versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.9 no.2 São Paulo abr./jun. 2011
http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082011ao2003
A doença falciforme é uma das doenças hereditárias mais prevalentes no mundo. Segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS), a incidência mundial das hemoglobinopatias é de aproximadamente 4,5%(1). A distribuição do gene S no Brasil é bastante heterogênea e depende basicamente da miscigenação da população brasileira. No Brasil, a prevalência de heterozigotos para hemoglobina S é maior nas regiões Norte e Nordeste(1).
Segundo dado do Ministério da Saúde do Brasil, estima-se que existam cerca de 7 milhões de portadores do traço falciforme e que a incidência anual de nascidos vivos com traço falciforme seja de 200.000(1). Em relação à doença falciforme, o número estimado de brasileiros com anemia falciforme está entre 25 mil e 30 mil pessoas, e a incidência de casos novos por ano é estimada em próxima de 3.500(1).
A hemoglobina S é formada pela substituição de uma timina por uma adenina, no sexto códon do gene beta, levando à inserção de valina ao invés de glutamina, na posição seis da cadeia beta, dando origem à hemoglobinopatia SS, também chamada de anemia falciforme. Essa pequena mudança na estrutura da cadeia é responsável por profundas alterações na estabilidade da molécula e em sua solubilidade. Tal mudança é capaz de causar polimerização das cadeias de hemoglobina quando ocorre sua desoxigenação(2,3).
Na década de 1930, foi reconhecido o papel das transfusões sanguíneas no tratamento das crises de dor e manejo dos fenômenos vaso-oclusivos(3,4). A utilização de transfusões sanguíneas tem tido importância no tratamento de pacientes com acidente vascular cerebral e profilaxia de novos eventos isquêmicos(4,5).
Os programas de transfusões sanguíneas crônicas estão se tornando cada vez mais comuns em nosso meio por dois motivos principais: a infusão de eritrócitos aumenta a capacidade de carregamento de oxigênio e diminui a hipóxia tecidual(5,6).
As complicações do tratamento com transfusões crônicas incluem o risco de infecções por agentes virais e bacterianos, a sobrecarga de ferro e a aloimunização eritrocitária, cuja frequência pode variar de 2,5 a 76% em certos centros(6,7).
A aloimunização limita a disponibilidade de concentrados de hemácias compatíveis para futuras transfusões, além de ser risco de hemólise tardia e de quadros graves de hiper-hemólise. A aloimunização está relacionada aos seguintes fatores: idade do paciente, número de transfusões recebidas, diferenças antigênicas entre pacientes e doadores(8–10).
Os antígenos mais frequentemente envolvidos na aloimunização são os antígenos dos grupos Rh, Kell, Kidd, Duffy, Lewis e MNS(9,11).
Avaliar e incidência de aloimunização eritrocitária em pacientes com doença falciforme em acompanhamento em um único centro na cidade de São Paulo, a incidência de autoanticorpos e o perfil fenotípico dos pacientes para os seguintes grupos de antígenos eritrocitários: Rh, Kell, Kidd, Duffy e MNS.
Entre os anos de 2007 e 2008, foram identificados 57 pacientes com diagnóstico de doença falciforme em acompanhamento no Ambulatório de Anemias da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São de Paulo.
Foram critérios de inclusão: diagnóstico de doença falciforme, com os fenótipos Hb SS, Hb SC, Hb Sβ+ thal, Hb Sβ0, Hb Sα thal, sendo todos os diagnósticos confirmados com exame de eletroforese de hemoglobina por imunoeletroforese; idade superior a 14 anos; e assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido. Os dados clínicos foram coletados por meio de questionário realizado com o próprio paciente ou com responsável legal. Foi critério de exclusão ter recebido transfusão sanguínea até 90 dias antes da inclusão no estudo.
Todo o material coletado foi enviado para o laboratório de imuno-hematologia do Banco de Sangue da Santa Casa de São Paulo, sendo realizada tipagem ABO e Rh, além de pesquisa de aloanticorpos contra antígenos eritrocitários, segundo protocolos técnicos padrão do banco de sangue.
Nos casos em que se observou a presença de anticorpos, foi realizada sua identificação por meio de reação de painel de hemácias marcadas, usando os métodos de aglutinação em coluna e de centrifugação em gel (ID-Diapanel e ID-Diapanel-P, DiaMed AG)(12,13).
Após a identificação, foi realizada eluição dos anticorpos e, em seguida, a fenotipagem para os seguintes sistemas sanguíneos: Rh, Kell, Kidd, Duffy e MNS, conforme protocolo padrão do banco de sangue.
A análise estatística para análises de variáveis de associação foi feita pelos testes do χ2 e de Mann-Whitney. Todos os testes foram realizados com o software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) 15.
Dos 57 pacientes avaliados inicialmente, 4 pacientes não puderam ser fenotipados, pois apresentavam dupla população de antígenos, sendo excluídos da pesquisa.
A amostra final foi constituída por 53 pacientes, sendo 30 mulheres (56,6%). A mediana de idade foi de 30 anos. Quanto à etnia, 44 pacientes eram negros (83%) e 9 brancos (17%). Em relação à escolaridade, 17 pacientes (32,1%) apresentavam apenas o ensino fundamental, 27 (50,9%) pacientes estudaram até o ensino médio e apenas 7 pacientes (13,2%) estudaram até o ensino superior (Tabela 1).
Tabela 1 Perfil epidemiológico dos pacientes portadores de doença falciforme
Perfil | Frequência |
---|---|
Idade | Mínima: 16 anos |
Máxima: 66 anos | |
Mediana: 25 anos | |
Cor | Brancos: 9 |
Negros: 42 | |
Escolaridade | Fundamental: 17 |
Médio: 29 | |
Superior: 7 |
Fonte: Ambulatório de Anemias da Irmandade Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.
Em relação ao diagnóstico de doença de base, 45 pacientes eram SS (84,9%), três pacientes eram SC (5,7%), três pacientes eram Sβ+ (5,7%), foi encontrado apenas 1 paciente com os diagnósticos Sβ-thal (1,9%) e Sα/thal (1,9%) (Figura 1).
Fonte: Ambulatório de Anemias da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.
Figura 1 Fenótipo dos pacientes com doença falciforme
Quanto ao número de transfusões recebidas ao longo da vida, os resultados podem ser vistos na tabela 2. Dos pacientes que receberam transfusões sanguíneas, 9 (17%) estavam em regime de transfusão contínua.
Tabela 2 Número estimado de transfusões sanguíneas em pacientes com doença falciforme
Número de transfusões | Frequência (n) | Percentual (%) | Percentual cumulativo (%) |
---|---|---|---|
0 a 5 | 14 | 26,4 | 26,4 |
6 a 10 | 4 | 7,5 | 34,0 |
11 a 20 | 5 | 9,4 | 43,4 |
21 a 30 | 4 | 7,5 | 50,9 |
> 30 | 26 | 49,1 | 100 |
Total | 53 | 53 | 100 |
Fonte: Ambulatório de Anemia Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.
A presença de anticorpos irregulares foi positiva em 12 pacientes (22,6%) e negativa em 41 (77,4%). A presença de autoanticorpos foi positiva em seis (11,3%) pacientes.
Quanto à tipagem sanguínea para grupo ABO e Rh, os resultados podem ser visualizados nas tabelas 3 e 4, respectivamente.
Tabela 3 Tipagem sanguínea para grupos ABO dos pacientes com doença falciforme
Tipo sanguíneo | Frequência (n) | Percentual (%) | Percentual cumulativo (%) |
---|---|---|---|
A | 11 | 20,8 | 20,8 |
AB | 3 | 5,7 | 26,4 |
B | 4 | 7,5 | 34,0 |
O | 35 | 66,0 | 100,0 |
Total | 53 | 100,0 | 100,0 |
Fonte: Ambulatórios de Anemia da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.
Tabela 4 Tipagem sanguínea para grupo Rh do pacientes com doença falciforme
Tipagem Rh | Frequência (n) | Percentual (%) | Percentual (%) cumulativo (%) |
---|---|---|---|
Rh + | 50 | 94 | 94 |
Rh | 3 | 6 | 100 |
Total | 53 | 100 | 100 |
Fonte: Ambulatório de Anemias da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.
A frequência de antígenos eritrocitários pode ser vista na tabela 5 e a frequência do fenótipo Rh acha-se na tabela 6.
Tabela 5 Frequência de antígenos eritrocitários em pacientes com doença falciforme
Grupo sanguíneo | Frequência (n) | Percentual (%) |
---|---|---|
Kell 1 | 6 | 8 |
Kidd A | 37 | 70 |
Kidd B | 33 | 62 |
Duffy A | 18 | 34 |
Duffy B | 23 | 43 |
S | 26 | 49 |
Fonte: Ambulatório de Anemias da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.
Tabela 6 Frequência do fenótipo Rh dos pacientes com doença falciforme
Fenótipo Rh | Frequência (n) | Percentual (%) |
---|---|---|
R1r | 22 | 41,0 |
R0r | 11 | 20,8 |
R1R1 | 4 | 7,5 |
R1R2 | 3 | 5,7 |
rr | 4 | 7,5 |
R2r | 8 | 15,1 |
R2R2 | 1 | 1,9 |
Total | 53 | 100 |
Fonte: Ambulatório de Anemias da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.
A presença de aloanticorpos foi encontrada em 12 (22,6%) pacientes, sendo que 4 pacientes (7%) apresentaram 2 aloanticorpos diferentes e 1 paciente (1,8%) apresentou 4 aloanticorpos diferentes. No total, foram encontrados 15 aloanticorpos diferentes, sendo que, dos 15 aloanticorpos identificados, 33,3% foram contra antígenos do grupo Rhesus e 26,6% contra antígeno do grupo Kell. A especificidade dos aloanticorpos encontrados está registrada na tabela 7.
Tabela 7 Aloanticorpos específicos encontrados em 12 pacientes com doença falciforme
Anticorpos eritrocitários específicos | Frequência (n) | Percentual (%) | Percentual cumulativo (%) |
---|---|---|---|
Anti-E | 1 | 6,6 | 65 |
Anti-K | 4 | 26,6 | 32 |
Anti-Fyª | 1 | 6,6 | 38 |
Anti-Jkb | 1 | 6,6 | 44 |
Anti-C | 3 | 20 | 64 |
Anti-Diego | 3 | 20 | 84 |
Anti-D | 1 | 6,6 | 90 |
Anti-LutA | 1 | 6,6 | 96 |
Total | 15 | 100 | 100 |
Fonte: Ambulatório de Anemias da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.
O risco de aloimunização em relação a idade, sexo, genótipo, número de transfusões e número de transfusões nos últimos 2 anos não foi estatisticamente significante, mas mostrou uma tendência de maior risco de aloimunização para pacientes com idade superior a 30 anos (p < 0,658). Em relação ao sexo, não houve diferença quanto ao risco de aloimunização, porém mulheres com número superior a três gestações apresentaram forte tendência a aloimunização (p < 0,12).
Em relação ao número de transfusões, observou-se que o risco para pacientes com número de transfusões superior a cinco ao longo da vida tende a ser maior do que para pacientes que receberam até cinco transfusões (p < 0,106); quando comparados os pacientes que receberam mais de 3 transfusões nos últimos dois anos aos pacientes que receberam até 3 transfusões, o risco de aloimunização é estatisticamente significante (p < 0,028) (Figuras 2 e 3).
A frequência de aloimunização encontrada no estudo mostrou-se compatível com os dados de literatura. Vários estudos apresentam taxas que oscilam de 2,6 até 47%(9–11). Os estudos que apresentam as menores taxas de aloimunização incluem pacientes predominantemente da faixa pediátrica. No Brasil, são referidas taxas de aloimunização que variam de 3,2 a 20,8%(11,12). Novamente, os trabalhos com menores taxas de aloimunização foram realizados predominantemente com crianças abaixo de 15 anos de idade; neste estudo, nenhum paciente apresentava menos de 16 anos de idade, o que pode mostrar diferença no risco de aloimunização para pacientes mais velhos(9–11).
A maior frequência de aloimunização encontrada neste estudo, em comparação aos outros estudos brasileiros, pode ter ocorrido devido ao fato que aqui o método de identificação de anticorpos utilizado foi a centrifugação em tubo e em gel, aumentando a sensibilidade diagnóstica em relação aos outros estudos que utilizaram apenas metodologia de centrifugação em tubo(12,13).
Contudo, no presente estudo, as taxas de aloimunização encontradas foram menores que em estudos estrangeiros, o que pode refletir maior compatibilidade de fenótipo entre doadores de sangue e pacientes nesta população. Outros estudos são necessários para confirmar essa hipótese, pois há apenas um estudo que compara o fenótipo de doadores e receptores de transfusão de sangue com doença falciforme no Brasil(10).
A especificidade dos anticorpos encontrados neste estudo foi muito semelhante a de outros estudos, devido à alta imunogenicidade dos antígenos Rh e Kell(9,13,14).
Embora a aloimunização seja descrita como mais prevalente em mulheres, no presente estudo, o sexo não foi considerado um fator de risco, seguindo a tendência de outros estudos nacionais(14,15).
Assim como em outros estudos, pacientes com idade mais avançada mostraram tendência de maior risco de aloimunização, porém sem significância estatística. Maior resposta imunológica aos antígenos, maior número de transfusões e a presença de gestações prévias são alguns fatores que podem justificar maior taxa de aloimunização em adultos.
No presente estudo, o risco de aloimunização foi associado ao número de transfusões sanguíneas, o que foi concordante com a literatura(12,14-16). O risco de aloimunização para os pacientes que receberam mais de 30 transfusões foi estatisticamente maior do que pacientes que receberam até 5 transfusões. Pacientes que receberam mais do que 3 transfusões nos últimos 2 anos apresentaram risco de aloimunização estatisticamente significante maior do que pacientes que receberam até 3 unidades de hemácias nos últimos 2 anos. Esses dados estão de acordo com a literatura e são devidos, basicamente, à maior exposição dos pacientes transfundidos aos antígenos eritrocitários.
Ao contrário de outros países em que a raça foi um importante fator de risco de aloimunização, nesse estudo tal fator não foi preponderante, bem como no nosso meio não houve discrepância fenotípica entre pacientes e doadores de sangue, provavelmente devido à maior miscigenação de nossa população.
Existem diferenças importantes na expressão do complexo Rh entre negros e caucasianos, sendo que in divíduos negros são mais propensos a serem D positivo em comparação aos caucasianos(17). No nosso estudo, a maioria dos pacientes foi D positivo, sendo R1r e R2r os fenótipos Rh mais prevalentes.
Foi determinada a prevalência de aloimunização e de pacientes com autoanticorpos em indivíduos com anemia falciforme seguidos no Ambulatório de Anemias da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São de Paulo. O risco de aloimunização foi maior em pacientes que receberam mais do que 3 unidades de hemácias nos últimos 2 anos. Os aloanticorpos mais prevalentes foram anti-Kell e anti-C.
O aparecimento de aloimunização em pacientes com doença falciforme que recebem transfusões sanguíneas é um fator que pode ser importante obstáculo à sua terapêutica, dificultando o tratamento de complicações graves, como a síndrome torácica aguda e o acidente vascular cerebral. Medidas para prevenir a aloimunização devem ser tomadas pelos bancos de sangue.