medidas para retardar a progressão da doença ou até mesmo de um desfecho súbito maligno. Por outro lado, o seguimento regular de familiares do caso índice que são identificados como não portadores de uma variante patogênica não é recomendado,9 o que evita gastos desnecessários de saúde, além do estresse psicológico do paciente/familiares.
Truncamento na Titina: Um marco no conhecimento sobre a genética na MCD foi o estudo de Herman et al.,11 publicado em 2012. Nele, foram identificadas variantes do tipo truncamento da titina (vtTTN) em 25% dos casos de MCDF e em 18% dos casos esporádicos. Estas prevalências foram obtidas através de três diferentes coortes, com frequência de vtTTN entre 8 e 40%. Cabe salientar que frequência mais elevada foram observadas em sujeitos submetidos à TxC ou com disfunção sistólica grave.
Desde então, outros estudos buscaram conhecer a história natural da MCDF com base em portadores de pacientes com vtTTN.24,27,28 Não foi observada diferença na incidência dos desfechos entre portadores afetados vs. não portadores,27 assim como não houve diferença na fibrose mesocárdica entre estes grupos.28 No entanto, homens afetados por vtTTN manifestaram a doença em idades mais precoces (78% vs. 30% das mulheres aos 40 anos).27 Outros autores identificaram que afetados por vtTTN teriam desfecho mais precoce do que os não portadores, considerando morte por todas as causas, estar em lista de TxC e uso de dispositivo de assistência ventricular.28 Nessa mesma linha, os portadores do sexo masculino apresentaram uma menor sobrevida (28% dos homens tiveram um evento cardiovascular até os 50 anos de idade vs. 8% das mulheres), considerando os desfechos morte por IC, TxC ou uso de dispositivo de assistência ventricular.27
Em uma amostra robusta (n = 558) foi evidenciada uma elevada incidência de morte cardiovascular a partir dos 40 anos de idade em pacientes portadores de vtTTN.29 Nestes pacientes foi maior a ocorrência de eventos cardiovasculares nos homens (1,25% vs. 0,75% ao ano; entre os 40-60 anos), sendo a morte súbita cardíaca o desfecho mais frequente. Por sua vez, diferentes publicações descrevem alta incidência de fibrilação atrial, assim como taquicardia ventricular sustentada e não sustentada, nesses pacientes.24,25,28,30
Muito embora, segundo a literatura, a presença de vtTTN seja associada a um início precoce de manifestações arrítmicas, ainda não foi possível definir um fenótipo característico para esses pacientes, diferentemente do que ocorre com portadores de outras mutações em genes relacionados à MCD. Mais ainda, tem sido postulado que mutações do tipo vtTTN possam fazer parte de um substrato genético predisponente a diferentes tipos de MCPs (induzida por antraciclinas, periparto e alcoólica).27-29 Por fim, pacientes com MCD por vtTTN teriam um curso clínico mais favorável e responderiam melhor à terapia medicamentosa quando comparados àqueles afetados por variantes na lamina (gene LMNA).31-33
Lamina: Variantes patogênicas no gene LMNA produzem um fenótipo bem caracterizado de MCD associada a transtornos de condução/arritmias malignas, denominado cardiolaminopatias.34 A expressão fenotípica se dá por distúrbio progressivo da condução atrioventricular, a qual geralmente precede a disfunção ventricular e/ou as arritmias ventriculares, embora possam ser identificadas arritmias ventriculares ou supraventriculares (em especial fibrilação atrial), como primeira manifestação.19,34 A idade de diagnóstico ocorre, em geral, após os 20 anos de idade com alta penetrância após os 40 anos (> 90%).35 Uma vez manifestado os primeiros sintomas, as cardiolaminopatias podem evoluir com maior rapidez para estágios avançados de IC quando comparadas a outras etiologias de MCD primária.19,36 A prevalência de mutações no gene LMNA varia entre 5-10% em coortes de MCDF e em torno de 2-5% em casos esporádicos, perfazendo até 30% dos casos de MCD associada a transtornos de condução/arritmias, sendo muito menos frequente em casos de MCD isolada (não arrítmica).34,35
Entre 2013 e 2015, Hasselberg et al.,37 identificaram prevalência de mutações no gene LMNA em torno de 6% em uma coorte de 79 jovens noruegueses com MCDF. Nestes, houve necessidade de TxC em uma alta proporção dos portadores (19%). Em outro estudo 122 afetados foram seguidos por 7 anos. Entre eles, 27 evoluíram para MCD terminal ou para óbito. É digno de nota citar que nesta mesma coorte, os portadores assintomáticos apresentaram incidência anual de 9% de um evento cardíaco documentado ao longo de 4 anos de seguimento.19 Estes dados sugerem um prognóstico bastante desfavorável e de evolução mais célere para TxC/óbito do que em MCD de outras etiologias.
Tais características clínicas e epidemiológicas corroboram com as recomendações para que o estudo genético seja realizado em pacientes com MCD não isquêmica, além de se considerar o implante precoce de cardiodesfibrilador (CDI) caso seja identificada uma variante patogênica no gene LMNA (Classe de Recomendação IIa, nível de evidência B).38 Neste contexto e, com base em um estudo publicado em 2012 que arrolou 269 pacientes com cardiolaminopatia, o risco de eventos será maior quando no momento do diagnóstico o paciente apresenta dois ou mais destes critérios de risco: 1) taquicardia ventricular não sustentada; 2) fração de ejeção do VE < 45%; 3) sexo masculino; 4) variante do tipo truncamento.39 Desde então, outros autores já propuseram que não apenas as variantes truncadas seriam relevantes, mas também variantes genéticas do tipo missense, as quais também seriam potencialmente malignas.40 Por fim, ainda não disponível, um escore de risco para pacientes com MCD afetados por variantes na LMNA deverá ser publicado muito em breve. Nesse particular, esperamos que o mesmo aumente a precisão na estratificação de risco destes indivíduos.
Outros Genes: Mais frequentemente associadas à miocardiopatia hipertrófica (MCH), algumas mutações sarcoméricas também podem causar MCD.25 Os genes sarcoméricos da cadeia pesada da beta miosina 7 (MYH7), troponina T tipo 2 (TNNT2) e tropomiosina 1 (TPM1) são aqueles que apresentam informação prognóstica associada. Dependendo da localização da variante genética no gene MYH7, a evolução pode ser particularmente grave, de forma similar ao que ocorre nos casos de MCD causadas pela TNNT2.25 Mutações genéticas observadas na TPM1 causam menos que 1% dos casos de MCD, mas correspondem a parcelas significativas dos casos pediátricos desta doença, nos quais o desfecho rápido para morte ou TxC não é incomum.25 Uma metanálise composta por quase 8.100 pacientes avaliou a correlação genótipo-fenótipo na MCD para os genes TTN e LMNA, assim como para proteínas sarcoméricas como a proteína C de ligação à miosina (MYBPC3), MYH7, TNNT2, troponina T tipo I3 (TNNI3), proteína 20 ligada ao RNA (RBM20) e fosfolambano (PLN).41 Maior frequência de TxC foi observado em portadores de mutações na LMNA (27%), percentual significativamente maior do que para mutações nos genes RBM20 e MYBPC3 (≈10% cada). Afetados do sexo masculino foram predominantes nos diferentes genes (79% no gene MYBPC3 e 69% nos genes LMNA e MYH7), com proporção significativamente menor entre os portadores do gene PLN (46% homens).
Mais recentemente, os genes Filamina C (FLNC) e Chaperona Reguladora 3 (BAG3) tiveram sua história natural da doença bem caracterizada em publicações de alto impacto.20,21,42 O primeiro deles apresentou um perfil mais arritmogênico e o segundo um maior número de eventos relacionados à IC. Variantes tipo truncamento na FLNC foram identificadas cosegregando em 28 famílias afetadas com uma forma particular de MCP arritmogênica/dilatada.20 Os achados clínicos mais prevalentes foram dilatação ventricular (68%), disfunção sistólica (46%) e fibrose miocárdica (67%). Arritmias ventriculares foram documentadas em 82% dos portadores e casos de morte súbita foram relatados em 21 das 28 famílias. Em torno de 95% dos portadores já expressavam o fenótipo aos 40 anos de idade.20 Outro estudo identificou variantes truncadas na FLNC em 2,2% dos pacientes com MCD, os quais apresentavam arritmias ventriculares e/ou morte súbita em 85% dos casos.42 O envolvimento adicional do coração direito foi relatado em 38% dos casos. Sendo assim, o implante precoce de CDI passou a ser considerado nestes pacientes, mesmo que os mesmos não preencham os critérios estabelecidos nas atuais diretrizes de MCD.9,20
Nos últimos anos, diversos relatos isolados da identificação de variantes genéticas em BAG3 foram descritos em famílias com MCD.43-47 De maior importância, o fenótipo associado ao gene foi melhor caracterizado com base em uma coorte de 129 portadores.19 Após seguimento médio de 38 meses, o número de portadores afetados com MCD subiu de 57% para 68%, representando 26% dos portadores, os quais apresentavam inicialmente fenótipo negativo, mas que acabaram por manifestar a doença. Considerando os portadores com idade acima dos 40 anos, 80% era fenótipo positivo. Nesta amostra, a incidência de eventos cardíacos nos portadores de variantes BAG3 com MCD foi de 5,1% (desfechos: taquicardia ventricular sustentada, morte súbita, morte por IC, necessidade de dispositivo de assistência ventricular e TxC), com predomínio de eventos relacionados à IC em relação aos arrítmicos. Durante o seguimento, os pacientes do sexo masculino, aqueles com deterioração da função sistólica e com aumento do diâmetro ventricular, foram os que apresentaram maior incidência de eventos.21 Diferentemente de mutações no gene da FLNC e com base nestes achados, variantes no gene BAG3 não parecem estar relacionado a necessidade de implante precoce de CDI.
Muitos dos genes descritos como patogênicos em pacientes com MCD são também associados ao desenvolvimento de outras formas de MCPs (Tabela 1). Este fato pode acarretar a presença de mais de um fenótipo no mesmo heredograma, ou de um fenótipo sobreposto em um mesmo indivíduo, como ocorre, por exemplo, entre a miocardiopatia não compactada (MCNC) e a MCD.48,49
Em uma coorte de 95 pacientes com MCNC (68 indivíduos não relacionados e 27 parentes, 23% dos casos eram de MCNC familiar), uma variante genética foi identificada em 38% dos casos.49 Os genes mais frequentes foram TTN, LMNA e MYBPC3, incluindo uma família afetada por mutação no gene RBM20. Nesta família, o caso índice foi transplantado aos 21 anos de idade (3 anos após o diagnóstico), havendo três gerações afetadas no lado materno. O número de eventos cardiovasculares maiores nesta coorte foi significativamente mais elevado nos pacientes com MCNC do que naqueles pareados com MCD não isquêmica de etiologia conhecida. Aproximadamente 10% dos pacientes afetados com MCNC evoluíram para TxC vs. 2,8% no grupo com MCD não isquêmica.49 Em uma das famílias com MCNC desta coorte foi identificada uma variante no gene MYH7, a qual estava associada em diferentes estudos a uma forma de MCH de prognóstico reservado. Neste caso, embora os indivíduos afetados não preenchessem critérios definitivos para tal doença, foi detectado um aumento na espessura da parede miocárdica em vários deles.49 Tal fato deve chamar a atenção do cardiologista para a heterogeneidade fenotípica destas doenças, assim como a necessidade de se observar o que o diagnóstico etiológico pode representar para a história natural da doença.
Genes relacionados geralmente à miocardiopatia arritmogênica (MCA) podem produzir quadros clínicos indistinguíveis daqueles de MCD. Pacientes afetados por truncamentos nos genes da desmoplaquina (DSP) e da FLNC, por exemplo, podem ser acometidos por uma forma de MCA com envolvimento exclusivo do VE.20,50,51 Existe na literatura diversos relatos de pessoas com MCD afetadas por genes desmossômicos que não preenchem nenhum (ou somente alguns) dos critérios diagnósticos para displasia arritmogênica do ventrículo direito.50-52
Em estudo que contou com 89 pacientes não relacionados, todos com MCD em fase terminal submetidos ao TxC, o screening genético dos cinco genes desmossomais mais comuns (PKP2, DSP, JUP, DSC2, DSG2) identificou variantes genéticas em 18% deles.51 O estudo genético dos familiares identificou outros 38 portadores, incluindo casos de MCD ainda em fase subclínica. A análise histopatológica dos corações explantados mostrou infiltração fibro-adiposa, a qual ocorreu em alguns casos no ventrículo direito, em outros no esquerdo, assim como situações nas quais não se observaram lesões fibro-adiposas.52
Diante do exposto, é possível concluir que as MCPs, particularmente a forma dilatada, refletem uma síndrome complexa e de alta heterogeneidade, o que impõe desafios quanto ao seu diagnóstico, prognóstico e tratamento. Neste cenário, o diagnóstico molecular através do NGS torna-se uma ferramenta bastante útil na prática do cardiologista. Embora ainda incipiente no Brasil, o uso da genética em serviços de MCD e TxC deve ser considerada, pois o diagnóstico etiológico permite, em muitos casos, um manejo clínico e estratificação de risco mais assertivos. Mais ainda, o rastreamento clínico e genético em familiares é de certa forma negligenciado, apesar de ser uma conduta recomendada. Sendo assim, nos parece que os serviços de MCPs e de TxC no Brasil, assim como os grupos de pesquisa relacionados, discutam o tema de forma mais incisiva, com o intuito de divulgar o conhecimento atual, tanto aos profissionais de saúde quanto à sociedade. Apesar dos potenciais benefícios, as limitações dos testes genéticos não devem ser omitidas. O teste genético deve ser preferencialmente empregado em um contexto de aconselhamento genético multidisciplinar, com orientação pré e pós-teste sobre características do método empregado e possíveis repercussões do resultado genético sobre o paciente e sua família. É fundamental discutir questões associadas à penetrância associada a cada variante genética e aspectos relacionados à expressividade clínica variável, o que pode determinar que a doença não se manifeste da mesma forma em todos os portadores da família.53
Por fim, ilustramos o presente artigo com um caso clínico ocorrido no Brasil, nos quais a utilização do teste genético fez parte da propedêutica clínica:
Caso clínico: Paciente de 30 anos, sexo masculino, hospitalizado devido IC descompensada (classe funcional NYHA III). Diagnóstico de MCD há um ano após quadro de palpitações eventuais. Depois de ampla investigação propedêutica à época, realizou ressonância cardíaca que evidenciou hipocinesia difusa, disfunção ventricular esquerda (fração de ejeção do VE de 46%), além de fibrose meso-epicárdica de forma difusa (Figura 1). A evolução clínica rápida foi sugerida a partir de ecocardiograma normal realizado há dois anos, quando comparado a um ecocardiograma desta internação (fração de ejeção do VE de 32%), diâmetros sistólico e diastólico de 49 e 58 mm, respectivamente, com átrio esquerdo apresentando diâmetro de 44 mm. O paciente apresentava fibrilação atrial e realizou ineangiocoronariografia que não evidenciou coronariopatia de qualquer natureza. Considerando a gravidade do caso e uma história familiar positiva de morte súbita (Figura 2), foi solicitado estudo genético através de um painel para MCD (NGS), tendo sido identificada a variante p.Leu176Pro no gene LMNA, esclarecendo a etiologia da doença nesta família. Diante do histórico familiar e da mutação encontrada foi implantado um CDI para prevenção primária, apesar da fração de ejeção > 30%. Conforme descrito na literatura, a cardiolaminopatia não respondeu adequadamente ao tratamento clínico otimizado e mostrou evolução célere para TxC. Após um ano o paciente evoluiu com anasarca. Uma nova internação foi necessária e o uso de drogas inotrópicas positivas intravenosas foi instituído. TxC foi realizado dois meses após. Os filhos do paciente eram duas crianças aparentemente saudáveis, menores de 10 anos de idade. Como a idade média de diagnóstico nos portadores do gene LMNA é mais tardia (a partir da terceira década de vida), a conduta seguiu recomendações éticas para o teste genético em menores, sendo respeitada a idade apropriada para aconselhamento genético.54 Entretanto, é importante mencionar que já foi relatado casos de crianças afetadas por variantes no gene LMNA, fato esse que poderia questionar a conduta vigente que é expectante em filhos pequenos de pacientes com cardiolaminopatias.55