versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.17 no.2 São Paulo 2019 Epub 02-Maio-2019
http://dx.doi.org/10.31744/einstein_journal/2019rb4733
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil será o sexto país do mundo com o maior número de pessoas idosas até 2025. Esse aumento do número de idosos pode gerar um impacto socioeconômico no país, como já se tem observado em outros lugares do mundo, visto que a maioria dos idosos atinge a terceira idade com morbidades associadas (comorbidades). Algumas das comorbidades frequentes em idosos estão relacionadas com alterações características do sistema imune, que ocorrem com o avanço da idade, denominadas imunosenescência. Essas alterações conduzem ao aumento da incidência e da gravidade das doenças infecciosas, e à insuficiente proteção após a vacinação, acarretando elevado número de internações.(1)
A imunosenescência foi definida inicialmente como um conjunto de alterações que ocorrem na resposta imune, de acordo com o envelhecimento, sendo um sinônimo de imunodegeneração. Isso porque foi considerado que o sistema imune entrava em colapso com o avanço da idade, visto o aumento da suscetibilidade desses indivíduos às doenças infecciosas e ao desenvolvimento do câncer, a diminuição da produção de anticorpos contra antígenos específicos, o aumento de autoanticorpos, a diminuição da proliferação de linfócitos T e a involução tímica.(2,3) Porém, atualmente, a imunosenescência é definida por alguns pesquisadores como remodelação do sistema imune, sugerindo que há plasticidade do sistema imune com o envelhecimento. Segundo esses pesquisadores, com o avanço da idade não ocorre necessariamente um declínio inevitável das funções imunes, mas um rearranjo ou a adaptação do sistema imune, para adequar o organismo que foi exposto a diferentes patógenos ao longo da vida. Dependendo desse rearranjo ou da adaptação ser bem-sucedida o idoso pode chegar à longevidade com qualidade de vida ou, caso contrário, apresentar doenças crônicas (comorbidades) e/ou sofrer frequentes hospitalizações, devido à gravidade das infecções.(4,5)
Essa adaptação do sistema imune, com o avanço da idade, parece ter como resultado a diminuição da percentagem e do repertório de células T pela involução tímica, o acúmulo de células T de memória por infecções crônicas, a compensação do número de células T naïve por proliferação homeostática, a diminuição da capacidade de proliferação das células T frente a um estímulo, a senescência replicativa das células T e inflammaging, além do acúmulo de células mieloides supressoras (MDSC - myeloid-derived suppressor cells)(6) (Figura 1).
Figura 1 Alterações resultantes do envelhecimentoMDSC: células mieloides supressoras; RCT: receptor de células T; CMV: citomegalovírus; IL-2: interleucina 2.
Com o envelhecimento, há, durante a hematopoiese na medula óssea, a tendência de aumento da linhagem mieloide, o que pode favorecer o acúmulo de células mieloides supressoras. Essas células têm capacidade de suprimir a proliferação e a função de células T, além de produzir citocinas pró-inflamatórias. Além disso, observam-se a involução tímica e a substituição do tecido tímico por tecido adiposo. Com isso, há redução da variabilidade do receptor de células T e da liberação de células T naïve. A diminuição da liberação tímica de células naïve, somada a resposta imune contra infecções ao longo da vida, leva ao acúmulo de células T de memória. Tanto as células naïve quanto as de memória, nesses indivíduos, conseguem se manter graças à proliferação homeostática, que leva ao encurtamento dos telômeros dessas células, levando à senescência replicativa de células T, que são produtoras de citocinas pró-inflamatórias e favorecem o quadro inflammaging. O encurtamento dos telômeros também diminui a capacidade de proliferação de células T, que produzem menos interleucina (IL) 2, diminuindo ainda mais a proliferação dessas células.
Considerando que as células T são essenciais para a resposta adequada contra agentes patogênicos e neoplasias, além de sua função na proteção após a vacinação, parece razoável que mudanças no número, no fenótipo e na função das células T desempenham papel importante na imunosenescência e, então, podem ser usadas como biomarcadores. Assim, nosso grupo focou na avaliação do fenótipo e da função das células T, além das células MDSC, que recentemente foram relacionadas ao envelhecimento, e pouco se sabe sobre seu papel nesse processo; alguns trabalhos apontam o aumento da percentagem dessas células em tumores, infecções e um possível papel na doença de Alzheimer.(7,8) A seguir, é detalhado como ocorre cada um dos mecanismos citados originados pela remodelação do sistema imune com o envelhecimento.
Com a imunosenescência, há diminuição do reconhecimento de novos antígenos, que ocorre pela redução da variabilidade do receptor de células T (RCT) pela involução tímica, o que contribui para o aumento da suscetibilidade de idosos a doenças infecciosas ou à resposta ineficaz à vacinação.(6) Francisco et al., avaliaram dados de idosos de São Paulo e observaram que, mesmo eles sendo vacinados contra o vírus influenza, o número de idosos (acima de 80 anos) internados por doenças respiratórias foi maior, se comparado com idosos de 60 a 64 anos.(9) Porém, considerando a menor resposta imune pós-vacinação em alguns idosos, essa forma de prevenção é essencial, pois o levantamento de dados feito por Nichol et al., mostrou que, em dez temporadas de vacinação, houve redução de 27% do risco de hospitalização por pneumonia por influenza, e redução de 48% do risco de morte.(10)
A involução tímica também está relacionada com a baixa produção de células T naïve em idosos. No jovem, a percentagem de células T naïve e a percentagem da soma das células de memória são semelhantes. Na imunosenescência, a percentagem da soma das células de memória passa a predominar sobre a percentagem de células T naïve.(11)
Em estudo recente, realizado por nosso grupo, foi observado que, no estágio inicial do envelhecimento (60 a 65 anos), já existiam mudanças como a diminuição das células T naïve e o acúmulo de células T de memória terminal (TEMRA); e que, em homens, essa alteração era mais proeminente.(12) Hamann et al., também encontraram relação entre o envelhecimento e o aumento da percentagem de células TCD8+TEMRA.(13) Esse acúmulo de células de memória em indivíduos idosos e a relativa diminuição da diversidade de especificidade de reconhecimento RCT podem interferir no processo da montagem de respostas imunes a novos antígenos no indivíduo idoso.
A infecção por citomegalovírus (CMV) é associada ao aumento das células T de memória efetora (TEM).(14) Os papéis relativos que o envelhecimento e a infecção por CMV ao longo da vida têm na formação de células TCD4+ naïve e de memória em idosos saudáveis não são claros. No entanto, foi observado que o envelhecimento tem maior relevância que a soropositividade ao CMV para a diminuição das células T naïve ao longo do tempo. Porém, o aumento das células TCD4+TEM e TEMRA é quase exclusivamente o resultado da soropositividade ao CMV. Grande proporção das células TCD8+TEM e TEMRA em indivíduos idosos também pode ser específica para CMV. Desse modo, embora a infecção por CMV seja inofensiva para indivíduos jovens saudáveis, a infecção com este vírus pode ter um papel na disfunção imune durante o envelhecimento, que está associado com o acúmulo de células T de memória específicas para CMV.(15)
Para compensar a exportação tímica diminuída em idosos, as células T naïve existentes aumentam por meio da proliferação homeostática periférica. Tem sido demonstrado que a citocina IL-7 desempenha papel crucial no controle da proliferação homeostática de células TCD4+ e TCD8+naïve.(16) Durante o envelhecimento, também é observado um aumento no número de células T de memória resultante da proliferação homeostática, que, diferente das células T naïve, dependem tanto da citocina IL-7 quanto da citocina IL-15.(17) Esses achados sugerem que o aumento das citocinas homeostáticas durante o envelhecimento pode favorecer também a sobrevivência e a expansão das células de memória.(17)
Outra alteração encontrada em indivíduos idosos é a capacidade diminuída de proliferação de células T in vitro em resposta a diferentes mitógenos, quando comparada a jovens.(18,19) Acredita-se que a redução na secreção de IL-2 e na expressão das moléculas CD25 (cadeia alfa do receptor de IL-2) e CD28 (a qual, após ligação com a molécula B7, induz transcrição de IL-2 e do receptor da citocina IL-2/IL-2R) deva contribuir de maneira crucial para esta diminuição da capacidade proliferativa da célula T observada no indivíduo idoso.(20)
A imunosenescência também pode ser atribuída a um fenômeno conhecido como senescência replicativa de células T. A senescência replicativa refere-se ao processo pelo qual as células somáticas normais atingem estágio irreversível do ciclo celular após vários ciclos de replicação. Atualmente, é sabido que, entre os agentes que levam à senescência replicativa de células T in vivo, estão os vírus persistentes e os antígenos tumorais. As células TCD8+ senescentes, que se acumulam nos idosos, têm, frequentemente, a especificidade do antígeno contra o CMV, sugerindo que esta infecção comum e persistente possa impulsionar a senescência imune e resultar em alterações funcionais e fenotípicas no repertório de células T. As células T senescentes também foram identificadas em pacientes com certos tipos de câncer, doenças autoimunes e infecções crônicas, como o HIV. Essas células são caracterizadas pela perda da molécula coestimuladora CD28, telômeros encurtados e produção elevada de citocinas pró-inflamatórias.(21)
O aumento de citocinas pró-inflamatórias e a diminuição de citocinas anti-inflamatórias estão presentes no processo de envelhecimento − quadro conhecido como inflammaging.(22) A alteração na produção de citocinas pode estar relacionada com a senescência das células T. São encontrados danos no DNA nessas células como quebra de cadeia dupla, reparo ineficiente e redução da atividade da telomerase. As respostas resultantes do dano de DNA crônico envolvem principalmente a ativação de DNA-PKcs, uma subunidade catalítica do DNA dependente de proteína quinase. A atividade de DNA-PKcs influencia as vias de sinalização intracelular por meio da atividade aumentada do NF-kB, que pode contribuir para a produção de citocinas pró-inflamatórias, como IL-1, IL-6 e fator de necorese tumoral alfa (TNF-α), caracterizando o perfil inflammaging em idosos.(23) O aumento da produção de progenitores mieloides pela medula óssea em idosos também pode estar associado ao processo de inflammaging, pois os monócitos de idosos apresentam um aumento da secreção de citocinas no estado basal, como citocinas pró-inflamatórias (IL-6, TNF-α) e baixos níveis de citocinas anti-inflamatórias(IL-10).(24)
A secreção de IL-2 é reduzida com a progressão do envelhecimento. Com isso, ocorrem perda de capacidade de proliferação de células T, declínio na síntese e liberação de IL-2 (feedback), além de declínio na capacidade da célula T, para expressar o receptor de IL-2.(25)
Indivíduos idosos longevos geralmente apresentam sinais de inflamação sistêmica, bem como diminuição de antioxidantes, e mostram estado de hipercoagulabilidade caracterizado pelo maior nível plasmático de fatores importantes envolvidos no equilíbrio da hemostasia. No entanto, esses indivíduos evitam ou retardam o aparecimento de doenças crônicas relacionadas ao envelhecimento, como diabetes mellitus tipo 2, doenças cardiovasculares e câncer invasivo, sugerindo que o estado inflamatório e hipercoagulável são compatíveis com a saúde e a longevidade. Franceschi et al., desenvolveram a hipótese de que as alterações do sistema imune são propriedades de uma remodelação imune com o envelhecimento, na qual mecanismos de adaptação podem ter evoluído sob pressão seletiva, para otimizar a manutenção e o reparo de órgãos, tecidos ou células, viabilizando a longevidade em alguns indivíduos.(26)
O desbalanço entre a produção de progenitores mieloides e linfoides no envelhecimento favorece a linhagem mieloide, e, assim, essa tendência pode estar relacionada ao aumento das MDSC em idosos. As MDSCs são heterogêneas com população de células mieloides (granulócitos, macrófagos e células dendríticas), que estão em estágio inicial de desenvolvimento e têm capacidade de supressão imune.(27)
Em indivíduos saudáveis, na medula óssea, as células hematopoiéticas se diferenciam em células comuns de progenitores mieloides e, em seguida, em células mieloides imaturas (CMI). Em condições fisiológicas, as CMI migram para diferentes órgãos periféricos, nos quais se diferenciam em células dendríticas, macrófagos ou granulócitos. No entanto, os fatores produzidos no microambiente do câncer, várias doenças infecciosas, sepse, trauma, transplante de medula óssea ou algumas doenças autoimunes promovem o acúmulo de CMI nesses locais, impedem sua diferenciação e induzem sua ativação. Nesse contexto, tais células são denominadas MDSCs. Em indivíduos saudáveis, CMI compreendem aproximadamente 0,5% das células mononucleares do sangue periférico.(28)
A maioria dos estudos mostra que as funções imunossupressoras das MDSC requerem contato direto com as células, o que sugere que elas atuem tanto por meio dos receptores da superfície das células T, como o RCT, quanto pela liberação de mediadores solúveis de curta duração. Os principais mecanismos envolvidos na supressão mediada por MDSC da função das células T são por arginase (codificado por ARG1), óxido nítrico sintase induzida (iNOS, também conhecido como NOS2), aumento na produção de óxido nítrico (NO) e espécies reativas de oxigênio (ROS).(28)
As MDSCs podem desempenhar papel importante em algumas das principais morbidades associadas ao envelhecimento, como infecções, câncer e doenças autoimunes. Verschoor et al., analisaram as MDSCs em células mononucleares de sangue periférico de adultos (19 a 59 anos), idosos (61 a 76 anos) e idosos frágeis (67 a 99 anos). Eles encontraram aumento significativo no número de MDSC em idosos e idosos frágeis, em comparação com adultos jovens saudáveis. Além disso, 23 doadores idosos e idosos frágeis que possuíam um histórico de câncer (mama, pulmão, próstata, pele e cólon) apresentaram números significativamente maiores de MDSC, embora estivessem em remissão parcial ou completa.(7)
Não é clara a função das MDSCs, tanto no estado fisiológico, ou seja, em indivíduos jovens e saudáveis, quanto no envelhecimento. A elevação relacionada à idade na frequência de MDSC pode contribuir para o aumento da incidência das doenças mencionadas, que estão correlacionadas com a idade, ou ser um fator protetor, como em doenças autoimunes. Uma investigação mais aprofundada sobre as consequências funcionais do acúmulo no sangue periférico de MDSC proporcionará um prognóstico das patologias relacionadas à idade, podendo ser utilizado como biomarcador.(7)
Conhecendo cada um dos mecanismos originados pela remodelação do sistema imune com o envelhecimento, há possibilidade de utilização das células discutidas no presente trabalho (células T e células mieloides supressoras) como marcadores precoces e pouco invasivos de doenças associadas ao envelhecimento, com o intuito de minimizar as limitações de imunosenescência e garantir um melhor tratamento da população idosa vulnerável. Assim, conhecer com mais detalhes o sistema imune em longevos pode direcionar políticas preventivas e/ou de intervenção.