versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.9 no.2 São Paulo abr./jun. 2011
http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082011ao1777
Um dos riscos de transfusão sanguínea é a formação de anticorpos contra um ou mais antígeno eritrocitário (RBC) que resulta das disparidades genéticas entre doador e receptor(1). O risco depende da exposição do receptor ao antígeno estranho e de sua imunogenicidade(2), definida como a capacidade de um dado antígeno de estimular a produção de anticorpos em um paciente que não tem o antígeno(3). A reação ou não do sistema imunológico do receptor depende de genética ou dos fatores adquiridos relacionados ao paciente, dose, número e frequência de transfusões(4–6). Aloanticorpos eritrocitários clinicamente significantes se desenvolvem em mais de 30% dos pacientes que recebem múltiplas transfusões, o que pode representar graves problemas no caso de terapia transfusional de longa duração. Vários autores descobriram que a aloimunização eritrocitária ocorre principalmente após as primeiras transfusões(7,8). O conhecimento das condições clínicas que predispõem à aloimunização é importante por dois motivos: ele pode influenciar o tratamento de um paciente e pode levar a uma melhor compreensão da etiologia da reação transfusional(9).
Quando são detectados anticorpos não-ABO clinicamente significantes no plasma de pacientes que requerem transfusões de hemácias, os serviços de transfusão têm de encontrar e administrar eritrócitos sem os antígenos correspondentes. Assim, em medicina transfusional, muito tempo e esforço são gastos na detecção e na identificação de anticorpos de grupos sanguíneos. Além de ABO, os anticorpos com maior importância clínica são aqueles nos sistemas de grupos sanguíneos Rh, Kell, Duffy e Kidd(10).
Quando desaparecem os anticorpos de um grupo sanguíneo não-ABO, os pacientes correm risco de receber, por engano, transfusões de hemácias não compatíveis e desenvolver reações hemolíticas transfusionais tardias (RHTTs). As RHTTs são provavelmente o tipo de reação transfusional menos reconhecido e menos relatado, em parte por causa de sua dissociação temporal da transfusão causal(11).
A prevalência de aloanticorpos de grupos sanguíneos foi descrita em várias populações de estudo, incluindo pacientes confinados ao hospital, pacientes com distúrbios hematológicos que exigem terapia transfusional crônica e doadores de sangue(9,12).
Giblett calculou a imunogenicidade relativa de vários antígenos eritrocitários em comparação ao antígeno K. O autor comparou a frequência com que certos anticorpos são encontrados com a probabilidade de exposição calculada. Com base em seus cálculos, a probabilidade relativa de formação de um grupo sanguíneo não-D é de K(0,05) > c(0,0205) > E(0,0169) > Fya(0,0023) > Jka(0,0007)(3).
Este estudo retrospectivo relata a prevalência e a taxa de aloimunização em pacientes politransfundidos no Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE), em São Paulo (SP).
Determinar a incidência e a taxa de aloimunização eritrocitária em pacientes politransfundidos.
Os prontuários de todos os pacientes (n = 12.904) que receberam unidades de hemácias foram examinados retrospectivamente, por meio de busca no banco de dados do HIAE, um hospital geral com 530 leitos, localizado na cidade de São Paulo (SP), ao longo de 6 anos, de 2003 a 2009.
O paciente politransfundido foi definido como aquele que recebeu pelo menos 6 unidades de hemácias em 3 meses. Selecionaram-se todos os pacientes com autoanticorpos e/ou aloanticorpos eritrocitários. Os dados coletados incluíam idade do paciente, sexo, história de transfusão de hemácias e gravidez, tipagem estendida de eritrócitos e resultados de anticorpos eritrocitários detectados.
As amostras sanguíneas de pacientes submetidos à transfusão sanguínea foram escolhidas quanto a aloanticorpos eritrocitários usando um conjunto de três células selecionado de reagentes eritrocitários para detecção de anticorpos. A técnica para detecção de anticorpos envolveu o uso de 25 μL de soro e de 50 μL de eritrócitos a 0,8% em testes de solução de gel com baixa potencia iônica (DiaMed AG, Cressier, Suíça, e Grifols, Barcelona, Espanha). Sempre que necessária, a identificação de anticorpos foi realizada com painéis comerciais de células testadas por métodos similares ou técnicas adicionais (por exemplo, polietilenoglicol e enzima). Se a especificidade não pudesse ser determinada de maneira clara, a amostra sanguínea era enviada ao nosso laboratório imuno-hematológico de referência para análises adicionais. Os resultados, tanto da triagem de anticorpos quanto da identificação, foram válidos por 72 horas (um episódio de transfusão). Foi realizada prova cruzada completa, incluindo uma fase antiglobulina indireta.
Os dados foram avaliados usando análises estatísticas descritivas por meio de frequências absolutas e porcentagens, e os resultados foram organizados em tabelas.
Durante o período do estudo, foram examinados 12.904 pacientes que haviam recebido 77.049 unidades de hemácias. Destes, 3.044 pertenciam à categoria selecionada de pacientes politransfundidos, 227 (7,5%) dos quais desenvolveram aloanticorpos e/ou autoanticorpos. Encontramos mais aloanticorpos em homens do que em mulheres naquela população, incluindo pacientes que já tinham anticorpos eritrocitários antes de sua primeira transfusão nesse hospital. O risco de aloimunização, definido como o número total de aloanticorpos dividido pelo número total de unidades transfundidas, foi 0,3%. A idade dos pacientes não influenciou na taxa de aloimunização.
A incidência de formação de anticorpos e as especificidades dos anticorpos estão apresentadas na tabela 1. As especificidades prevalentes de anticorpos encontrados naqueles 227 pacientes politransfundidos foram anti-E > anti-D > anti-K > anti-C > anti-Dia > anti-c > anti-Jka > anti-S. Os anticorpos únicos mais prevalentes foram: anti-E (20%), anti-D (12%), anti-K (11%) e anti-C (8%). (Figura 1) Combinações de anticorpos estiveram presentes em 79 (34,8%) pacientes. Quarenta e quatro pacientes (19,4%) tiveram 2 anticorpos; 20 (8,8%) tiveram 3; 6 (2,6%) tiveram 4; 5 (2,2%) tiveram 5; e 4 (1,7%) tiveram mais de 5 anticorpos (Figura 2). As combinações mais frequentes foram encontradas dentro das especificidades do sistema Rh e/ou anti-K e responderam por mais de 20% das combinações de anticorpos (Tabela 2). Quarenta e nove (21,6%) pacientes apresentaram um autoanticorpo IgG isolado ou em combinação com aloanticorpos.
Tabela 1 Especificidade e frequencia de anticorpo em 227 pacientes aloimunizados
Especificidade do anticorpo | Frequência | |
---|---|---|
Número | Percentagem | |
E | 77 | 22,06 |
D | 46 | 13,18 |
K | 41 | 11,75 |
C | 32 | 9,17 |
Dia | 21 | 6,02 |
c | 19 | 5,44 |
Jka | 15 | 4,3 |
S | 11 | 3,15 |
Kpa | 10 | 2,86 |
Cw | 10 | 2,86 |
Lua | 7 | 2 |
Jsa | 6 | 1,72 |
M | 6 | 1,72 |
HI | 6 | 1,72 |
I | 5 | 1,43 |
Fya | 5 | 1,43 |
G | 5 | 1,43 |
P1 | 5 | 1,43 |
Lea | 4 | 1,17 |
e | 3 | 0,86 |
Ytb | 3 | 0,86 |
V | 3 | 0,86 |
Jkb | 2 | 0,57 |
N | 2 | 0,57 |
Cob | 2 | 0,57 |
Goa | 1 | 0,29 |
H | 1 | 0,29 |
f | 1 | 0,29 |
Total | 349 | 100 |
Figura 1 Incidência de hemácias em pacientes com transfusão múltipla no HIAE no período de 2003 a 2009
Tabela 2 Especificidades combinadas de anticorpo encontradas em 28 pacientes
Especificidadedo anticorpo | Pacientes |
---|---|
Anti-E, -Cw | 1 |
Anti-E, -K | 1 |
Anti-E, -Jka | 1 |
Anti-E, -Lea | 1 |
Anti-D, -C | 1 |
Anti-C, -e | 1 |
Anti-C, -Lea | 1 |
Anti-c, -Kpa | 1 |
Anti-D, -C, -E | 2 |
Anti- E, -K, -Lua | 1 |
Anti- E, - Cw, -Dia | 1 |
Anti- e, -K, -Fya | 1 |
Anti-D, -C, -E, -S | 2 |
Anti-E, -c, -Jka, -Fya | 1 |
Anti-D, -C, -E, -Jka | 1 |
Anti-E, -c, -Cw, -Dia | 1 |
Anti-E, -Jkb, -Dia, -Ytb | 1 |
Anti- E, -c, -S, -P1, -Cob | 1 |
Anti- D, -E, -Cw, -Kpa, -Jsa | 1 |
Anti- E, -c, -K, -Kpa, -H | 1 |
Anti- E, -K, -Jka, -S, -Dia | 1 |
Anti-D, -C, -E, -Lea, -Cob | 1 |
Anti-E, -Cw, -K, -Kpa, -Lua, -I | 1 |
Anti-C, -E, -K, -Jka, -S, -Dia | 1 |
Anti-D, -C, -E, -K, -Jka, -V | 1 |
Anti-C, -Kpa, -Jsa, -Dia, -Lua, -Goa, -V | 1 |
Neste estudo retrospectivo, observamos 57 (3,1%) anticorpos para antígenos de baixa incidência (ABI-Ac) isolados ou em combinação e o anti-Dia foi o anticorpo mais prevalente encontrado (Tabela 3). O único ABIAc encontrado foi desenvolvido após a primeira transfusão do paciente.
Tabela 3 Baixa incidência de anticorpo (ABI-Ac) especificidade única ou combinada encontrada em 44 pacientes
Especificidade ABI-Ac | Pacientes | |
---|---|---|
ABI-Ac | Anticorpos associados | |
Cw | 1 | |
Cw | E | 2 |
Cw | E + K | 1 |
Cw | E + c | 1 |
Cw | E + c + Dia | 1 |
Cw | E + Dia + auto IgG | 1 |
Cw | D + E + Kpa + Jsa | 1 |
Cw | E + K + Kpa + Lua + I | 1 |
Cw | c + Jkb + auto IgG | 1 |
Dia | 4 | |
Dia | E | 2 |
Dia | C | 1 |
Dia | G | 1 |
Dia | S | 1 |
Dia | Lua | 1 |
Dia | Fya | 1 |
Dia | E + Kpa | 1 |
Dia | C + S | 1 |
Dia | C + E | 1 |
Dia | E + K + Jka + S | 1 |
Dia | E + Jkb + Ytb + auto IgG | 1 |
Dia | C + E + K + Jka + S | 1 |
Dia | C + Kpa + Jsa + Lua + Goa + V | 1 |
Kpa | c | 1 |
Kpa | K | 1 |
Kpa | E + K | 1 |
Kpa | E + V | 1 |
Kpa | E + K + auto IgG | 1 |
Kpa | E + c + K + H | 1 |
Lua | 3 | |
Lua | E + K + auto IgG | 1 |
Jsa | 1 | |
Jsa | E | 1 |
Jsa | E + K | 1 |
Jsa | E + auto IgG | 1 |
Ytb | 2 |
ABI-Ac: antígenos de baixa incidência.
Este estudo retrospectivo foi conduzido a fim de determinar a incidência de formação de anticorpos após transfusão de hemácias. Demonstramos 349 anticorpos inesperados em 3.044 pacientes caracterizados como politransfundidos.
Nenhuma influência da idade foi demonstrada; entretanto, foi observada maior prevalência de aloimunização entre homens, com uma proporção de 1,5 homens para 1 mulher. A alta prevalência de anticorpos dentro da população masculina foi inesperada, levando em conta que a gravidez como estímulo de aloimunização não seja considerada um fator(1,3,6). Como mencionado, a maioria dos anticorpos detectados nos pacientes masculinos já existia antes, e a maioria dos pacientes apresentava histórico anterior de cirurgia. De todos os pacientes, 7,5% formaram anticorpos após transfusões consecutivas, e 35% daqueles mostraram uma combinação de dois ou mais anticorpos. Anticorpos com o sistema Rh (anti-E, -D, -C) combinados com anti-K foram as especificidades mais comuns encontradas. Anti-E esteve implicado em 16/20 pacientes com múltiplos anticorpos.
Os anticorpos Kidd representaram 5% dos anticorpos encontrados (17 pacientes) e foram mais frequentes que anti-Fya (5 pacientes). Quinze pacientes desenvolveram anti-Jka logo após a transfusão, sugerindo uma rápida resposta imune primária. Em dois pacientes, a presença de anti-Jka foi demonstrada no eluato, indicando que esses indivíduos provavelmente apresentaram hemólise. Heddle et al. estudaram de modo prospectivo a aloimunização após transfusão em 2.082 pacientes e encontraram 32 novas especificidades de anticorpos RH, K, FY, JK ou MNS, dos quais 9 (28%) foram anti-Jka, detectados após um tempo mediano de 4 dias (intervalo de 1 a 94 dias) após a transfusão. Foi encontrado um teste antiglobulina positivo em 31% dos pacientes recentemente aloimunizados. Apenas três pacientes demonstraram hemólise, dos quais um foi um caso anti-Jka(13). Schonewille et al. identificaram 2,8% de anti-Kidd em 1.795 pacientes com 2.257 anticorpos(14).
Esses achados diferem daqueles encontrados por Schonewille et al. a respeito da aloimunização ao antígeno Fya. Foi encontrada uma prevalência de 1% de anti-Fya enquanto esses autores relataram taxa de 7,3% de anti-Duffy em seu estudo(14).
Vinte pacientes (8,8%) desenvolveram múltiplos anticorpos. Vários estudos relatam a presença de múltiplos anticorpos eritrocitários em pacientes transfundidos cronicamente, com risco aumentado em até quatro vezes de múltiplos anticorpos em comparação ao risco geral de formação de anticorpos(15–20).
A alta incidência de aloimunização eritrocitária encontrada por diferentes autores tem levantado dúvida sobre o fato de esses pacientes que são dependentes de transfusão por um longo período, como os com anemia falciforme ou talassemia, devem receber sangue pareado por antígenos diferentes de ABO e D, na tentativa de evitar a formação de aloanticorpos eritrocitários(21–24). A incidência de aloimunização em pacientes que recebem transfusões eritrocitárias extensas com antígenos pareados foi citada como sendo de 0 a 6,4%. O pareamento estendido de antígenos (por exemplo, c, E e K) para prevenção da formação da maioria dos anticorpos eritrocitários em pacientes cronicamente transfundidos tem sido recomendado para populações selecionadas de pacientes. Alguns relatórios que aplicam essa política mostraram uma queda significante na taxa de aloimunização e reações hemolíticas transfusionais tardias(25,26).
Neste estudo, tivemos uma alta incidência de autoanticorpos IgG (22% dos pacientes) isolados ou em combinação com aloanticorpos. Uma paciente do sexo feminino desenvolveu um autoanticorpo eritrocitário após uma transfusão sanguínea alogênica e aloimunização, levando a hemólise imune temporária bystander. Ela apresentava uma história de duas gestações havia muito tempo e sua triagem de anticorpos era negativa. O anti-c foi identificado no seu soro e eluato. Naquela ocasião, ela recebeu mais duas unidades de sangue compatível com seu fenótipo. O teste direto de antiglobulina foi positivo e um autoanticorpo IgG foi identificado no eluato(27). Vichinsky et al. reconheceram um efeito de hemólise bystander em pacientes com hemoglobinopatias, anemia falciforme e talassemia(25).
Cinquenta e sete (3,1%) casos de ABI-Ac, isolado ou em combinação, foram observados. É interessante notar que anti-Dia (6%) foi o anticorpo mais prevalente na nossa população. O antígeno Dia é um antígeno de baixa incidência encontrado predominantemente em povos indígenas e asiáticos. O anti-Dia tem sido implicado em graves reações transfusionais imediatas ou tardias; entretanto, o encontro de sangue compatível nos casos de presença desse anticorpo não é um problema(28). Em 16 pacientes, anti-Dia foi encontrado associado a outros anticorpos. Segundo Schonewille et al, a prevalência de ABI-Ac variou entre 0,3 e 10% e eles não encontraram anti-Dia. Anti-Wra foi o anticorpo encontrado mais frequentemente neste estudo(14).
Pacientes politransfundidos têm alta probabilidade de formar aloanticorpos eritrocitários isolados ou em combinação, autoanticorpos, e anticorpos contra antígenos de baixa incidência, e nossos achados são consistentes com muitos estudos publicados anteriormente. O pareamento estendido para antígenos de RH (C, E, c), K, Fya, e Jka deve ser considerado para esse grupo de pacientes a fim de evitar a aloimunização e reações transfusionais hemolíticas.