versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.36 no.4 Rio de Janeiro 2020 Epub 06-Abr-2020
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00055220
O avanço do novo coronavírus, denominado SARS-CoV-2, sobre os países tem gerado a interrupção das atividades cotidianas da população, devido à necessidade de isolamento social para frear o avanço da doença, que em menos de 4 meses já expandiu para 190 países, incluindo o Brasil 1. Os principais sinais e sintomas provocados pelo vírus incluem febre, tosse e dificuldade para respirar 2. Sintomas gastrointestinais, como diarreia, vômitos e dor abdominal também foram relatados para a COVID-19, assim como nas infecções por outros coronavírus 3. A transmissão da doença costuma ocorrer pelo ar ou pelo contato direto das pessoas e se dá por meio de gotículas de saliva, espirro, tosse e secreções que podem contaminar mãos e superfícies 2.
Como tentativa de frear a propagação do vírus, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e as principais autarquias de saúde no Brasil divulgaram como cuidados: higienizar as mãos, cobrir a boca com o antebraço ou lenço descartável ao tossir e espirrar, evitar aglomerações e manter-se em isolamento domiciliar, por até 14 dias, em caso de sintomas da doença 4. Também é incentivada a manutenção das pessoas em ambientes bem ventilados 5 e que as empresas e instituições públicas considerem a realização de trabalho remoto (home office), reuniões virtuais e cancelamento de viagens.
No Brasil, os esforços neste estágio inicial da epidemia estão voltados para o enfrentamento do SARS-CoV-2, especialmente no sentido de evitar sua propagação 6 e, ao mesmo tempo, possibilitar o atendimento em saúde dos casos graves. Entretanto, outra face que se apresenta é a da segurança alimentar. Itália, Espanha e Portugal, já em quarentena, desenvolveram iniciativas para evitar aglomerações que impactaram a cadeia de alimentos. Nesses países, muitos estabelecimentos comerciais de refeições estão fechados e os supermercados passaram a implantar regras para acesso e aquisição de produtos, a fim de evitar o desabastecimento.
Apesar de estarmos vivenciando os efeitos preliminares da pandemia, a discussão sobre o quadro brasileiro de segurança alimentar e suas interfaces, tendo em vista o que já ocorreu nos países europeus, é de extrema urgência. Inúmeras incertezas perpassam o setor de alimentos, sendo escassas as orientações sobre o tema, seja em nível de produção, distribuição, comercialização ou preparo domiciliar.
O Ministério da Saúde assumiu o protagonismo na divulgação inicial dos cuidados junto à população, embasando-se especialmente nas diretrizes da OMS. Paralelamente, estados e municípios tentam amortecer os desdobramentos da doença emitindo decretos complementares à esfera federal, considerando suas particularidades no que tange a aspectos geográficos, econômicos, sociais, de saúde, dentre outros. Basicamente, a dispersão de aglomerações e o incentivo ao isolamento social, tendo em vista a elevada transmissibilidade do SARS-CoV-2 7, estruturam as ações das Unidades Federativas.
No nível institucional, os estabelecimentos que produzem refeições e que atendem às pessoas sadias, como trabalhadores nas empresas e estudantes (creches, escolas e universidades) tiveram seus serviços reduzidos ou paralisados. Em contrapartida, aqueles que atendem os hospitais e instituições de longa permanência para idosos são desafiados a produzir em maior escala, no primeiro caso, e com mais atenção quanto às questões higiênico-sanitárias pela vulnerabilidade do público, em ambos os casos. O Conselho Federal de Nutricionistas emitiu recomendações sobre as boas práticas para a atuação do nutricionista e do técnico em nutrição e dietética 8, como tentativa de preencher lacunas deixadas pela carência de capilaridade da Vigilância Sanitária no quesito alimentação coletiva em todo país.
Com o intuito de adotar ações que reduzem o risco de paralisação do serviço de abastecimento de alimentos, a Secretaria de Estado de Agricultura, Pecuária, Pesca e Abastecimento do Estado do Rio de Janeiro instituiu, por meio da Portaria PRESI/CEASA-RJ nº 17, no dia 16 de março, o Programa Extraordinário de Prevenção à Contaminação. Essa ação estabelece a necessidade de adesão ao programa e notificação de todas as empresas que direta ou indiretamente prestam serviços às Centrais de Abastecimento, especialmente as entidades que produzem e fornecem gêneros alimentícios e as que comercializam, prestam serviços e utilizam a central. Dentre as medidas estabelecidas destacamos: evitar contato pessoal entre os colaboradores, dando preferência ao uso de tecnologias para a comunicação; realizar as refeições na própria estação de trabalho; restringir aos colaboradores a presença na sede e notificar os casos suspeitos 9.
O Distrito Federal, no âmbito dos serviços de alimentação, instituiu no dia 14 de março o espaçamento de dois metros entre as mesas 10, já o Rio de Janeiro, por meio do Decreto nº 46.973, de 16 de março, restringiu a capacidade de lotação dos estabelecimentos para 30%, sendo mantida a normalidade dos serviços de entrega e de retirada das refeições no próprio local 11. Constata-se que na medida em que o número de casos de COVID-19 aumenta, novas estratégias são implantadas, mas a velocidade destas mudanças não é compatível com o avanço da doença. São Paulo, a exemplo disso, publicou, num intervalo de dez dias, seis decretos 12, além de reconhecer estado de calamidade pública, adotando medidas temporárias e emergenciais de prevenção de contágio pelo vírus.
As normativas publicadas até o dia 23 de março catalisaram o fechamento de muitos estabelecimentos de refeições coletivas e a migração de outros tantos para os serviços de take out/away e delivery. Essa adaptação dos serviços teve como foco principal a sobrevivência desse setor da economia no momento de crise. As empresas buscam manter os custos fixos, como salários de funcionários e aluguéis, bem como otimizar os custos variáveis. Essa adaptação, no entanto, pode ser insuficiente para conter a previsão de corte de 3 milhões de vagas de emprego no setor pelos próximos 40 dias, segundo a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes 13. A mesma está sensível ao problema e tem intermediado negociações com o governo, com empresas do ramo de entrega de refeições, cujo pedido é feito pela Internet 14, além de publicar orientações aos empresários em relação aos cuidados de higiene no delivery15. Se por um lado a entrega em domicílio é uma solução viável para minimizar a crise do setor nos grandes centros urbanos, por outro, considerando as diferenças socioeconômicas e territoriais brasileiras, sabe-se que essa tecnologia não está acessível a toda população. É importante ressaltar que a precarização do trabalho, que vem se cristalizando nos últimos anos, e que inclui as atividades realizadas por meio das plataformas virtuais, aumenta a vulnerabilidade dos entregadores e os coloca na linha de frente de exposição ao SARS-CoV-2.
Quem não tem acesso à estratégia de delivery e, também, em função das medidas de isolamento social, prepara suas refeições em casa. Para tanto, essas pessoas precisam adquirir gêneros alimentícios, itens de cuidados pessoais e de limpeza, mas a ida ao supermercado torna-se um fator de risco quando este não está preparado para atender a demanda emergente. Atenta a esse movimento, a Associação Brasileira de Supermercados lançou uma cartilha 16 divulgando estratégias para minimizar o risco de contágio, na qual destaca a necessidade de higienização de botões para a emissão do tíquete de estacionamento; carrinhos e cestas de compra; pontos de grande contato como maçanetas, corrimãos; terminais de pagamento; caixas eletrônicos e elevadores. Ainda, reforça que devem ficar disponíveis ao público suportes com álcool em gel na entrada da loja e de sabonete e papel toalha nos banheiros. Grandes marcas do segmento supermercadista também se valem de orientações quanto ao acesso às lojas, limitando o número de clientes no interior do estabelecimento e separando horários para os idosos.
A despeito da (des)organização das informações, as mesmas não chegam aos funcionários dos supermercados e aos consumidores como deveriam. Imagens veiculadas nas mídias sociais mostram situações de caos nesses espaços: trabalhadores sem equipamento de proteção individual, seja por dificuldade dos empresários sistematizarem a rotina imposta pela pandemia, ou por completo desconhecimento dos cuidados necessários; aglomeração de pessoas e aquisição de produtos em excesso. Essas situações podem colapsar toda a estrutura de contenção do vírus, promovendo o desabastecimento precoce do segmento.
Outra questão, ligada ao acesso e preparo de refeições, é a possibilidade de contaminação mediante o contato com superfícies inanimadas. Pesquisas revelam que plástico, metal, vidro e papel podem ser veículos de contaminação por coronavírus 17,18. Dessa forma, embalagens de alimentos devem ser higienizadas com água e sabão, ou aplicar álcool 70% ou solução de hipoclorito de sódio 0,1% 18, conforme disponibilidade no domicílio. Em relação aos alimentos, o uso das boas práticas de higiene já consagradas é necessário, isto porque considerando-se a distribuição dos surtos de doenças de origem alimentar, observa-se que o maior percentual acontece nas residências 19. Os alimentos devem passar pelo processo de cocção adequada (atingindo 70ºC em todas as suas partes), e aqueles consumidos crus devem ser previamente lavados e sanitizados 8 com solução de hipoclorito de sódio 0,1% 18 e, posteriormente, enxaguados com água potável. Ressalta-se que a manipulação de objetos, como o celular, no momento da refeição, pode trazer riscos de contaminação durante a ingestão dos alimentos 20. Um aspecto importante ainda não mencionado nas orientações até então publicadas, diz respeito à reutilização de sacolas de supermercados para transportar alimentos prontos para o consumo. Essa prática deve ser evitada, uma vez que são veículos de contaminação 21.
Dada a carência de informações sobre os cuidados durante a higienização, profissionais de algumas universidades públicas estão gerando informes que são divulgados em mídias sociais para o esclarecimento da população. Um dos materiais se refere a orientações sobre o uso de substâncias sanitizantes para a prevenção da COVID-19, com base em um recente trabalho sobre coronavírus 22. Um outro material publicado trata de uma cartilha sobre os cuidados nutricionais para o enfrentamento do SARS-CoV-2 23. Embasada no Guia Alimentar para a População Brasileira, seus leitores encontram, em uma linguagem simples, orientações que vão desde cuidados de higiene pessoal, dos alimentos e do ambiente de preparo das refeições à preferência por alimentos in natura aos processados e ultraprocessados. O documento também destaca a importância da avaliação crítica das informações, mitos e publicidade veiculados pelas mídias sociais, que por vezes trazem soluções “milagrosas”, sem respaldo científico.
A Associação da Indústria de Alimentos dos Estados Unidos 24 publicou dois documentos que trazem recomendações aos proprietários de empresas, servindo de suporte para a orientação de seus funcionários sobre higiene ambiental e pessoal. Destaque é dado à necessidade de capacitação dos colaboradores sobre limpeza e desinfecção adequada das superfícies, uso de equipamentos de proteção individual e dos produtos de higienização, bem como os riscos envolvidos na utilização destes. Ainda, ressalta a necessidade de treinamento quanto aos sintomas da COVID-19 e orientação em caso de contaminação.
A atenção dada pela indústria à doença acontece porque, em situações de crise, a demanda por produtos estocáveis tende a aumentar, o que exige grande planejamento logístico. A população, como forma de se proteger de uma possível escassez, passa a adquirir mais alimentos processados e ultraprocessados, uma vez que estes têm menor perecibilidade, são práticos, de fácil acesso e, por vezes, com menor preço quando comparados aos alimentos frescos. Todavia, o acesso à alimentação equilibrada é imprescindível para o enfrentamento da doença. A segurança alimentar deve ser considerada para além do aspecto higiênico-sanitário.
A tendência de recessão econômica global atinge a todos, mas agrava ainda mais a saúde de grupos populacionais em vulnerabilidade socioeconômica, principalmente aqueles que residem em áreas de risco e que compõem a massa de desempregados ou de subempregados no Brasil. Dois grandes eixos precisam ser considerados para essa população:
(i) Viver em áreas de risco como aglomerados subnormais, regiões com baixa cobertura de água e esgoto, dentre outros fatores, dificulta a adoção das medidas de higiene individual e coletiva instituídas para o controle da COVID-19. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística revela que apenas 38,2% dos municípios contavam, em 2017, com uma Política Municipal de Saneamento Básico. A comparação das regiões brasileiras revela disparidades: somente 18,6% dos municípios do Nordeste relataram ter uma política de saneamento, em detrimento de 63,7% dos municípios do Sul 25. Como resultado, no Brasil, a média de atendimento total com rede de abastecimento de água foi de 83,6%, em 2018, já o atendimento total com rede de esgotos foi de 53,2% 26;
(ii) As medidas de isolamento domiciliar já estão repercutindo na renda de trabalhadores informais e, em curtíssimo prazo, impactará os assalariados pelo risco de demissão e/ou redução da jornada de trabalho, com consequente diminuição dos seus rendimentos. A fragilização dos vínculos empregatícios já estava em percurso por causa do contexto da crise econômica atual, mas está sendo exacerbada pela pandemia. Nesse sentido, o número de pessoas invisíveis às políticas sociais, especialmente a população em situação de rua, tende a aumentar, no entanto, as ações que já não concretizam o direito à saúde 27 precisarão ser repensadas como forma de proteção a toda sociedade contra o novo coronavírus.
A desarticulação e o enfraquecimento de instâncias importantes para o diálogo sobre segurança alimentar e nutricional, como o Conselho Nacional de Segurança Alimentar, recentemente extinto, demonstra o quão desafiador é o caminho que estamos a percorrer. A condição de insegurança alimentar já instalada será possivelmente acelerada pelo SARS-CoV-2. Nesse sentido, é necessário reavaliar as medidas que concedem mais de 70% do crédito para o financiamento da produção rural à agricultura patronal, direcionada à produção de commodities, e voltar o olhar para a agricultura familiar, que é mais bem distribuída geograficamente (possibilita o abastecimento local), produz alimentos diversificados, ocupa mais de 80% dos trabalhadores rurais e faz uso de práticas produtivas mais sustentáveis 28. Redes alimentares alternativas 29 podem otimizar o acesso a alimentos frescos e saudáveis em tempos de pandemia. Nos documentos consultados não foi mencionada a possibilidade de ajustes de ambientes abertos quanto à comercialização de alimentos, o que sobrecarrega os supermercados e fragiliza ainda mais o sistema agroalimentar.
Até o momento, o que se percebe é uma desarticulação entre as esferas de poder em relação à tomada de decisões. Fundações, conselhos, universidades públicas e associações têm produzido materiais educativos, sendo desconhecido o alcance dos mesmos. O cenário é complexo, dinâmico e exigirá do poder público, da iniciativa privada e da população ações alinhadas para o enfrentamento da COVID-19 sem desconsiderar a insegurança alimentar nas suas várias dimensões. É imprescindível que as medidas de mitigação contra a propagação do SARS-CoV-2 sejam repensadas nos próximos dias. Destacamos que este documento fez um apanhado de informações até o dia 23 de março de 2020.