versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.105 no.5 São Paulo nov. 2015 Epub 25-Set-2015
https://doi.org/10.5935/abc.20150113
Pacientes submetidos à cirurgia vascular arterial são considerados de risco aumentado para complicações no pós-operatório.
Avaliar incidência e preditores de complicações e óbito, assim como o desempenho de dois modelos de estratificação de risco, em cirurgia vascular.
Em pacientes adultos, determinou-se a incidência de complicações cardiovasculares e óbitos em 30 dias. Comparações univariadas e regressão logística avaliaram os fatores de risco associados com os desfechos, e a curva ROC (receiver operating characteristic) examinou a capacidade discriminatória do índice de risco cardíaco revisado (RCRI) e do índice de risco cardíaco do grupo de cirurgia vascular da New England (VSG-CRI).
141 pacientes (idade média 66 anos, 65% homens) realizaram cirurgias de: carótida (15), membros inferiores (65), aorta abdominal (56) e outras (5). Complicações cardiovasculares e óbito em até 30 dias ocorreram em 28 (19,9%) e em 20 (14,2%) pacientes, respectivamente. Os preditores de risco foram: idade, obesidade, acidente vascular cerebral, capacidade funcional ruim, cintilografia alterada, cirurgia de aorta e alteração de troponina. Os escores RCRI e VSG-CRI apresentaram AUC (area under the curve) de 0,635 e 0,639 para complicações cardiovasculares precoces e 0,562 e 0,610 para óbito em 30 dias.
Nesse grupo pequeno e selecionado submetido à cirurgia vascular arterial, a incidência de eventos adversos foi elevada. Para complicações em até 30 dias, os índices de avaliação de risco RCRI e VSG-CRI não apresentaram boa performance.
Palavras-chave: Doenças Cardiovasculares/complicações; Doenças Vasculares/cirurgia; Mortalidade; Complicações Pós Operatórias; Medição de Risco; Cuidados Pós Operatórios/mortalidade
Patients undergoing arterial vascular surgery are considered at increased risk for post-operative complications.
To assess the incidence and predictors of complications and death, as well as the performance of two models of risk stratification, in vascular surgery.
This study determined the incidence of cardiovascular complications and deaths within 30 days from surgery in adults. Univariate comparison and logistic regression assessed the risk factors associated with the outcomes, and the receiver operating characteristic (ROC) curve assessed the discriminatory capacity of the revised cardiac risk index (RCRI) and vascular study group of New England cardiac risk index (VSG-CRI).
141 patients (mean age, 66 years; 65% men) underwent the following surgeries: carotid (15); lower limbs (65); abdominal aorta (56); and others (5). Cardiovascular complications and death occurred within 30 days in 28 (19.9%) and 20 (14.2%) patients, respectively. The risk predictors were: age, obesity, stroke, poor functional capacity, altered scintigraphy, surgery of the aorta, and troponin change. The scores RCRI and VSG-CRI had area under the curve of 0.635 and 0.639 for early cardiovascular complications, and 0.562 and 0.610 for death in 30 days.
In this small and selected group of patients undergoing arterial vascular surgery, the incidence of adverse events was elevated. The risk assessment indices RCRI and VSG-CRI did not perform well for complications within 30 days.
Keywords: Cardiovascular Diseases/complications; Vascular Diseases/surgery; Mortality; Postoperative Complications; Risk Assessment; Postoperative/mortality
São realizadas, no mundo, 250 milhões de cirurgias maiores a cada ano, com 1% de mortalidade e 5% de morbidade. Pacientes que sobrevivem às complicações pós-operatórias comumente evoluem com limitações funcionais e redução na sobrevida1-4.
Pacientes que serão submetidos à cirurgia vascular são considerados de risco aumentado para eventos adversos cardiovasculares no pós-operatório devido a: muitos dos fatores de risco que contribuem para a doença vascular também contribuem para doença arterial coronariana (DAC), como diabetes e tabagismo; os sintomas de DAC podem ser obscurecidos por baixa capacidade funcional; e cirurgias vasculares podem ser associadas com flutuação significativa na volemia e na trombogenicidade5-7.
Há, ainda, dúvidas em como fazer uma avaliação de risco mais precisa desses pacientes8-12.
Dois estudos (Tabela 1) validaram os modelos de avaliação de risco mais usados em nossa prática: o índice de risco cardíaco revisado (RCRI), derivado de uma população heterogênea de pacientes, na qual apenas uma pequena porcentagem foi submetida à cirurgia vascular; e o índice de risco cardíaco do grupo de estudo vascular da New England (VSG-CRI), específico para cirurgia vascular. Ambos não abordaram, em seus desfechos, mortalidade12,13.
Tabela 1 Índice de Risco Cardíaco Revisado (RCRI)13 e Índice de Risco Cardíaco do Grupo de Cirurgia Vascular da "New England" (VSG-CRI)12
Variável do RCRI | Pontos |
---|---|
DAC | 1 |
IC | 1 |
AVC ou acidente isquêmico transitório | 1 |
Diabetes insulino-dependente | 1 |
Creatinina maior ou igual a 2,0 | 1 |
Cirurgia de alto risco: abdominal, torácica ou vascular suprainguinal. | 1 |
Variável do VSG-CRI | Pontos |
Idade acima de 80 anos | 4 |
Idade entre 70 e 79 anos | 3 |
Idade entre 60 e 69 anos | 2 |
DAC | 2 |
IC | 2 |
DPOC | 2 |
Creatinina superior a 1,8 | 2 |
Tabagismo | 1 |
Diabetes insulino-dependente | 1 |
Uso de betabloqueador a longo prazo | 1 |
História de angioplastia ou revascularização coronária | -1 (protetor) |
Pontos/risco – RCRI: 0 = baixo; 1-2 = moderado; >2 = alto; VSG-CRI: 0-4 = baixo; 5-6 = moderado; >6 = alto risco. DAC: Doença arterial coronariana; IC: Insuficiência cardíaca; AVC: Acidente vascular cerebral; DPOC: Doença pulmonar obstrutiva crônica.
Este estudo foi desenhado para avaliar as características epidemiológicas e a evolução clínica de uma coorte de pacientes submetidos à cirurgia vascular, identificando possíveis preditores de eventos adversos.
Analisamos prospectivamente uma amostra de pacientes internados no período de agosto de 2008 a janeiro de 2010, na enfermaria de cirurgia vascular do Hospital das Clínicas de São Paulo.
Os pacientes incluídos deveriam ter acima de 18 anos, eram de ambo os sexos, sendo a internação eletiva para cirurgia vascular arterial de doença aterosclerótica oclusiva ou doença aneurismática degenerativa, aberta ou endovascular.
Foram excluídos pacientes com necessidade de procedimento cirúrgico de emergência, cirurgia de varizes, tromboembolectomia, formação de acesso vascular e os que não concordaram em fornecer o consentimento informado por escrito.
O estudo passou pela aprovação da Comissão de Ética.
Os objetivos primários foram:
a) avaliar a incidência de complicações cardiovasculares, óbito por qualquer causa e desfecho combinado (complicações cardiovasculares e/ou óbito) em até 30 dias da cirurgia;
b) identificar possíveis preditores para esses eventos adversos;
c) analisar se o RCRI e o VSG-CRI têm boa acurácia para estimar a ocorrência de complicações cardiovasculares e morte total.
Definimos complicações cardiovasculares como: infarto do miocárdio não fatal, insuficiência cardíaca descompensada, arritmia significativa e acidente vascular cerebral.
Os objetivos secundários foram:
a) verificar as causas de óbito, estratificando em cardiovascular e não cardiovascular;
b) avaliar a incidência das complicações não cardiovasculares: infecção de ferida operatória, choque séptico, choque hemorrágico, insuficiência renal grave, complicações respiratórias, tromboembolismo venoso, amputação e reoperação.
Os pacientes foram classificados em: cirurgia de carótida, cirurgia de membros inferiores, cirurgia de aorta abdominal e outras cirurgias.
Registramos as variáveis relacionadas ao paciente (anamnese, exames físico, laboratoriais, eletrocardiográficos e de imagem), ao procedimento cirúrgico realizado e à ocorrência de desfechos adversos em até 30 dias.
Para examinar os fatores de risco, fizemos comparações bivariadas das variáveis selecionadas nos pacientes que apresentaram e nos que não apresentaram desfechos. Realizamos regressão logística, e calculamos o odds ratio (OR) e o intervalo de confiança (95%) para o risco do desfecho em questão.
A capacidade discriminatória dos modelos de avaliação de risco RCRI e VSG-CRI foi examinada por meio da curva ROC (receiver operating characteristic). Utilizou-se SPSS, versão 17.
Foram analisados 141 pacientes, cuja idade média foi de 66 anos. Notamos que 62 pacientes tinham 70 anos ou mais, 92 pacientes eram do sexo masculino. A prevalência encontrada de doenças prévias está registrada na Tabela 2.
Tabela 2 Características clínicas da amostra
Idade | ||
79 (56,0%) | 62 (44,0%) | |
Gênero | ||
49 (34,8%) | 92 (65,2%) | |
Antecedentes | Ausente | Presente |
Insuficiência coronária | 85 (60,3%) | 56 (39,7%) |
IC | 64 (45,4%) | 77 (54,6%) |
Dislipidemia | 64 (45,4%) | 77 (54,6%) |
Hipertensão arterial | 23 (16,3%) | 118 (83,7%) |
AVC | 110 (78,0%) | 31 (22,0%) |
Insuficiência arterial periférica com claudicação | 28 (19,9%) | 113 (80,1%) |
Insuficiência arterial periférica com lesão trófica | 98 (69,5%) | 43 (30,5%) |
DPOC | 107 (75,9%) | 34 (24,1%) |
Diabetes | 87 (61,7%) | 54 (38,3%) |
Insuficiência Renal | 73 (51,8%) | 68 (48,2%) |
Tabagismo | 30 (21,3%) | 111 (78,7%) |
Revascularização ou angioplastia | 119 (84,4%) | 22 (15,6%) |
Baixo peso | 134 (95%) | 7 (5%) |
Sobrepeso | 91 (64,6%) | 50 (35,5%) |
Obesidade | 126 (89,3%) | 15 (10,6%) |
Cap. Func. | ||
59 (41,8%) | 82 (58,2%) | |
não | Sim | |
Uso de estatina | 16 (11,3%) | 125 (88,7%) |
Uso de betabloqueador | 44 (31,2%) | 97 (68,8%) |
Uso de ácido acetilsalicílico | 14 (9,9%) | 127 (90,1%) |
IC: Insuficiência cardíaca; AVC: Acidente vascular cerebral; DPOC: Doença pulmonar obstrutiva crônica; Cap. Func.: Capacidade funcional.
Quase metade dos indivíduos tinha insuficiência renal, definida como clearance de creatinina inferior a 60 mL/min, e 19 pacientes (13%) tinham clearancemenor ou igual a 40 mL/min. O NT pró-BNP foi menor que 100 ng/L em 30%, e maior que 500 ng/L em 30% dos pacientes.
Observou-se alguma alteração considerada significativa no eletrocardiograma de 59 (42%) pacientes, assim como radiografia de tórax sugestiva de insuficiência cardíaca em 57 (40%).
Dos 68% que fizeram ecodoplercardiograma, 86% tinham fração de ejeção acima de 50%, e 7% abaixo de 40%.
Dos 73% que realizaram cintilografia, quase 40% tinham alguma alteração, sendo hipocaptação persistente em 33 deles, hipocaptação transitória em 13, e hipocaptação transitória extensa em 2.
Quanto à avaliação de risco perioperatório, 132 pacientes (93,6%) foram considerados ASA II e 9 (6,4%), ASA III.
O RCRI definiu 6 pacientes (4,3%) como de baixo risco, 63 (44,7%) como de moderado risco e 72 (51%) como de alto risco. Segundo o VSG-CRI, 34 (24,1%) pacientes foram classificados como de baixo risco, 44 (31,2%) como de moderado risco e 63 (44,7%) como de alto risco.
Dos 141 pacientes, 15 (10,6%) foram submetidos a cirurgia de carótida, 65 (46,1%), de membros inferiores, 56 (39,7%), de aorta abdominal e 5 (3,5%) foram submetidos a outras cirurgias.
A cirurgia foi aberta em 58% e endovascular em 42%. A anestesia foi geral ou combinada em 91,5%. O tempo médio de anestesia foi de 330 min. O tempo médio de intubação orotraqueal foi de 875 min. Hemoderivados foram necessários a 61 pacientes (43,3%) e droga vasoativa, a 57 pacientes (40,4%). Em 128 (90,8%), coletou-se troponina, que se mostrou alterada em 31 pacientes (22%).
Observaram-se complicações cardiovasculares em 28 pacientes (19,9%), sendo que 20 (14,2%) evoluíram a óbito nesse período. Complicações combinadas ocorreram em 39 pacientes (27,7%).
As complicações cardiovasculares precoces encontradas foram: infarto do miocárdio, 18 pacientes; insuficiência cardíaca descompensada, 12; acidente vascular cerebral, 3; e arritmia, 6.
Dos 20 pacientes que evoluíram para óbito precocemente, 5 tiveram causa cardiovascular entre as principais causas de óbito (infarto do miocárdio e/ou choque cardiogênico). Dezoito pacientes apresentaram causa não cardiovascular entre as principais causas de óbito e, em 15 pacientes, a causa não cardiovascular foi a principal. Diagnosticou-se choque séptico em 10 pacientes, choque hemorrágico em 10 e complicações pulmonares em 4. Assim, apenas 25% dos óbitos tiveram uma causa cardiovascular e, para 75%, a não cardiovascular foi a principal causa de óbito.
As complicações não cardiovasculares ocorreram em 55 (39%) pacientes como se segue: pulmonares, 15; insuficiência renal, 15; choque séptico, 16; infecção de ferida operatória, 19; tromboembolismo venoso, 3; e reoperações, 27.
As variáveis encontradas com p < 0,05 foram:
para complicação cardiovascular precoce:idade (p = 0,028), acidente vascular cerebral (0,045), obesidade (0,025), cintilografia com alteração transitória (0,021), cirurgia aberta (p=0,024), tempo de anestesia (p = 0,08) e uso de hemoderivado (p = 0,045);
para morte: capacidade funcional ruim (p = 0,026), alteração de troponina (p = 0,002), tempo de anestesia (p = 0,010) e tempo de intubação (p = 0,019). Presença de insuficiência arterial periférica sintomática foi fator correlacionado inversamente com esse desfecho (p = 0,026).
para complicação combinada precoce: idade (p = 0,044), tempo de anestesia (p = 0,000), tempo de intubação (p = 0,018), uso de hemoderivado (p = 0,005), uso de droga vasoativa (p = 0,029) e cirurgia de aorta (p = 0,01). Cirurgia de membros inferiores (p = 0,003) correlacionou-se inversamente com esse desfecho.
As AUCs do RCRI e do VSG-CRI foram, respectivamente: para complicações cardiovasculares precoces, 0,635 e 0,639 (Figura 1); para mortalidade total, 0,562 e 0,610; e para complicação combinada precoce, 0,618 e 0,622.
Na Tabela 3, comparamos as características clínicas encontradas nos estudos de Parmar e cols.14, Bertges e cols.12, Eagle e cols.5 e Meltzer e cols. 15 em cirurgia vascular, e com o estudo de Lee e cols.13 em cirurgia geral5,12-15.
Tabela 3 Principais preditores de morbimortalidade perioperatória
Preditor/ Referência | ASA PS 1941 38 | Goldman 8 | Detsky 9 | Eagle 5 | Lee 13 | Bartel, Reilly, Older 31,32,33 | Karthikeyan 39 | Bertges 12 | Parmar 14 | Bradbury 34 | Gupta 18 | Meltzer 15 |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
EF geral | + | + | ||||||||||
Idade | + | + | + | + | + | + | + | + | ||||
DAC | + | + | + | + | + | + | + | |||||
IC | + | + | + | + | + | |||||||
Eao | + | + | ||||||||||
Arritmias | + | + | ||||||||||
Hipoxemia | + | + | ||||||||||
Hipercapnia | + | + | ||||||||||
Hipocalemia | + | + | ||||||||||
Acidose | + | + | ||||||||||
Insuf. renal | + | + | + | + | + | + | + | |||||
Hepatopatia | + | + | ||||||||||
Paciente acamado | + | + | ||||||||||
Cir. intrap. | + | + | ||||||||||
Cir. intrat. | + | + | + | + | ||||||||
Cir. aorta | + | + | + | + | + | + | ||||||
Cir. emerg. | + | + | ||||||||||
Cintilografia | + | |||||||||||
Diabetes | + | + | + | + | ||||||||
Cir. vasc. | + | + | + | |||||||||
AVC | + | |||||||||||
Cap. func. | + | + | + | |||||||||
DPOC | + | |||||||||||
Tabagismo | + | ++ | ||||||||||
Betabloq. | + | |||||||||||
Revasc. | - | |||||||||||
IAPsint | + | + | ||||||||||
IMC baixo | + | |||||||||||
BNP | + |
EF: Estado físico; DAC: Doença arterial coronariana; IC: Insuficiência cardíaca; Eao: Estenose aórtica; Cir. Intrap.: Cirurgia intraperitoneal; Cir. Intrat.: Cirurgia intratorácica; Cir. Emerg.: Cirurgia emergência; Cir. Vasc.: Cirurgia vascular; AVC: Acidente vascular cerebral; Cap. Func.: Capacidade funcional; DPOC: Doença pulmonar obstrutiva crônica; Betabloq.: Betabloqueador; Revasc.: Revascularização miocárdica; IAPsint: Insuficiência arterial periférica sintomática; IMC: Índice de massa corporal; BNP: Peptídeo natriurético cerebral. + fator de risco; - fator protetor.
Notamos semelhanças com os estudos de Parmar e cols.14, Bertges e cols.12 e Eagle e cols.5 com relação às variáveis idade, gênero e comorbidades (acidente vascular cerebral, doença pulmonar obstrutiva crônica, diabetes e insuficiência renal)5,12,14.
Ao compararmos com a média dos quatro estudos em cirurgia vascular, tivemos: maior prevalência de insuficiência arterial periférica sintomática, de insuficiência cardíaca e de hipertensão arterial; menor prevalência de revascularização miocárdica prévia; e taxa elevada de utilização de ácido acetilsalicílico, estatina e betabloqueador.
Mais da metade da nossa amostra foi classificada como capacidade funcional ruim (58%), similar à população de Eagle e cols.5, mas superando a taxa do estudo de Meltzer e cols.15.
A maioria dos nossos pacientes foi considerada de risco alto ou moderado pelos escores RCRI e VSG-CRI.
Tivemos mais cirurgias endovasculares, fator que potencialmente reduziria o nosso risco de eventos16,17. Porém, a escolha da intervenção endovascular em detrimento da cirurgia aberta pode ter sido baseada num risco operatório estimado elevado.
Outro fator que aumentou a complexidade da nossa amostra foi o menor número de cirurgias de carótida, considerada de risco intermediário10, e predomínio dos procedimentos mais complexos envolvendo aorta e membros inferiores.
Nossa prevalência de cintilografia miocárdica com isquemia foi menor do que a relatada por Eagle e cols.5
Devido à natureza dos nossos pacientes, com elevada prevalência de doenças crônicas e evidência clínica de isquemia grave de membros inferiores, além de capacidade funcional ruim, não podemos generalizar nossos achados para toda a população de pacientes submetidos à cirurgia vascular.
Tivemos uma taxa elevada de eventos precoces, superior à esperada pela literatura.
Em até 30 dias, a nossa taxa de complicação cardiovascular de 20% foi muito maior que a de 2,5% relatada por Lee e cols.13para cirurgia geral e de 6,3% por Bertges e cols.12 para cirurgia vascular. Essa taxa foi equivalente à encontrada em cirurgia de aorta abdominal aberta (19,3%-22,6%) no estudo de Bertges e cols.12.
A incidência de 12% de infarto superou a taxa de 4,5% de Eagle e cols.5, cuja amostra tinha alta prevalência de isquemia no exame cintilográfico, mas esse estudo não contava com a troponina como critério diagnóstico de infarto, o que pode ter subestimado o número de eventos encontrados.
No pós-operatório de cirurgia não cardíaca, a prevalência de morte total é baixa em populações não selecionadas e em cirurgia geral, variando de 0,02% a 2,3%. Mas esse número é maior quando a complexidade do paciente ou da cirurgia aumenta, chegando-se a 4% para colectomia, 2,9% para revascularização de membros inferiores e até 70% para cirurgia geral em paciente considerado ASA V 8,15,18,19.
Em relação à mortalidade total, nossos 14% superaram o esperado. Estudos prévios estimam mortalidade de 1,5% para cirurgia de carótida, 4,1%-7% para cirurgia de membros inferiores e 3,9%-9% para cirurgia de aorta7,20,21.
Num grande estudo (6.839 pacientes) com população com características semelhantes às da nossa, a mortalidade em 30 dias após amputação de membros inferiores variou entre 9% e 12%22.
Nosso achado em termos de mortalidade total pode refletir a gravidade da amostra e também a alta taxa de complicações cardíacas apresentada. A mortalidade após eventos pós-operatórios é elevada: Gupta e cols.18 relataram que 61% dos pacientes que desenvolveram parada cardíaca ou infarto morreram em 30 dias.Da mesma forma, essa taxa de mortalidade geral também pode ter sido reflexo da elevada incidência de complicações não cardiovasculares (27,7%) em até 30 dias. Em Meltzer e cols.15, a taxa de mortalidade para pacientes com complicações foi alta: 19% para as infecciosas, 33% para as cardíacas e 42% para as pulmonares.
Tivemos 3,5% de morte cardíaca, superior à taxa estimada para cirurgia geral em pacientes não selecionados (0,54%‑1,8%). Goldman e cols.8observaram que essa taxa pode ser muito elevada a depender das características clínicas do paciente, chegando a 56% para aquele classificado como classe IV8,18.
Encontramos 33 pacientes (23,4%) com esse desfecho. Estudos que avaliaram morte cardíaca e/ou complicação cardíaca em pacientes com fatores de risco para doença cardíaca isquêmica ou pacientes com cardiopatia conhecida e cirurgia geral encontraram valores entre 7,9% e 18%9,23.
A taxa de quase 30% de complicações não cardíacas foi superior aos 22% encontrados no estudo com colectomia de Gawande e col., cirurgia conhecida por ter elevada incidência de complicações, e aos 19% relatados em cirurgia de revascularização de membros inferiores por Meltzer e cols.15,19.
Khuri e cols.24, em 2005, realizaram um estudo multicêntrico e prospectivo com quase 106.000 pacientes e demonstraram que eventos adversos no pós-operatório foram mais importantes do que as variáveis pré- e intraoperatórias na determinação da sobrevida após cirurgia geral. A ocorrência de uma complicação dentro dos primeiros 30 dias do pós-operatório, independentemente do risco pré-operatório do paciente, reduziu a sobrevida em 69%. Nesse estudo, a ocorrência de complicação pulmonar reduziu a sobrevida a longo prazo em 87%, tendo a complicação na ferida operatória reduzido a sobrevida em 42%24.
Esse importante achado mostra a repercussão a longo prazo da morbidade no pós-operatório. Quando as complicações são cardiovasculares, é intuitivo imaginar que essas afetarão a sobrevida a longo prazo. No entanto, para as complicações não cardiovasculares, como infecções de ferida e complicações pulmonares, aventa-se a hipótese da ocorrência de um estado inflamatório exacerbado persistente como fator redutor da sobrevida24.
Assim, é preciso o desenvolvimento de estratégias para estimar o risco, monitorar e prevenir também as complicações não cardiovasculares, não subestimando sua importância, a despeito do menor número de estudos e índices preditores disponíveis até o momento para esse desfecho.
Em relação às variáveis relacionadas ao paciente, os seguintes preditores aqui encontrados são compatíveis com dados prévios da literatura: idade; acidente vascular cerebral; capacidade funcional ruim; e cintilografia com hipocaptação transitória5,8,12,13,15,18,25-28.
A variável obesidade necessitará de estudos prospectivos e maiores para confirmar sua relação com esse desfecho. De modo diverso do que encontramos, Bradburry e cols. identificaram uma menor sobrevida em dois anos em pacientes de baixo peso, com doença arterial periférica e indicação cirúrgica28.
A variável insuficiência arterial periférica sintomática teve correlação negativa com óbito em 30 dias, diferentemente do esperado15,28 e independentemente do tipo de cirurgia (aberta ou endovascular).
Observamos tendência à menor ocorrência de eventos combinados em pacientes submetidos à cirurgia de membros inferiores e maior ocorrência daqueles eventos em pacientes submetidos à cirurgia de aorta abdominal. Vários estudos prévios demonstraram a relação de cirurgia de aorta com risco de eventos adversos no pós-operatório8,9,13,18. É possível que a menor taxa de eventos encontrada no grupo de cirurgia de membros inferiores tenha sido reflexo da inclusão de cirurgias de complexidades heterogêneas (amputação, revascularização, aneurisma de poplítea).
Os fatores relacionados ao procedimento cirúrgico que se correlacionaram com complicações cardíacas e com óbito refletiram a magnitude do estresse cirúrgico e da injúria tecidual, de forma independente das doenças de base e do tipo de cirurgia realizado, mas interdependentes entre si: tempo de anestesia, necessidade de uso de hemoderivados e droga vasoativa, e tempo de intubação.
Vários índices consideram a magnitude da cirurgia na avaliação de risco de morte pós-operatória, entre eles o Possum (1998), o SRS (The Surgical Risk Scale) (2002) e o escore ISIS – Identification of Risk in Surgical Patients (2010)28,29,30.
O tempo de anestesia pode ter sido um preditor e marcador de eventos, refletindo a complexidade do procedimento em si e possíveis intercorrências intraoperatórias que prolongaram aquele tempo.
Estudos mostram a importância da estabilidade hemodinâmica no intraoperatório. O escore Apgar utilizou três parâmetros: frequência cardíaca, pressão arterial e perda de sangue.19 É possível que as variáveis droga vasoativa e hemoderivados tenham sido marcadores dessas alterações hemodinâmicas.
Como já demonstrado antes, troponina correlacionou‑se com óbito em 30 dias. Devereaux e cols.31 mostraram uma elevação na taxa de mortalidade em 30 dias de 1,9% (com troponina negativa no pós-operatório) para 9,3% (com troponina maior ou igual a 0,30 ng/mL).
A acurácia do RCRI em discriminar pacientes de alto e baixo risco para eventos perioperatórios cardíacos é considerada moderada (AUC de 0,74) para cirurgia geral. No entanto, sua performance foi considerada baixa no subgrupo de pacientes submetidos à cirurgia vascular no estudo original (AUC de 0,54 para cirurgia aberta de aorta abdominal)13,32.
Em revisão sistemática realizada por Ford e cols.32, a performance do RCRI para cirurgia geral foi similar à do estudo original (AUC de 0,75), porém também não foi um índice com boa capacidade discriminatória entre pacientes submetidos à cirurgia vascular (AUC de 0,64).
De forma similar, nosso estudo mostrou uma baixa capacidade discriminatória do RCRI para prever eventos cardiovasculares em até 30 dias (AUC de 0,635).
Uma limitação de Lee e cols.13, e também do nosso estudo, foi a de avaliar a performance preditiva de um índice apenas por meio da AUC32.
O VSG-CRI é considerado superior ao RCRI como preditor de eventos cardiovasculares após cirurgia vascular (AUC de 0,71). No entanto, não mostrou boa performance em nosso estudo (AUC de 0,639)12.
O uso de qualquer índice preditivo requer que esse se mantenha discriminativo em diferentes populações, localizações geográficas e tempo. Precisaremos aguardar os próximos estudos para concluir sobre o valor do VSG-CRI em nosso meio.
O RCRI e o VSG-CRI também não foram bons preditores de óbito precoce e complicações combinadas (cardiovascular e/ou óbito) precoces em nosso estudo.
Serão necessários estudos mais robustos para testar novos índices que incluam variáveis como: idade, índice de massa corpórea, magnitude da insuficiência arterial periférica, capacidade funcional e cintilografia miocárdica.
Além de um índice pré-operatório mais acurado para avaliação do risco clínico do paciente, poderíamos utilizar também um segundo escore logo após a cirurgia, como foi sugerido por Gawande e col. em sua proposta de construção de um escore Apgar19.
O escore Apgar considera a maior frequência cardíaca e a menor pressão arterial, além da quantidade de perda de sangue no intraoperatório, mostrando boa correlação com complicações cardíacas e não cardíacas e óbito em 30 dias19.
A partir dos dados encontrados nesse estudo, poderíamos sugerir, para estudos futuros, um escore pós-operatório imediato, que incluísse também os seguintes dados: tempo de anestesia, tempo de intubação, e necessidade de hemoderivados e de droga vasoativa.
Portanto, como os fatores relacionados ao paciente não são os únicos responsáveis pelos eventos adversos, é possível que uma avaliação perioperatória de risco em dois tempos, no pré-operatório e ao final da cirurgia, possa trazer melhor acurácia na identificação dos pacientes que necessitam de maior atenção, monitoração e exames no pós-operatório.
Nessa amostra de pacientes selecionados, encontramos taxa elevada de eventos cardiovasculares e óbito total em até 30 dias.
Observamos mais mortes não cardiovasculares do que cardiovasculares e muitas complicações não cardiovasculares.
Idade, acidente vascular cerebral, obesidade, cintilografia miocárdica com alterações isquêmicas, cirurgias de aorta, baixa capacidade funcional e alterações de troponina foram identificados como fatores de risco para eventos em até 30 dias. Os índices de avaliação de risco RCRI e VSG-CRI não foram bons preditores de eventos.