versão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.32 no.8 Rio de Janeiro 2016 Epub 08-Ago-2016
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00167914
The study aimed to estimate the incidence of HCV seroconversion in hemodialysis patients in the Brazilian Unified National Health System (SUS). This was a prospective, non-concurrent study using patients' data identified by deterministic and probabilistic record linkage in the SUS information system. The study included 47,079 patients started on hemodialysis between January 1, 2000, and December 31, 2003, followed until seroconversion or conclusion of the study in 2004. Three percent of hemodialysis patients HCV-seroconverted (1.7 per 100 patient-years). Increased risk of HCV seroconversion was associated with age, glomerulonephritis, geographic region, HIV-positivity, and dialysis service. The observed HCV seroconversion rate was similar to that in developed countries, highlighting evidence of transmission among hemodialysis patients.
Keywords: Hepatitis C; Renal Dialysis; Hospital Hemodialysis Units; Incidence
El estudio tuvo como objetivo estimar la incidencia de los factores asociados a la seroconversión para el anti-VHC en pacientes en hemodiálisis dentro del Sistema Único de Salud (SUS). Se trata de un estudio prospectivo, no concurrente, utilizando datos de pacientes identificados por relación determinístico-probabilística en los registros de los sistemas de información del SUS. Se incluyeron a 47.079 pacientes que comenzaron la hemodiálisis durante el período del 1º de enero de 2000 a 31 de diciembre de 2003, seguidos hasta la seroconversión al final del estudio en 2004. En este estudio, un 3% de los pacientes en hemodiálisis presentaron seroconversión para anti-VHC (incidencia de 1,7 seroconversiones por 100 pacientes/año). El mayor riesgo de seroconversión para el anti-VHC fue asociado a la edad, glomerulonefritis; región de residencia, presentar anti-VIH positivo y a los efectos de la unidad de diálisis. En ese estudio, la incidencia observada de seroconversión para anti-VHC fue semejante a la registrada en algunos países desarrollados, destacándose la evidencia de transmisión entre los pacientes en hemodiálisis.
Palabras-clave: Hepatitis C; Diálisis Renal; Unidades de Hemodiálisis en Hospital; Incidencia
A doença renal crônica e a hepatite viral C são importantes problemas de saúde pública em todo o mundo. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 3% da população mundial, ou cerca de 170 milhões de pessoas, estejam infectadas pelo vírus da hepatite C (HCV) 1. No Brasil, entre 1999 e 2011, foram notificados, no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), 82.041 casos confirmados de hepatite C, sendo a maioria deles na Região Sudeste (67,3%) 2. Segundo um inquérito populacional promovido pelo Ministério da Saúde, a soroprevalência de anticorpos anti-HCV foi de 1,38% (IC95%: 1,12-1,64%) 3 nas populações das capitais e do Distrito Federal.
Os pacientes portadores de doença renal crônica terminal e em hemodiálise constituem um dos grupos de risco para infecção pelo HCV. No país, em 0,9% de todos os casos confirmados de hepatite C, a fonte provável de infecção foi a hemodiálise 2. Nesse grupo de pacientes, a transmissão via hemoderivados e transplante de órgãos tornou-se mais difícil após a introdução do teste para a detecção do anticorpo contra o HCV em doadores de sangue e órgãos, no início da década de 1990 4. Além disso, o uso mais disseminado da eritropoetina levou a uma redução do número de hemotransfusões nessa população. Consequentemente, o interesse voltou-se para a discussão de estratégias visando à redução da transmissão do HCV entre os pacientes nos centros de diálise, a qual pode ocorrer por quebra das rotinas de precauções universais 5), (6.
A infecção é usualmente assintomática e, após a exposição ao vírus, ela se cronifica em 55% a 80% dos indivíduos 7. A cirrose hepática e o câncer de fígado são complicações descritas como causas de óbito de pacientes em hemodiálise e com hepatite C crônica 8.
Existe uma variação considerável da incidência de HCV nos pacientes em hemodiálise entre diversos países do mundo e entre os centros de diálise. No Canadá, em 2002, a incidência era de 0,08 por 100 pessoas/ano 9. Em 2004, estudo conduzido na Europa, Japão e Estados Unidos mostrou que a incidência variou de 1,2 a 3,9 por 100 pessoas/ano, com taxas menores na Alemanha e Reino Unido e maiores na Itália 10. Dados nacionais sobre incidência na população brasileira são raros. Em 1995, Cendoroglo Neto et al. 11) registraram incidência de 0,15 por 100 pacientes/ano em um centro de hemodiálise satélite de São Paulo. Santos & Souto 12, em 2007, encontraram taxa de incidência de 4,6 por 1.000 pacientes/mês em seis unidades de diálise de Cuiabá, Mato Grosso 12.
A prevalência de anti-HCV em hemodialíticos é maior do que na da população geral 13), (14. No Brasil, as taxas de prevalência de HCV em pacientes submetidos a hemodiálise variaram consideravelmente, de 8,4% a 64,7%, conforme região e unidades de hemodiálise pesquisadas 5), (13), (14), (15), (16.
Tendo em vista as consequências da infecção pelo HCV em hemodialíticos e a escassez de dados nacionais sobre a incidência de hepatite C nessa população, o objetivo deste estudo foi estimar a incidência e avaliar os fatores associados à soroconversão para o anti-HCV, em pacientes em hemodiálise no Brasil, a partir de dados de fontes secundárias.
Trata-se de estudo do tipo observacional prospectivo não concorrente que teve como fonte de dados a Base Nacional de Terapia Renal Substitutiva. A base foi construída a partir de relacionamento determinístico-probabilístico de registros do subsistema de Autorização de Procedimentos de Alta Complexidade/Custo (APAC) do Sistema de Informações Ambulatoriais do SUS (SIA-SUS), do Sistema de Informações Hospitalares (SIH) e do Sistema de Informação de Mortalidade (SIM), com o objetivo de habilitar o seguimento de uma coorte de pacientes em hemodiálise no Brasil 17), (18. A aplicação de técnica de pareamento determinístico-probabilístico permitiu a geração de um cadastro único de pacientes submetidos às terapias renais substitutivas (TRS) no SUS, no período de 2000-2004: Base Nacional de Terapia Renal Substitutiva.
Na presente pesquisa, foram incluídos todos os pacientes registrados na Base Nacional de Terapia Renal Substitutiva maiores de 18 anos, que iniciaram hemodiálise no Brasil entre 1º de janeiro de 2000 e 31 de dezembro de 2003 em 736 centros de hemodiálise distribuídos pelo país e com pelo menos três meses consecutivos de registros de procedimentos à entrada na coorte (69.237 pacientes). Destes pacientes, 8.437 não apresentavam registro de exame anti-HCV (teste imunoenzimático) no trimestre inicial de tratamento, sendo considerados como perdas. Pacientes que foram submetidos a diálise peritoneal em qualquer momento do acompanhamento do estudo foram excluídos da análise (9.499), bem como aqueles que realizaram exame anti-HCV após três meses do início da hemodiálise (3 mil) ou com resultado positivo ao primeiro exame (846 pacientes). Tendo em vista a possibilidade de pacientes iniciarem hemodiálise durante o período de janela imunológica, excluíram-se aqueles que apresentaram soroconversão com menos de quatro meses em hemodiálise (376 pacientes), garantindo que os eventos de interesse ocorressem após o início do estudo 1. Na identificação da unidade inicial de diálise do paciente, adotou-se a primeira unidade na qual o paciente permaneceu por pelo menos três meses consecutivos, não considerando as possíveis mudanças posteriores de unidade. Tal fato deve-se à ausência de um identificador único para cada serviço de saúde àquela época. Os 47.079 pacientes foram acompanhados até dezembro de 2004, assegurando-se tempo mínimo de um ano de seguimento (Figura 1).
Figura 1: Fluxograma apresentando a descrição dos critérios para a definição de pacientes elegíveis, perdas e exclusões.
A variável resposta considerada foi o tempo, em meses, entre o início da hemodiálise e a soroconversão para o anti-HCV. Foram censurados os pacientes com perda do seguimento, óbito ou transplante renal ao final do estudo. A taxa de soroconversão para o anti-HCV foi calculada como o número de conversões por 100 pacientes/ano de observação.
As variáveis explicativas relacionadas ao paciente foram sociodemográficas (sexo, idade e local de residência por região do Brasil) e clínicas (causa primária da doença renal crônica terminal), uso de eritropoetina - EPO, anti-HIV positivo - anticorpo do vírus da imunodeficiência humana, tempo em hemodiálise e uso de hidróxido de ferro). As variáveis relacionadas aos serviços de hemodiálise foram tipo de prestador (público ou privado) e nível hierárquico (hospitalar ou satélite).
A análise descritiva incluiu distribuições de frequência e medidas de tendência central e de variabilidade para as características estudadas. O teste qui-quadrado de Pearson foi utilizado para verificar diferenças de proporções entre as variáveis categóricas, e o teste t de Student, para averiguar as diferenças das médias das variáveis contínuas.
Para estimar a probabilidade acumulada de não soroconversão anti-HCV, aplicou-se o método não paramétrico de Kaplan-Meier. A comparação das curvas correspondentes às categorias das variáveis de exposição foi feita por meio do teste de log-rank. As covariáveis com valor de p menores ou iguais a 0,20 foram incluídas no modelo múltiplo. A estimativa do percentil 98 da função de sobrevivência foi realizada por reamostragem bootstrap do estimador de Kaplan-Meier.
Para a identificação do efeito independente das variáveis explicativas na incidência da soroconversão, utilizou-se o modelo multivariado de riscos proporcionais de Cox (hazard ratio - HR). Para a seleção do modelo final, foi utilizada a estratégia backward, na qual todas as variáveis explicativas significativas na análise univariada são incluídas no modelo inicial, sendo realizado o procedimento de retirada manual daquelas consideradas não significativas, até permanecerem no modelo final somente as variáveis que apresentem coeficientes com valor de p menor que 5%. Foi incluído o efeito aleatório ou fragilidade da unidade de diálise do paciente. Essa inclusão foi realizada sob a suposição de que os pacientes que fazem diálise em uma mesma unidade estão expostos a procedimentos clínicos semelhantes. Distribuição de probabilidade gama foi usada para estimar a variação do efeito aleatório. A suposição da proporcionalidade dos riscos foi verificada por meio da análise gráfica dos resíduos de Schoenfeld. Nessa análise, foram excluídos os pacientes que foram a óbito nos três primeiros meses de hemodiálise (4.090 pacientes).
As análises foram realizadas no software livre R, versão 2.12.1 (The R Foundation for Statistical Computing, Viena, Áustria; http://www.r-project.org), utilizando funções das bibliotecas Care Survival. O Projeto Terapia Renal Substitutiva foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais, Parecer ETIC 397/2004. Foram respeitados os princípios éticos contidos na Resolução no 196 , de 10 de outubro de 1996, estabelecidos pelo Conselho Nacional de Saúde.
A maioria dos pacientes que iniciou hemodiálise no país, entre 2000 e 2003, era do sexo masculino (58%), com idade média de 53,4 anos, residia na Região Sudeste (51,8%), apresentou causa indeterminada de sua doença renal crônica terminal (47,1%), dialisou em centro privado (68,6%) e extra-hospitalar (60,6%). A maioria usou eritropoetina (65,1%) e não recebeu ferro parenteral (78,6%). Uma minoria apresentava marcadores sorológicos para o HBV (1,9%) e HIV (0,6%). A mediana de tempo em hemodiálise foi de 20 meses.
Ao final do estudo, dos 47.079 pacientes, 20.544 (43,6%) foram a óbito, 4.048 (8,6%) realizaram transplante renal, 45.665 (97%) não apresentaram soroconversão para anti-HCV e 1.414 apresentaram soroconversão (3%), o que corresponde a uma incidência de 1,7 soroconversão por 100 pacientes/ano. O tempo mediano até a soroconversão para anti-HCV foi de 14 meses.
Dos 763 centros de diálises analisados, 377 (49,4%) não apresentaram pacientes soroconvertidos para o anti-HCV, 267 (35%) apresentaram de uma a três soroconversões, 69 (9%) apresentaram de quatro a seis soroconversões e 50 unidades (6,6%) apresentaram sete ou mais soroconversões. A Tabela 1 apresenta as características demográficas e clínicas dos pacientes que iniciaram em hemodiálise, segundo o perfil sorológico para anti-HCV.
Tabela 1: Características demográficas, clínicas e das unidades de diálises dos pacientes que iniciaram em hemodiálise entre 1º de janeiro de 2000 e 31 de dezembro de 2003, com e sem soroconversão para anti-HCV. Brasil, 2000-2003.
Os pacientes com soroconversão concentraram-se na faixa de 45 a 64 anos (48,1%) e apresentaram mediana de tempo em hemodiálise de 38 meses. Já a mediana do tempo em hemodiálise para os pacientes que não apresentaram soroconversão foi 19,1 meses. Para 47,1% dos pacientes, a etiologia de doença renal crônica terminal constava como indeterminada; no entanto, uma parcela significativa dos pacientes com soroconversão (31,4%) apresentava hipertensão arterial sistêmica (HAS)/doenças cardiovasculares descritas como causa primária da doença renal.
Maior percentual de pacientes com soroconversão para anti-HCV encontrava-se na Região Sudeste (40,9%) e, em seguida, na Região Sul (32,9%).
Os indivíduos que apresentaram soroconversão para anti-HCV utilizaram mais eritropoetina e ferro endovenoso para tratamento de anemia de maneira estatisticamente significativa (ambos com p = 0,000). Encontrou-se maior proporção de indivíduos com marcadores sorológicos do HIV (p = 0,030) no grupo com soroconversão para anti-HCV, do que entre os com anti-HCV não reator. Observou-se menor proporção de óbitos nos pacientes que apresentaram soroconversão quando comparados com aqueles sem soroconversão (p = 0,000).
Em relação às variáveis relacionadas com o serviço de hemodiálise, foi observada maior proporção de soroconversão para anti-HCV em unidades privadas (p = 0,000).
Na análise das curvas de Kaplan-Meier (Figura 2), observou-se que pacientes com idade entre 45 e 64 anos (p = 0,0095), com HAS/doenças cardiovasculares como causa primária da doença renal crônica terminal (p = 0,000), residentes na Região Sul (p = 0,000), não usuários de eritropoetina (p = 0,000), tratados em serviços públicos de diálise (p = 0,000) e anti-HIV positivo (p = 0,016) apresentaram menor tempo entre a entrada em hemodiálise e a soroconversão para anti-HCV.
Figura 2: Curvas de sobrevida para soroconversão para HCV de pacientes em hemodiálise. Brasil, de 2000-2003, segundo características selecionadas.
A Tabela 2 apresenta a taxa de soroconversão para o anti-HCV, bruta e ajustada, por idade, causa de doença renal crônica terminal, região de residência, anti-HIV positivo e a parte aleatória do efeito das unidades de diálise. Pode-se observar, no modelo final da análise multivariada, que os fatores independentemente associados ao tempo até a soroconversão para o anti-HCV foram os seguintes: ter idade entre 18 e 44 anos e de 45 a 64 anos; apresentar glomerulonefrites como causa básica de doença renal crônica terminal; residir nas regiões Norte ou Sul do país e ser HIV positivo. A unidade de diálise do paciente se mostrou associada à soroconversão para o anti-HCV, indicando variabilidade na probabilidade de ocorrência do evento entre as unidades (variância do efeito aleatório = 1,302).
O presente estudo, realizado com dados populacionais de 47.079 pacientes em terapia de substituição renal atendidos no SUS, aponta que 3% dos pacientes em hemodiálise apresentaram soroconversão para anti-HCV, o que corresponde a uma incidência de 1,7 soroconversão por 100 pacientes/ano. Os fatores independentemente associados positivamente ao tempo até a soroconversão para o anti-HCV foram os seguintes: ter idade entre 18 e 44 anos e de 45 a 64 anos; apresentar glomerulonefrites como causa básica de doença renal crônica terminal; residir nas regiões Norte e Sul do país, apresentar anti-HIV positivo e o efeito da unidade de diálise.
A incidência de soroconversão para anti-HCV em pacientes em terapia renal substitutiva no Brasil foi semelhante à encontrada na Alemanha 10) (ambos os países com 1,7 soroconversão por 100 pacientes/ano) e menor que as registradas em Taiwan 19) (14,6 soroconversões por 100 pacientes/ano), na Itália 20 (6,25 soroconversões por 100 pacientes/ano) e Grécia 21 (6,2 soroconversões por 100 pacientes/ano). No Canadá 9, França 22 e Tunísia 23, foram encontradas incidências anuais de 0,08, 0,4 e 0,5 soroconversão por 100 pacientes/ano, respectivamente. Essa variação das taxas de incidência pode ser explicada, em parte, pelas diferenças regionais no que se refere à prevalência do HCV. Ademais, podem estar relacionadas aos processos assistenciais em cada país, tais como práticas clínicas, métodos diferentes para detecção de casos novos do HCV; regulação da qualidade dos hemoderivados e a observância de diretrizes de precaução universal a fim de reduzir a exposição aos materiais biológicos. O HCV somente é transmitido de forma eficiente através do sangue. A incidência média de soroconversão, após exposição percutânea com sangue sabidamente infectado pelo HCV, é de 1,8% (variando de 0% a 7%) 24. A prevenção da exposição ao sangue ou a outros materiais biológicos é a principal medida para que não ocorra contaminação por patógenos de transmissão sanguínea nos serviços de saúde. A adoção de precauções padronizadas, que são normatizações com o intuito de reduzir a exposição aos materiais biológicos, deve ser adotada na manipulação de artigos médico-hospitalares e na assistência a todos os pacientes. Recomenda-se o uso rotineiro de barreiras de proteção (luvas, óculos de proteção) quando o contato mucocutâneo com sangue ou outros materiais biológicos puder ser previsto. Incluem-se, ainda, as precauções necessárias na manipulação de agulhas ou outros materiais cortantes, para prevenir exposições percutâneas, e os cuidados necessários de desinfecção e esterilização na reutilização de instrumentos próprios de procedimentos invasivos 24.
Foi observado maior risco de soroconversão para anti-HCV em pacientes com idade abaixo de 65 anos. A infecção pelo vírus da hepatite C pode acometer pessoas de qualquer idade. Contudo, no Brasil, a maior proporção de casos confirmados na população geral, entre 1999 e 2011, encontrava-se entre 40 e 59 anos de idade 2. Quanto às glomerulonefrites, não foram encontrados estudos que justificassem menor risco de soroconversão para anti-HCV em pacientes que apresentaram essa patologia como causa da doença renal crônica terminal. Inclusive, há evidências que apontam a hepatite C como uma das causas do desenvolvimento de glomerulonefrites 25.
Observou-se, ainda, maior risco de soroconversão dos pacientes residentes nas regiões Sul e Norte do país. As diferenças na prevalência do HCV nas unidades e no comportamento do paciente, assim como o grau de implementação dos protocolos de controle de infecção, podem variar entre as regiões e explicar esse achado. Dados obtidos do Ministério da Saúde mostram que a Região Sul apresentou uma taxa de detecção de hepatite C de 9,4 por 100 mil habitantes em 2010, superior à média nacional para esse ano (5,4), sendo esta a região do Brasil que apresentou maior taxa de detecção de anti-HCV 2.
Verificou-se que os portadores de HIV apresentaram maior risco de soroconversão para o anti-HCV. De acordo com dados da OMS, aproximadamente 30% das pessoas infectadas pelo vírus da hepatite C também apresentam infecção pelo HIV. Os fatores associados a esta coinfecção seriam uso de drogas, alcoolismo e distúrbios psicológicos e psiquiátricos 26.
As evidências da transmissão do HCV entre pacientes em hemodiálise são sustentadas na literatura pela associação entre prevalência e incidência do vírus em algumas unidades de hemodiálise 10), (27), (28, além da menor incidência deste em pacientes em diálise peritoneal 11 e da homogeneidade dos genótipos encontrados nas unidades de diálise 16), (23. No Brasil, estudo conduzido em seis unidades de diálise na cidade de Cuiabá, entre 2002 e 2005, acompanhou 433 pacientes em hemodiálise e registrou incidência de soroconversão para anti-HCV, a qual variou de 0 até 30,5 casos por 1.000 pacientes/mês 12.
No presente estudo, a inclusão do efeito aleatório da unidade de diálise (fragilidade) mostrou que a unidade de diálise do paciente estava associada à soroconversão para o anti-HCV, indicando variabilidade na probabilidade de ocorrência do evento entre as unidades, ou seja, os pacientes que fazem diálise em uma mesma unidade estão expostos às mesmas práticas do serviço e, portanto, sujeitos a risco maior de soroconversão para o anti-HCV. Observou-se que 377 (49,4%) unidades de diálise não apresentaram paciente soroconvertido; no entanto, 50 (6,6%) delas apresentaram sete ou mais pacientes com soroconversão. Em estudo transversal realizado com 1.261 pacientes em hemodiálise de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, verificou-se que a soroprevalência do anti-HCV foi maior entre pacientes atendidos nas unidades de diálise onde não havia separação dos pacientes positivos para anti-HCV e existia reutilização do dialisador 29. Logo, são necessárias ações para prevenir a transmissão do HCV nas unidades de diálise. Dentre as recomendações internacionais para evitar a transmissão do HCV, está incluída a rigorosa observância às medidas de precaução universais: realizar a desinfecção de superfícies potencialmente infectadas; acondicionar adequadamente o circuito extracorpóreo após o término da sessão; implementar programas de educação continuada voltada para a equipe de saúde, abordando a prevenção da transmissão de infecções e a monitorização periódica do "status sorológico" e das enzimas hepáticas dos pacientes 30.
No Brasil, desde 1996, o Ministério da Saúde tem procurado definir os aspectos técnicos para o bom funcionamento dos centros de diálise, estabelecendo medidas de controle para evitar a transmissão do HCV. Em 2004, a RDC no 154 estabeleceu que todo serviço deverá ter um Programa de Controle de Prevenção de Infecções e Eventos Adversos (PCPIEA), que implemente as estratégias de vigilância epidemiológica e avalie as rotinas relacionadas ao controle das doenças infecciosas 31. Em relação às normas de biossegurança, a RDC no 154 estabelece rotinas sobre o reprocessamento dos capilares, realização de exames sorológicos periódicos e práticas de enfermagem com o objetivo de reduzir o risco de transmissão do HCV dentro da unidade de diálise. O Ministério da Saúde não determina o isolamento dos portadores do anti-HCV, tampouco a utilização de máquinas de diálise exclusivas para esse grupo de pacientes. No entanto, a RDC no 11 , publicada em março de 2014, veda o reuso de linhas arteriais e venosas utilizadas em todos os procedimentos hemodialíticos de paciente com sorologia positiva ou desconhecida para hepatite B, hepatite C (tratados ou não) e HIV 32. A importância das políticas públicas adotadas é ratificada em estudo conduzido entre 1993 e 2002 14, que apontou redução da incidência acumulada de anti-HCV na população em diálise de Goiânia: de 71% em 1993 para 11,7% em 1999.
Um sistema de dados administrativos, cujo propósito é o faturamento e não a pesquisa, geralmente contém informações incompletas, inconsistentes e inexistentes 33. Para esta investigação, apesar das potencialidades da Base Nacional de Terapia Renal Substitutiva, aponta-se a limitação de utilização de dados obtidos há mais de uma década. O período de 2000 a 2003 foi escolhido por apresentar maior consistência e homogeneidade dos dados após mudanças operacionais realizadas no subsistema APAC/SIA-SUS, no ano de 1999 17. Uma limitação adicional refere-se à análise de sobrevivência, uma vez que, não se dispondo da informação sobre o tempo até a soroconversão, não se considerou a censura como intervalar. O tempo até a soroconversão para o anti-HCV foi obtido a partir do tempo observado desde o início da hemodiálise até a data do exame com resultado positivo para o anti-HCV.
Todavia, a relevância da análise dos dados e seu contexto histórico são atemporais, e observações obtidas em um período anterior são importantes para que haja comparação com novos estudos. Em decorrência da utilização desse período de análise, não foi possível verificar as mudanças de unidades de diálise pelos pacientes, pois, até o final de 2004, não havia um identificador único para cada serviço de saúde, o que somente iria acontecer a partir de 2005, com a criação do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES). Apesar das limitações referidas, os sistemas de informação em saúde do SUS podem se constituir em importantes fontes para análises epidemiológicas e econômicas, visto que abrangem todo o território nacional e contêm dados relativos a agravos de notificação, atendimentos ambulatoriais, internações hospitalares e óbitos.
Os resultados apresentados neste estudo, utilizando dados de abrangência nacional, reforçam não só a importância da regulação e do cumprimento das normas vigentes em relação aos parâmetros de qualidade da atenção aos pacientes que necessitam realizar TRS, mas também da adesão aos protocolos e boas práticas de prevenção da transmissão do HCV dentro das unidades de hemodiálise. Reforça, ainda, a necessidade de constante aprimoramento, pelo Ministério da Saúde, das normas de boas práticas de funcionamento para os serviços de diálise, uma vez que ainda não existe vacina eficaz para a infecção por esse vírus. Em adição, deve-se priorizar a ampliação do acesso ao diagnóstico da hepatite C, bem como o referenciamento a serviços especializados para indicação oportuna do tratamento.