versão impressa ISSN 1677-5449versão On-line ISSN 1677-7301
J. vasc. bras. vol.14 no.2 Porto Alegre abr./jun. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/1677-5449.0071
A trombose venosa profunda é a maior causa de óbitos intra-hospitalares no mundo e, paradoxalmente, a mais evitável1. A mortalidade anual por trombose venosa profunda e tromboembolismo pulmonar em pacientes idosos é de 21% e 39%, respectivamente2. Em 2010, foram estimados 900.000 casos anuais de tromboembolismo e um terço destes evoluiu para óbito. Dos sobreviventes, cerca de 4% apresentaram hipertensão pulmonar com significativa restrição das atividades e da qualidade de vida3.
Há estimativa de que 25% a 50% dos pacientes com trombose venosa profunda desenvolverão a síndrome pós-trombótica, que pode levar à importante redução da qualidade de vida4.
Portanto, medidas que diminuem as mortes e complicações causadas por tromboembolismo venoso devem ser adotadas por meio de identificação dos seus fatores de risco e adequação de sua profilaxia.
Caprini elaborou uma avaliação mais individualizada desses fatores de risco. Esse modelo é amplamente utilizado em estudos e serve como referência para a adequação de profilaxia, principalmente para os pacientes de alto risco5.
A Universidade de Michigan (Michigan Health System) adotou este modelo na avaliação de 8.216 pacientes para estabelecer a melhor forma de profilaxia, sendo tal abordagem considerada a melhor evidência de validação da escala de Caprini6.
No Brasil, Deheinzelin et al.7 utilizaram os modelos de identificação de fatores de risco de Caprini e do American College of Chest Physicians, para avaliar a qualidade de profilaxia para trombose venosa profunda de pacientes internados em quatro hospitais de São Paulo.
As investigações, em cada instituição, permitiriam mostrar a incidência real de trombose venosa profunda e a identificação dos grupos de risco, a fim de assumir medidas contra essa grave afecção, de acordo com as melhores evidências científicas.
Particularmente em Cirurgia Vascular, a incidência de trombose venosa profunda é pouco conhecida e variável na literatura. Os estudos são antigos e com amostras pequenas.
Determinar a incidência de trombose venosa profunda e estratificar os fatores de risco em pacientes internados no serviço de Cirurgia Vascular de um hospital universitário.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob o documento número 231/05 (SISNEP: CAAE 0231.0.203.000-05).
Recebeu ainda a aprovação da instituição hospitalar para que se fizesse o estudo em suas dependências.
Entre março de 2011 e julho de 2012, foram estudados 202 pacientes internados no Serviço de Cirurgia Vascular.
O modelo elaborado por Caprini et al.8 foi adotado para avaliação dos fatores de risco dos pacientes (Tabelas 1 e 2).
Tabela 1. Modelo de Caprini.
Pontuações | Fatores de risco |
---|---|
Fatores de risco que correspondem a 1 ponto | Idade de 41 anos a 60 anos Cirurgia de grande porte (menos de 1 mês) Varizes de membros inferiores História de doença intestinal inflamatória Edema recorrente de membros inferiores Obesidade (IMC>25 kg/m2) Infarto agudo do miocárdio Insuficiência cardíaca congestiva Sepse (<1 mês) Doença pulmonar grave (<1 mês), incluindo pneumonia Doença pulmonar obstrutiva crônica |
Fatores de risco que correspondem a 2 pontos | Idade 60 anos a 74 anos Cirurgia de artroscopia Câncer (prévio ou presente) Cirurgia de grande porte (>45 minutos) Cirurgia laparoscópica (>45minutos) Paciente confinado ao leito (>72 horas) Imobilização do membro (gesso/tala) Acesso central venoso |
Fatores de risco que correspondem a 3 pontos | Idade acima de 75 anos História prévia de trombose venosa ou embolia pulmonar História familiar de trombose Fator V de Leiden positivo Protrombina 20210 A positivo Anticoagulante lúpico positivo Homocisteína sérica elevada Anticorpos anticardiolipinas elevados Trombocitopenia induzida por heparina Trombofilia congênita ou adquirida |
Fatores de risco que correspondem a 5 pontos | Artroplastia de membros inferiores Fratura de pelve, coxa ou perna (<1 mês) Acidente vascular cerebral (1 mês) Politrauma (<1mês) Lesão medular – paralisia (<1 mês) |
Fatores de risco somente para mulheres, que correspondem a 1 ponto | Uso de anticoncepcional ou terapia de reposição hormonal Gravidez ou pós-parto (<1 mês) História inexplicada de natimorto, abortos de repetição (>3), prematuridade com toxemia ou desenvolvimento restrito |
Fonte: Caprini et al.8
Tabela 2. Classificação dos pacientes em grupos conforme fatores de risco.
Grupo de risco | Pontuação |
---|---|
Baixo | 0 e 1 ponto |
Moderado | 2 pontos |
Alto | 3 e 4 pontos |
Altíssimo | 5 ou mais pontos |
Fonte: Caprini et al.8
O protocolo de profilaxia considerada adequada no presente estudo foi o descrito pelas diretrizes do American College of Chest Physicians, sétima e oitava edições1 , 9.
Todos os pacientes foram submetidos à ultrassonografia vascular dos membros inferiores. Durante o período de internação, aquele paciente que apresentou suspeita clínica de trombose venosa foi submetido à ultrassonografia vascular no mesmo dia e, quando assintomático, na data da alta hospitalar. Os exames foram realizados em ambos os membros inferiores, conforme recomendações sugeridas pelo Intersocietal Commission for the Accreditation of Vascular Laboratories (2008).
Os resultados desta pesquisa foram analisados com o programa SPSS (Statistical Package for Social Science) 20.0 IBM, Estados Unidos.
A regressão logística permitiu a análise de incidência de trombose venosa, conforme os diagnósticos de internação, e avaliar a associação entre a incidência de trombose venosa profunda e os grupos de fatores de risco.
O qui-quadrado foi utilizado para avaliar a associação entre a incidência de trombose venosa e os dados demográficos.
Em relação à distribuição em gênero dos pacientes, 75 (37,1%) foram femininos e 127 (62,9%) masculinos.
Os dados antropométricos dos pacientes internados apresentaram distribuição normal, com média de idade de 65,1 anos (± 19,1); média de peso de 69,4 kg (± 12,5); média de altura 1,65 m (desvio padrão: 0,9) e média de índice de massa corpórea de 24,6 kg/m2 (desvio-padrão: 3,8).
Os diagnósticos de internação estão demonstrados na Tabela 3.
Tabela 3. Diagnósticos de internação na Cirurgia Vascular.
Diagnóstico | Número de pacientes | Porcentagem (%) |
---|---|---|
Doença arterial periférica – isquemia crítica | 80 | 39,2 |
Pé diabético (infeccioso) | 60 | 29,8 |
Isquemia arterial aguda | 14 | 7,0 |
Trauma de membros inferiores | 14 | 7,0 |
Pé diabético (infeccioso) e sepse | 13 | 6,5 |
Outros | 7 | 3,6 |
Doença da aorta Aneurisma periférico Doença cérebro-vascular (AVE/AIT) |
6 4 2 |
3,0 2,0 1,0 |
Pé diabético (infeccioso e angiopático) | 1 | 0,5 |
Doença arterial periférica – assintomático e claudicante | 1 | 0,5 |
Total | 202 | 100 |
AVE: acidente vascular encefálico; AIT: ataque isquêmico transitório.
A regressão logística identificou associação entre isquemia arterial aguda e trombose venosa profunda (odds ratio - OR=13,4; 3,06-59,27, p=0,01) (Tabela 4).
Tabela 4. Associação de trombose venosa profunda e diagnóstico de internação.
Diagnóstico | p | Odds ratio |
---|---|---|
Trauma | 0,54 | - |
Pé diabético (infeccioso) | 0,84 | 0,84 |
Pé diabético (infeccioso) e sepse | 0,99 | 0,00 |
Pé diabético (infeccioso e angiopático) | 1,00 | 0,00 |
Doença arterial periférica – assintomático e claudicante | 1,00 | 0,00 |
Doença arterial periférica – isquemia crítica | 0,29 | 1,99 |
Aneurisma periférico | 0,98 | 8,08 |
Isquemia arterial aguda | 0,01* | 13,4 |
Doença cérebro-vascular (AVE/AIT) | 0,99 | 0,00 |
Doenças da aorta | 0,99 | 0,00 |
Outros | 0,52 | 6,61 |
AVE: acidente vascular encefálico; AIT: ataque isquêmico transitório. *p<0,05
A Tabela 5 mostra as distribuições de frequências de grupos de riscos. Foram observados 74,3% de pacientes nos grupos de alto e altíssimo risco.
Tabela 5. Frequência dos grupos de risco para trombose venosa profunda em Cirurgia Vascular.
Grupos de risco | Número de pacientes | Porcentagem (%) |
---|---|---|
Baixo | 17 | 8,4 |
Moderado | 35 | 17,3 |
Alto | 60 | 29,7 |
Altíssimo | 90 | 44,6 |
Total | 202 | 100,0 |
Não foi identificada trombose venosa profunda nos pacientes de baixo risco na Cirurgia Vascular. No grupo de risco moderado, a incidência foi de 17,6% (três pacientes). As incidências de trombose venosa profunda foram de 23,5% (quatro pacientes) e 58,8% (10 pacientes) nos grupos de alto e altíssimo risco, respectivamente.
A incidência global de trombose venosa profunda na Cirurgia Vascular foi de 8,5% (17 pacientes).
Para a redução de eventos tromboembólicos, deve-se conhecer a incidência real de trombose venosa e estratificar os fatores de risco, classificando-os de acordo com o risco.
A pesquisa atual utilizou a ultrassonografia venosa como critério seguro de diagnóstico de trombose venosa profunda, pois este método praticamente substituiu a venografia devido à alta taxa de sensibilidade e especificidade, acessibilidade, além de boa relação de custo-benefício10 , 11.
Goodacre et al.12, por meio de meta-análise, concluíram que a ultrassonografia apresenta sensibilidade de 96,4% para o diagnóstico de trombose venosa profunda proximal, 75,2% para trombose venosa distal e especificidade de 94,3%.
A ultrassonografia venosa também permite investigar os diagnósticos diferenciais de trombose venosa profunda.
O objetivo do presente estudo foi determinar a real incidência de trombose venosa profunda nos pacientes internados para se submeterem à Cirurgia Vascular não venosa, uma vez que a taxa de incidência de trombose venosa profunda nesta especialidade é pouco conhecida e variável na literatura. Os estudos são antigos e foram feitos com amostras menores, conforme descrito abaixo. Provavelmente, este é o estudo com maior casuística realizado no Brasil.
Estudos prospectivos com pacientes de Cirurgia Vascular que não receberam qualquer medida de profilaxia apresentaram taxa de incidência de trombose venosa profunda de 21% (18 de 86 pacientes) à venografia e de 15% (15 de 98 pacientes) à ultrassonografia vascular13 , 14.
A avaliação de 142 pacientes que foram submetidos a diversos procedimentos cirúrgicos vasculares e que receberam profilaxia medicamentosa e mecânica mostrou incidência de trombose venosa profunda de 10%15.
Entretanto, devem-se considerar os variados tipos de procedimentos vasculares realizados, pois os procedimentos cirúrgicos na aorta tendem a apresentar elevadas taxas de tromboembolismo venoso. Hollyoak et al.16 encontraram incidência de tromboembolismo de 12% (seis de 52 pacientes) nos pacientes submetidos ao procedimento cirúrgico em aorta e de 9% (cinco de 54 pacientes) para os procedimentos de revascularização infrainguinal.
Essa diferença de incidência de trombose venosa em procedimentos na aorta foi detectada por Farkas et al.17. Esse estudo randomizado avaliou pacientes que receberam profilaxia medicamentosa e que foram submetidos às revascularizações de membros inferiores e procedimentos cirúrgicos na aorta. As incidências de trombose venosa profunda foram de 3,4% no grupo submetido à revascularização infrainguinal, 7% em procedimentos de revascularização aortofemoral e 8% em correção de aneurisma de aorta.
Demais estudos mostraram que taxas de incidências de trombose venosa profunda em pacientes submetidos aos procedimentos cirúrgicos de aorta tendem a ser maiores, variando de 18% a 30%18 , 19.
Na presente pesquisa, a incidência de trombose venosa profunda na Cirurgia Vascular (8,5%) foi semelhante aos estudos citados.
A análise mostra que os tipos de procedimentos cirúrgicos vasculares devem ser considerados e estes talvez possam influenciar a taxa de incidência de trombose venosa profunda. Apenas 3% foram internados com afecções de aorta. Por outro lado, 39% das causas de internação foram por doença arterial periférica (isquemia crítica). Um aspecto relevante desta pesquisa é não se limitar somente à variação de diagnósticos de internação. Percebe-se a mudança de paradigma de tratamento das afecções de aorta e da doença arterial periférica dos pacientes desse grupo. A maior parte dos tratamentos de revascularização dos pacientes foi realizada por via endovascular, seja por doença aterosclerótica em setores aorto e ilíaco, seja em setores infrainguinais. O tratamento cirúrgico convencional dos aneurismas de aorta abdominal foi praticamente substituído pelo reparo endovascular. Essa peculiaridade confere a esta pesquisa dados pioneiros de incidência de trombose venosa profunda sob a perspectiva da modalidade de tratamento endoluminal.
Os resultados desta pesquisa mostraram associação entre ocorrência de trombose venosa profunda e isquemia arterial aguda (p=0,01). Na literatura, não foi encontrada essa correlação. Entretanto, considera-se que isquemia arterial aguda de extremidade é uma situação clínica de urgência, com taxas de mortalidade de 15% a 20%, amputação acima de 25%, fasciotomia em torno de 25% e insuficiência renal aguda maior que 20%20. Esse quadro clínico grave associado às comorbidades faz com que esses pacientes sejam considerados de risco alto ou altíssimo para trombose venosa. Em concordância com a literatura, a investigação de trombose venosa profunda nos pacientes com isquemia arterial aguda deva ser realizada21. Esta associação, aqui encontrada, deve merecer pesquisas futuras.
Entre março de 2011 e julho de 2012, a incidência de trombose venosa profunda foi de 8,5%. Não foi identificada trombose venosa profunda no grupo de baixo risco. Nos grupos de risco moderado, alto e altíssimo risco, a incidência de trombose venosa profunda foi de 17,6% (três pacientes), 23,5% (quatro pacientes) e 58,8% (10 pacientes), respectivamente.