versão impressa ISSN 0102-311X
Cad. Saúde Pública vol.30 no.11 Rio de Janeiro nov. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00214813
O perfil de saúde dos indígenas brasileiros evidenciou importantes mudanças ao longo dos anos. Alterações na economia familiar e social, a incorporação de novos hábitos alimentares e costumes predispuseram o aumento dos casos de doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), que por seu potencial nocivo deterioram o estado de saúde e, consequentemente, a qualidade de vida dessas populações 1,2,3,4,5,6,7,8,9,10,11.
A síndrome metabólica é uma DCNT que pode ser definida pela presença concomitante de pelo menos três alterações metabólicas: obesidade central, intolerância à glicose, hipertensão arterial, hipertrigliceridemia ou baixo HDL colesterol 12. Sua relevância clínica está relacionada ao fato de que os indivíduos por ela acometidos apresentam de 1,5 a 2,5 vezes o risco de morte por todas as causas ou por doenças cardiovasculares, quando comparados aos sem a síndrome 13,14. Embora não sejam essenciais para o diagnóstico, outras condições patológicas como a obesidade generalizada, a hiperuricemia, a hipercolesterolemia e o elevado LDLc, são referidos como coadjuvantes ou como agravantes desta condição metabólica.
Mesmo sendo conhecidos os inúmeros riscos e agravos à saúde originados pela síndrome metabólica, poucos estudos sobre esta temática foram realizados com populações indígenas brasileiras. Nas publicações disponíveis são encontradas prevalências variando entre 11% e 65% 7,8,10,11,15,16. Dados que informem sobre a evolução ou incidência dessa patologia, em um mesmo povo indígena brasileiro, ao longo dos anos, não foram localizados até o momento.
Da mesma forma não se dispõe de informações sobre a incidência das doenças relacionadas à síndrome metabólica nos povos indígenas do país; sabe-se apenas que casos de excesso de peso, alterações nos níveis pressóricos, no grau de tolerância à glicose e nas concentrações séricas de lipídeos, raros há décadas, aparecem relatados na literatura com frequência semelhante ou maior do que aquela observada para a população brasileira não indígena 1,4,5,9,10,11,15,17,18,19,20.
Considerando-se as elevadas prevalências de DCNT referidas em população indígenas brasileiras, os agravos e prejuízos à saúde que podem ser originados destas patologias, em especial pela síndrome metabólica, e a escassez de dados científicos sobre esta temática, objetivou-se, neste estudo, estimar a incidência de síndrome metabólica e doenças associadas na população Khisêdjê residente no médio Xingu – Parque Indígena do Xingu, ao longo de dez anos de seguimento.
Tratou-se de estudo epidemiológico do tipo coorte, realizado com base em dois estudos transversais conduzidos entre o povo Khisêdjê, nos anos de 1999‐2000 e 2010‐2011.
Os Suyás ou Khisêdjê, como se autodenominam, são o único povo de língua Jê que habita o Parque Indígena do Xingu. Seguindo o padrão dessa família linguística, suas aldeias são dispostas em um formato circular, com a “casa dos homens” ao centro e as demais ocas voltadas em sua direção. Atualmente eles estão distribuídos em cinco aldeias, sendo a maior Ngôjwêre e as demais Ngôsokô, Roptôtxi, Beira Rio e Terra Indígena Wawi 21. As duas etapas desta investigação foram realizadas na aldeia principal, a Ngôjwêre.
Em 1999‐2000, 86 indivíduos Khisêdjê de ambos os sexos e com idade maior ou igual a 20 anos foram examinados (91,5% do total de elegíveis) 8 e destes, 78 (90,7%) foram reavaliados em 2010‐2011 e, portanto, incluídos neste estudo. Entre os sujeitos não examinados em 2010‐2011 (n=8), seis não foram localizados (possivelmente mudaram de aldeia) e dois estavam ausentes no momento da coleta dos dados.
As rotinas utilizadas para coleta dos dados da população, em 1999‐2000, foram previamente publicadas 8. Resumidamente, os dados antropométricos foram obtidos, em duplicata, por profissionais devidamente capacitados e os exames bioquímicos foram precedidos por jejum de 10 horas. Com exceção da glicemia, que foi medida por teste capilar, todas as demais medidas foram realizadas em amostras de sangue venoso.
De forma semelhante, nos anos de 2010‐2011, os Khisêdjê foram chamados e identificados pelas fichas médicas em uso pela equipe de saúde da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Utilizou-se um formulário padrão para coleta dos dados. A coleta das medidas antropométricas seguiu os procedimentos recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O índice de massa corporal (IMC) foi calculado pela divisão do peso (em quilos) pela altura (em metros) elevada ao quadrado. O excesso de peso foi identificado quando o IMC apresentou valor ≥25,0kg/m222. A presença de obesidade central foi caracterizada segundo os pontos de corte definidos pela OMS (valores do perímetro da cintura ≥80,0cm para mulheres ou ≥94,0cm para homens) 23. Para coleta dessas medidas utilizou-se uma balança portátil eletrônica, marca Líder, modelo P200m (Líder Balanças, Araçatuba, Brasil), com capacidade máxima para 200kg e graduação de 50g; estadiômetro portátil, com plataforma, marca WCS (Cardiomed, Curitiba, Brasil), com escala de 20 a 220cm; e fita métrica de fibra de vidro inelástica, flexível (TBW, China), com escala de 0 a 150cm.
Os exames bioquímicos foram realizados no período matutino, mediante jejum de 12 horas. O material biológico (sangue) foi coletado, processado e acondicionado (freezer ‐20ºC) na aldeia até o momento do transporte para São Paulo. A condução foi feita por via terrestre em freezer portátil para transporte de produto termo sensível (modelo FCW 20 EK; Dometic Medical Systems, Reino Unido). A análise do material foi realizada pelo Laboratório Central do Hospital São Paulo.
As pressões arteriais sistólica (PAS) e diastólica (PAD) foram determinadas com monitor de pressão arterial automático de braço (modelo HEM 742-INT; OMRON Healthcare, China), após repouso por 10 minutos, em posição sentada. Foram feitas três medições, sendo o valor final aquele que representou a média aritmética das duas últimas medidas. Para classificação dos indivíduos utilizou-se o critério da definição consensual da síndrome metabólica, proposto pela International Diabetes Federation (IDF)/American Heart Association (AHA)/National Heart, Lung and Blood Institute (NHLBI)/World Hearth Federation (WHF)/International Atherosclerosis Society (IAS) e International Association for Study of Obesity (IASO), no ano de 2009 12. Foram classificados como hipertensos os indivíduos com valores de PAS ≥130,0mmHg ou PAD ≥85,0mmHg.
Para a realização do teste de glicemia capilar foi utilizado um aparelho Kit One Touch Ultra 2 (Jonhson & Jonhson, São Paulo, Brasil), lancetas e fitas descartáveis da mesma marca. Os procedimentos de coleta seguiram as orientações determinadas pelo fabricante. Para a classificação dos indivíduos quanto ao grau de tolerância à glicose utilizou-se a recomendação da American Diabetes Association 24, com as correções propostas pela OMS para glicemia capilar 25. Dessa forma, valores de glicemia de jejum ≥100mg/dL e<110mg/dL foram classificados como glicemia de jejum alterada e valores ≥110mg/dL como diabetes mellitus.
O colesterol total, as lipoproteínas de alta densidade (HDLc) e os triglicérides foram determinados pelo método enzimático colorimétrico (equipamento OLYMPUS AU 640; Tek Medical, Londres, Reino Unido). Os valores das lipoproteínas de baixa densidade (LDLc) foram obtidos segundo a fórmula de Friedwald et al. 26. A presença de dislipidemia foi definida com base em valores propostos pelo National Cholesterol Education Program Expert Panel 27, ou seja, concentração colesterol total >200mg/dL ou triglicérides >150mg/dL ou LDLc >130mg/dL ou HDLc <40mg/dL para homens e<50mg/dL para mulheres.
Para a determinação de ácido úrico utilizou- se o método enzimático colorimétrico (equipamento OLYMPUS AU 640). A hiperuricemia foi caracterizada por ácido úrico sérico >6mg/dL para mulheres e>7mg/dL, para os homens 28.
Para a identificação da síndrome metabólica foram utilizados os critérios propostos, de forma consensual por diversas organizações, em 2009. O diagnóstico da síndrome ocorreu na presença de ao menos três dos seguintes componentes: perímetro da cintura aumentado, glicemia de jejum elevada, hipertensão arterial, lipoproteínas de alta densidade reduzidas e hipertrigliceridemia; o uso de medicação para tratamento da(s) patologia(s) referida(s) caracteriza(m) o seu diagnóstico 12. Os pontos de corte utilizados foram previamente referidos.
Salienta-se que os dados aqui apresentados e referentes aos anos de 1999‐2000, foram extraídos do arquivo utilizado em tese de doutora- do 8,29. De forma a permitir a comparação dos resultados encontrados em 1999‐2000 com os de 2010‐2011, as variáveis foram reclassificadas. Assim sendo, todos os desfechos foram classificados utilizando-se os mesmos pontos de corte nos dois momentos da pesquisa (1999/2000 e 2010/2011).
Na descrição dos dados utilizaram-se medidas de tendência central e de dispersão para variáveis quantitativas. Empregou-se para a comparação dos valores médios das variáveis biológicas nos mesmos indivíduos o teste t de Student, para amostras dependentes (pareado) 30. A regressão linear múltipla foi utilizada para análise de 11 desfechos distintos. Em cada modelo incluiu-se uma variável desfecho (antropométrica, física ou bioquímica) e duas variáveis de exposição [sexo e idade em 1999‐2000, em anos (contínua)]. A medida de cada um dos desfechos foi obtida por meio da seguinte equação: valor coletado em 2010‐2011 menos o valor coletado em 1999‐2000, dividido pelo valor coletado em 1999‐2000. Nessa etapa da análise dos dados foram incluídos todos os indivíduos livres ou não dos desfechos investigados, em 1999‐2000.
A incidência acumulada foi calculada considerando-se apenas os indivíduos livres da condição nutricional ou doença crônica, em 1999‐2000, e que estavam, portanto, sob o risco de se tornarem doentes ao longo dos 10 anos decorridos entre as duas avaliações. O delineamento do estudo não possibilitou o cálculo dos coeficientes de incidência, pela ausência da informação sobre pessoas-tempo de exposição.
A regressão com o modelo de Poisson, com variância robusta, foi utilizada para análise de nove desfechos distintos (número de casos novos). Cada modelo foi composto por uma variável desfecho (condição nutricional ou doença crônica) e por duas variáveis de exposição [sexo e idade em 1999‐2000, em anos (contínua)]. Nessa análise foram incluídos apenas os indivíduos que, em 1999‐2000, não tinham os desfechos investigados. Utilizou-se o programa Stata (Stata Corp., College Station, Estados Unidos) em todas as etapas da análise.
Este trabalho faz parte de um projeto maior intitulado Perfil Nutricional e Metabólico de Indígenas Khisêdjê, cujo desenvolvimento foi aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) e pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) com Seres Humanos da UNIFESP (no 760/10). Ainda objetivando atender às normas regulamentares, este estudo individual foi submetido e aprovado pelo CEP da UNIFESP (no 319/11).
De forma a obter a anuência do povo Khisêdjê para a realização do estudo, fez-se uma explanação sobre os objetivos e procedimentos a serem adotados na pesquisa. Tradutores indígenas ajudaram a esclarecer a comunidade na língua nativa. Concomitantemente fez-se a coleta de assinaturas e gravação do pronunciamento das lideranças que manifestaram a concordância com a realização da pesquisa. Considerando-se que a Resolução no 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, item IV.3 inciso “e”, prevê que: “em comunidades culturalmente diferenciadas, inclusive indígenas, deve-se contar com a anuência antecipada da comunidade através dos seus próprios líderes, não se dispensando, porém, esforços no sentido de obtenção do consentimento individual”, obteve-se, quando possível (considerando as características particulares desses sujeitos), o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido TCLE) com assinaturas dos participantes.
Para a realização deste estudo, obteve-se financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP; processo 2010/52263‐7).
Dentre os 78 indivíduos incluídos na pesquisa, 36 (46,2%) eram do sexo feminino e 42 (53,8%) do masculino. No que se refere à idade, nos anos de 1999‐2000 a média foi de 36,3 anos (DP =13,4 anos). Em nenhum dos momentos constatou-se diferença significante na idade entre os sexos.
Os valores médios das variáveis antropométricas, físicas e bioquímicas dos indígenas, segundo sexo, obtidos nos dois períodos de investigação, são apresentados na Tabela 1. Por meio da comparação dos valores médios verifica-se que, no sexo feminino, apenas o perímetro do braço e a PAD não apresentaram alterações estatisticamente significantes ao longo dos anos; o aumento da média de HDLc e a redução do LDLc podem ser considerados benéficos. No sexo masculino apenas o LDLc não apresentou mudança significante; a redução da PAD e o aumento do HDLc também podem ser considerados benéficos.
Tabela 1 Número de indígenas Khisêdjê avaliados concomitantemente em 1999-2000 e em 2010-2011 e valores médios de variáveis antropométricas, físicas e bioquímicas, segundo sexo e ano de coleta dos dados. Parque Indígena do Xingu, Brasil Central, 2013.
Variáveis | Feminino | Masculino | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
n | 1999-2000 | 2010-2011 | Valor de p * | n | 1999-2000 | 2010-2011 | Valor de p * | |
Média (DP) | Média (DP) | Média (DP) | Média (DP) | |||||
IMC (kg/m2) | 35 | 23,1 (2,9) | 24,3 (3,6) | 0,0128 | 42 | 25,8 (2,9) | 26,2 (3,7) | 0,0389 |
Perímetro de cintura (cm) | 35 | 82,4 (7,1) | 88,1 (8,9) | 0,0001 | 41 | 84,8 (11,1) | 90,7 (8,4) | < 0,0001 |
Perímetro do braço (cm) | 35 | 27,3 (2,5) | 27,7 (3,3) | 0,1927 | 42 | 29,0 (5,0) | 30,7 (3,0) | 0,0168 |
PAS (mmHg) | 36 | 103,5 (9,3) | 120,1 (18,9) | < 0,0001 | 39 | 114,9 (11,2) | 125,7 (17,1) | 0,0019 |
PAD (mmHg) | 36 | 65,7 (6,4) | 67,8 (9,9) | 0,1036 | 39 | 72,5 (6,5) | 66,3 (8,7) | 0,0006 |
Glicemia de jejum (mg/dL) | 33 | 85,2 (7,8) | 89,9 (10,4) | 0,0125 | 36 | 85,1 (8,3) | 92,4 (8,2) | 0,0007 |
Colesterol total (mg/dL) | 34 | 176,7 (42,0) | 189,2 (54,2) | 0,0389 | 36 | 172,0 (31,5) | 187,4 (28,3) | 0,0003 |
HDLc (mg/dL) | 34 | 34,3 (10,2) | 43,9 (11,8) | < 0,0001 | 36 | 25,6 (6,7) | 39,4 (7,4) | < 0,0001 |
LDLc (mg/dL) | 32 | 122,7 (37,7) | 111,0 (43,1) | 0,0218 | 31 | 104,9 (29,2) | 103,5 (22,5) | 0,3525 |
Triglicérides (mg/dL) | 34 | 122,1 (72,8) | 188,4 (105,4) | < 0,0001 | 36 | 192,3 (97,4) | 242,3 (146,8) | 0,0331 |
Ácido úrico (mg/dL) | 34 | 3,8 (0,8) | 4,5 (1,0) | < 0,0001 | 36 | 5,8 (1,2) | 6,5 (1,5) | < 0,0001 |
DP: desvio padrão; HDLc: lipoproteínas de alta densidade; IMC: índice de massa corporal; LDLc: lipoproteínas de baixa densidade; PAD: pressão arterial diastólica; PAS: pressão arterial sistólica.
*Relativo ao teste t de Student pareado.
Na Tabela 2, observa-se que para as mulheres os desfechos PAS (β=0,0046mmHg; IC95%: 0,0003; 0,0089), colesterol total (β=0,0073mg/dL; IC95%: 0,0011; 0,0136), HDLc (β=0,0218mg/dL; IC95%: 0,0143; 0,0294) e LDLc (β=0,0080mg/dL; IC95%: 0,0011; 0,0148) aumentaram com a idade. Já no sexo masculino enquanto o desfecho IMC (β= ‐0,0019kg/m2; IC95%: ‐0,0034; ‐0,0005) diminuiu com a idade (anos), os desfechos PAS (β=0,0083mmHg; IC95%: 0,0043; 0,0123) e PAD (β=0,0057mmHg; IC95%: 00,0027; 0,0088) aumentaram.
Tabela 2 Coeficiente β da idade (regressão linear) e intervalo de 95% de confiança (IC95%) para as variáveis antropométricas, físicas e bioquímicas (modelos independentes para cada variável) de indígenas Khisêdjê avaliados concomitantemente em 1999-2000 e em 2010-2011, segundo sexo. Parque Indígena do Xingu, Brasil Central, 2013.
Variáveis | Feminino * | Masculino * | ||
---|---|---|---|---|
Coeficiente da idade (anos) | IC95% | Coeficiente da idade (anos) | IC95% | |
IMC (kg/m2) ** | -0,0019 | -0,0053; 0,0015 | -0,0019 | -0,0034; -0,0005 |
Perímetro de cintura (cm) ** | -0,0007 | -0,0035; 0,0019 | -0,0032 | -0,0069; 0,0005 |
Perímetro de braço (cm) ** | -0,0010 | -0,0038; 0,0018 | -0,0029 | -0,0146; 0,0088 |
PAS (mmHg) ** | 0,0046 | 0,0003; 0,0089 | 0,0083 | 0,0043; 0,0123 |
PAD (mmHg) ** | -0,0019 | -0,0055; 0,0017 | 0,0057 | 0,0027; 0,0088 |
Glicemia de jejum (mg/dL) ** | 0,0013 | -0,0022; 0,0047 | 0,0001 | -0,0044; 0,0045 |
Colesterol total (mg/dL) ** | 0,0073 | 0,0011; 0,0136 | -0,0023 | -0,0064; 0,0018 |
HDLc (mg/dL) ** | 0,0218 | 0,0143; 0,0294 | 0,0014 | -0,0066; 0,0095 |
LDLc (mg/dL) ** | 0,0080 | 0,0011; 0,0148 | -0,0006 | -0,0065; 0,0053 |
Triglicérides (mg/dL) ** | -0,0154 | -0,0394; 0,0086 | -0,0319 | -0,0683; 0,0045 |
Ácido úrico (mg/dL) ** | 0,0052 | -0,0015; 0,0118 | -0,0011 | -0,0057; 0,0035 |
DP: desvio padrão; HDLc: lipoproteínas de alta densidade; IMC: índice de massa corporal; LDLc: lipoproteínas de baixa densidade; PAD: pressão arterial diastólica; PAS: pressão arterial sistólica.
*Regressão linear múltipla ajustada por idade em 1999-2000, em anos (contínua), segundo sexo.
**(valor da variável em 2010-2011 - valor da variável em 1999-2000)/valor da variável em 1999-2000.
Os números de casos novos relacionados à condição nutricional ou doença crônica, ao longo de 10 anos, estão dispostos na Tabela 3. O sexo feminino mostrou maior incidência acumulada, que o masculino, de síndrome metabólica (48,1% vs. 27,6%), obesidade central (60% vs. 20%) e LDLc elevado (19% vs. 3,7%). O sexo masculino, em contrapartida, apresentou maior incidência, que o feminino, de hipertensão arterial (41,7% vs. 36,2%), hipercolesterolemia (33,3% vs. 24%) e hiperuricemia (21,9% vs. 5,9%).
Tabela 3 Número e porcentagem de indígenas Khisêdjê avaliados concomitantemente em 1999-2000 e em 2010-2011 segundo a ocorrência, durante o período de estudo, de casos novos de alterações quanto ao perfil metabólico ou nutricional, segundo sexo. Parque Indígena do Xingu, Brasil Central, 2013.
Variáveis/Categorias | Feminino | Masculino | Valor de p * | Total | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | n | % | ||
Síndrome metabólica | 0,112 | ||||||
Não | 14 | 51,9 | 21 | 72,4 | 35 | 62,5 | |
Sim | 13 | 48,1 | 8 | 27,6 | 21 | 37,5 | |
Excesso de peso | 0,887 | ||||||
Não | 19 | 70,4 | 13 | 68,4 | 32 | 69,6 | |
Sim | 8 | 29,6 | 6 | 31,6 | 14 | 30,4 | |
Obesidade central | 0,005 | ||||||
Não | 6 | 40,0 | 28 | 80,0 | 34 | 68,0 | |
Sim | 9 | 60,0 | 7 | 20,0 | 16 | 32,0 | |
Hipertensão arterial | 0,629 | ||||||
Não | 23 | 63,9 | 21 | 58,3 | 44 | 61,1 | |
Sim | 13 | 36,2 | 15 | 41,7 | 28 | 38,9 | |
Diabetes mellitus | 0,950 | ||||||
Não | 32 | 97,0 | 35 | 97,2 | 67 | 97,1 | |
Sim | 1 | 3,0 | 1 | 2,8 | 2 | 2,9 | |
Hipercolesterolemia | 0,448 | ||||||
Não | 19 | 76,0 | 20 | 66,7 | 39 | 70,9 | |
Sim | 6 | 24,0 | 10 | 33,3 | 16 | 29,1 | |
Baixo HDLc | 0,505 | ||||||
Não | 2 | 66,7 | 1 | 100 | 3 | 75,0 | |
Sim | 1 | 33,3 | - | - | 1 | 25,0 | |
Elevado LDLc | 0,084 | ||||||
Não | 17 | 81,0 | 26 | 96,3 | 43 | 89,6 | |
Sim | 4 | 19,0 | 1 | 3,7 | 5 | 10,4 | |
Hipertrigliceridemia | 0,914 | ||||||
Não | 13 | 52,0 | 7 | 53,8 | 20 | 52,6 | |
Sim | 12 | 48,0 | 6 | 46,2 | 18 | 47,4 | |
Hiperuricemia | 0,058 | ||||||
Não | 32 | 94,1 | 25 | 78,1 | 57 | 86,4 | |
Sim | 2 | 5,9 | 7 | 21,9 | 09 | 13,6 |
HDLc: lipoproteínas de alta densidade; LDLc: lipoproteínas de baixa densidade.
*Referente ao teste de χ2.
A Tabela 4 apresenta as razões de incidência da condição nutricional ou doenças crônicas ajustadas, simultaneamente, por idade (medida em anos) e sexo. Observa-se que, independentemente do sexo, o risco relativo para hipertensão arterial foi igual a 1,03 (IC95%: 1,01; 1,05), 1,04 (IC95%: 1,01; 1,07) para o diabetes mellitus e 1,10 (IC95%: 1,04; 1,17) para o LDLc elevado. Já na análise, identificou-se, no sexo masculino, redução na incidência de obesidade central (RR =0,33; IC95%: 0,15; 0,72), independentemente da idade. Em razão do pequeno número de casos novos o desfecho baixo HDLc (n=1) foi excluído da análise.
Tabela 4 Razões entre as incidências acumuladas (RIC), por ponto e por intervalo de 95% de confiança (IC95%), ajustadas simultaneamente por sexo e idade, para as alterações do perfil metabólico e nutricional observadas durante o período de estudo entre indígenas Khisêdjê avaliados concomitantemente em 1999-2000 e em 2010-2011. Parque Indígena do Xingu, Brasil Central, 2013.
Variáveis (casos novos de) | RIC * | IC95% | RIC * | IC95% |
---|---|---|---|---|
Idade (em anos) ** | Sexo (masculino vs. feminino) ** | |||
Síndrome metabólica | 1,01 | 0,98; 1,03 | 0,57 | 0,28; 1,16 |
Excesso de peso | 0,98 | 0,94; 1,01 | 0,96 | 0,41; 2,25 |
Obesidade central | 0,99 | 0,96; 1,02 | 0,33 | 0,15; 0,72 |
Hipertensão arterial | 1,03 | 1,01; 1,05 | 1,19 | 0,68; 2,07 |
Diabetes mellitus | 1,04 | 1,01; 1,07 | 0,99 | 0,07; 15,02 |
Hipercolesterolemia | 1,02 | 0,99; 1,05 | 1,37 | 0,58; 3,21 |
Elevado LDLc | 1,10 | 1,04; 1,17 | 0,18 | 0,02; 1,89 |
Hipertrigliceridemia | 0,98 | 0,95; 1,01 | 1,03 | 0,52; 2,06 |
Hiperuricemia | 1,04 | 0,99; 1,08 | 3,84 | 0,99; 14,95 |
*Regressão de Poisson robusta ajustada por idade e sexo simultaneamente;
**Referência: menor idade (em anos, coletada em 1999-2000);
***Referência: sexo feminino.
HDLc: lipoproteínas de alta densidade; LDLc: lipoproteínas de baixa densidade
Desde a sua entrada no Parque Indígena do Xingu, os indígenas Khisêdjê têm mantido boas relações com os municípios vizinhos e, consequentemente, intensificaram seu contato com a sociedade adjacente. Ao longo dos anos eles conseguiram vitórias importantes como a recuperação populacional, influenciada por taxas de natalidade moderadas, queda da mortalidade e coeficiente migratório negativo, mas também ficaram expostos ao aparecimento de elevadas proporções de DCNT, as quais foram identificadas por estudos transversais realizados nos anos de 1999‐2000 e em 2010‐2011 8,16,31,32.
Na presente pesquisa constatou-se que, ao longo dos dez anos decorridos entre as duas avaliações, surgiram 21 (37,5%) casos novos de síndrome metabólica, sendo esta incidência superior no sexo feminino, com um total de 13 (48,1%) casos novos. A incidência de síndrome metabólica não esteve associada de forma significativa ao sexo ou à idade. Até o momento não identificamos estudos com povos indígenas brasileiros que tenham avaliado a incidência de síndrome metabólica para servir como fonte de comparação.
A síndrome metabólica é uma importante DCNT que está, entre outros inúmeros prejuízos, relacionada ao aumento do risco de desenvolvimento de doenças cardiovasculares, de diabetes mellitus e de mortalidade por todas as causas, portanto, sua detecção precoce está relacionada à possibilidade de tratamento e, consequentemente, de redução dos agravos à saúde 12,14,25,27,33,34,35,36,37,38,39.
Os valores médios do IMC aumentaram, em ambos os sexos, ao longo dos dez anos (Tabela 1), mas apesar disto, a média de IMC no sexo feminino permaneceu abaixo da verificada no I Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas, um estudo realizado, por meio de amostra probabilística, com mulheres de 14 a 49 anos e com crianças menores de 60 meses, residentes em aldeias do país e em quatro macrorregiões (IMC =25,2kg/m2; IC95%: 24,7; 25,8) 40. Quando ajustadas por idade, verificou-se, entre os do sexo masculino, redução do IMC com o aumento da idade, ou seja, os indivíduos mais velhos apresentaram as menores médias desta variável. Esses resultados podem estar relacionados a não adesão dos indivíduos mais velhos aos novos hábitos de vida e de alimentação ocorridos nas aldeias ou ao próprio processo de envelhecimento. No I Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas, observou-se, de forma contrária, entre as mulheres, aumento do IMC com o aumento da idade; deve-se ponderar, entretanto, que a faixa etária incluída na amostra foi inferior à do presente estudo 40.
Assim como identificado com a variável excesso de peso, a incidência acumulada de obesidade central nos Khisêdjê ficou em torno de 30%, sendo este resultado ainda mais alarmante para o sexo feminino (60%). A proteção conferida ao sexo masculino (RR =0,33), independentemente da idade, contra a incidência de obesidade central evidencia a relevância desse resultado que está associado ao aumento do risco cardiovascular e de outras DCNT 22, para o sexo feminino. Uma importante suposição, não investigada nesta pesquisa, está relacionada ao elevado número de gestações que estas indígenas são expostas ao longo de suas vidas reprodutivas. Resultados da Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Mulher e da Criança, em 2006, mostraram que as maiores prevalências de perímetro da cintura alterada ocorreram justamente entre as mulheres com o maior número de filhos 41. Outro fator limitante a ser considerado refere-se aos critérios diagnósticos utilizados para identificar o estado nutricional e algumas situações metabólicas, que podem não ser apropriados aos indivíduos indígenas.
Dentre os demais componentes avaliados identificou-se aumento da PAS, de ambos os sexos, e da PAD do sexo masculino (Tabela 2) com a evolução da idade. Esses dados contrastam com as informações divulgadas em 1988 pelo Estudo Intersalt, que mostrou que entre os indígenas do Xingu (N=198) avaliados ocorreu apenas um pequeno aumento (PAS =0,6mmHg) ou decréscimo (PAD =0,4mmHg) da pressão, com a evolução da idade 41,42, mas, apoiam em parte os achados do I Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas 40 que mostrou que a PAS e a PAD feminina aumentaram estatisticamente com a idade. De forma semelhante a esta pesquisa, um estudo realizado com indígenas da etnia Suruí de Rondônia, identificou em ambos os sexos avaliados um pequeno aumento das médias de PAS e PAD entre os anos de 1988 e 2005; este incremento foi significativo apenas para a PAS do sexo feminino 44. Salienta-se ainda que a hipertensão arterial foi a segunda enfermidade mais incidente (39,8%) ao longo dos dez anos avaliados e que houve incremento de 3% para cada ano de vida dos sujeitos, independentemente do sexo. Esses resultados podem estar relacionados a alterações dos hábitos alimentares e do estilo de vida da população. As médias de PAS e PAD dos Khisêdjê, especialmente em 2010‐2011, são superiores às verificadas entre os índios do Xingu e reportadas no Intersalt 42,43.
Apesar da baixa incidência acumulada (2,9%) de diabetes mellitus verificada ao longo dos dez anos de pesquisa, pode-se entender que estes resultados são superiores aos achados de Baruzzi 3 que referiu que, até o ano de 2002, só haviam sido identificados dois casos de diabetes mellitus no Parque Indígena do Xingu, sendo ambos em mulheres de outras etnias. Em contrapartida, esses achados são inferiores aos referidos por outros autores que mencionam a existência de elevadas incidências de diabetes mellitus (>17%) entre diferentes etnias indígenas do mundo. A obesidade, a história familiar de diabetes mellitus, fatores genéticos e ambientais são relacionados com a etiologia dessa patologia 34,45,46,47,48,49,50,51. Um estudo realizado com indígenas americanos de 13 etnias distintas, constatou menor incidência de diabetes mellitus entre os participantes que referiram praticar algum tipo de atividade física quando comparados aos que não praticaram nenhum tipo de atividade física 49. Tendo por base esses achados, pode-se ponderar que a baixa incidência encontrada na pesquisa possa estar relacionada a esse mesmo motivo, uma vez que dados recentes, referentes à atividade física, mostram que os Khisêdjê apresentam bom condicionamento e aptidão físicos 16,52.
O baixo HDLc é considerado um forte preditor independente de doenças coronarianas 27. Entre os Khisêdjê essa foi a patologia mais frequente tanto em 1999‐2000 (88,9%) como em 2010‐2011 (66,2%) 8,16. No presente estudo, quando avaliada a incidência de baixo HDLc, apenas um caso novo foi identificado em dez anos, todavia não se pode dizer que este valor é baixo visto que isto ocorreu, possivelmente, porque no momento inicial da pesquisa a prevalência da patologia era alta, ou seja, poucos indivíduos (n=4) estavam sob o risco de se tornarem casos novos. Uma pesquisa realizada em 2010 constatou que os baixos níveis de HDLc podem estar relacionados a alterações genéticas ocorridas no metabolismo das populações nativas americanas, como forma de resposta adaptativa ao meio 53.
Apesar do elevado LDLc não ter sido o principal distúrbio lipídico encontrado entre os Khisêdjê nos anos de 1999‐2000 ou 2010‐2011, o aumento de seus valores com a idade reforçam a necessidade de vigilância deste e de outros fatores de risco cardiovascular entre estes indivíduos. Da mesma forma, a elevada incidência acumulada encontrada para hipertrigliceridemia (47,4%), aliada às elevadas prevalências existentes nessa população, expõem os avaliados a elevados riscos cardiovasculares e metabólicos.
De modo geral, a adoção de alimentos não tradicionais, alterações no padrão de atividade física e nos costumes (como o uso de novas tecnologias) e o incremento na economia familiar baseado especialmente em trabalhos remunerados e posição social (nível socioeconômico) são fatores comumente relacionados ao aparecimento de síndrome metabólica e de outras DCNT em povos indígenas e não indígenas 1,3,4,5,6,7,9,10,11, 18,20,32,54,55,56,57.
Dentre as limitações deste estudo pode-se mencionar a possível variação (sub ou superestimação) das incidências acumuladas, decorrentes da perda de seguimento de oito indígenas no início do estudo (9,3% do total de elegíveis). Como exemplo pode-se mencionar que caso os oito indígenas viessem a se tornar casos de síndrome metabólica, a incidência acumulada seria de 45,3% (IC95%: 32,8; 57,8), mas se eles tivessem se mantido livres da patologia esta incidência seria de 32,8% (IC95%: 21,0; 44,6); o valor encontrado na pesquisa foi de 37,5% (IC95%: 24,4; 50,6). Destaca-se ainda que a exclusão dos casos de diabetes mellitus identificados em 2010‐2011, via teste de tolerância oral à glicose, assim como a não realização deste teste em 1999‐2000, podem ter contribuído para a subestimação da incidência de diabetes mellitus encontrada.
No presente trabalho verificou-se a deterioração de grande parte dos indicadores de saúde avaliados. As elevadas incidências acumuladas de síndrome metabólica, hipertrigliceridemia, hipertensão arterial, obesidade central e excesso de peso, verificadas entre os Khisêdjê, são alarmantes e os predispõem a um elevado risco de desenvolver doenças cardiovasculares. Apesar desses resultados não serem representativos para a identificação do processo de degradação dos indicadores de saúde de todas as etnias indígenas brasileiras, eles representam um alerta para a necessidade de implantação de ações interventivas que sirvam para proteger esses povos da aculturação que infelizmente vem ocorrendo e sendo introduzida no cotidiano dessas populações ao longo dos anos.