versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.111 no.1 São Paulo jul. 2018
https://doi.org/10.5935/abc.20180133
A doença cardiovascular (DCV) aterosclerótica é a principal responsável pelos eventos isquêmicos agudos coronários, proporção significativa de acidente vascular cerebral (AVC) isquêmico, bem como isquemia de artérias periféricas. Tais eventos conferem significativa mortalidade, incapacidade física e/ou mental e custo para o indivíduo e para a sociedade.1
A causalidade entre LDL-C plasmático e a reduzida captação mediada pelo receptor de LDL-C na fisiopatologia da DCV tem sido estabelecida com muita consistência.2 Para pacientes com muito alto risco de eventos prematuros, incluindo aqueles com hipercolesterolemia familiar (HF), LDL-C elevado é um fator de risco extremamente prevalente.3
Uma questão clínica relevante é a dificuldade na obtenção dos níveis de LDL-C recomendados pelas diretrizes para indivíduos com muito alto risco cardiovascular (CV). Mesmo com o uso de estatinas de alta potência, uma proporção substancial desses pacientes não atingirá o alvo do LDL-C, em parte como resultado de efeitos farmacogenéticos que determinam ampla variabilidade inter-individual na resposta às estatinas. Essa questão enfatiza a necessidade de redução adicional do LDL-C com novas opções terapêuticas que visem essas partículas aterogênicas.4
A protease PCSK9 (proprotein convertase subtilisin/kexin type 9), um membro da família protease-serina, desempenha um papel central na regulação da atividade do receptor hepático do LDL-C. Sujeitos com mutações no gene PCSK9 e que apresentam perda de função terão risco substancialmente reduzido de desenvolver doença coronária resultante de menores níveis do LDL-C; inversamente, indivíduos heterozigotos para a mutação da PCSK9, com ganho de função, apresentam um fenótipo consistente com HF.
Esses achados estimularam a investigação do uso de inibidores da PCSK9 (I-PCSK9) como uma alternativa terapêutica inovadora para melhorar o controle de níveis elevados do LDL-C.5,6
Inúmeros estudos clínicos com diferentes anticorpos monoclonais contra PCSK9 circulante, tanto isoladamente quanto em adição às estatinas, têm confirmado profundas reduções dos níveis do LDL-C, atingindo até 60%.7,8
O estudo FOURIER, publicado em 2017, demonstrou redução significativa de eventos clínicos relevantes como infarto agudo do miocárdio (IAM) e AVC isquêmico aterotrombótico em pacientes com DCV estabelecida e plenamente tratados com estatinas de moderada e alta potência, associadas ou não à ezetimiba. A mediana de LDL-C era de 92 mg/dl e aqueles que receberam evolocumabe atingiram valor mediano do LDL-C de 30 mg/dl. Dados de segurança não mostraram efeitos adversos significativos, exceto maior incidência de reação no local de aplicação, no seguimento mediano de 2,2 anos.9
Informações adicionais sobre efeitos neurocognitivos com o uso desse I-PCSK9 foram recentemente publicadas no estudo EBBINGHAUS e não demonstraram piora, mesmo em indivíduos com níveis do LDL-C muito baixos.10
Em outra pesquisa que utilizou o anticorpo monoclonal bococizumabe, foi demonstrada redução significativa nos eventos CV, similar à obtida com evolocumabe no estudo FOURIER. No entanto, o estudo SPIRE foi interrompido devido à formação de anticorpos contra a droga e consequente redução de resposta terapêutica.11
O Estudo ODYSSEY, recentemente apresentado no Congresso do American College of Cardiology, avaliou pacientes que haviam apresentado síndrome coronária aguda no período entre 1 e 12 meses antes da randomização. Todos os indivíduos estavam tratados com estatinas de moderada e alta potência, associadas ou não à ezetimiba. O seguimento médio foi de 2,8 anos.12 Esse estudo demonstrou significativa redução de IAM não fatal, angina instável e AVC isquêmico naqueles que foram randomizados para receber o I-PCSK9 alirocumabe. Achado interessante foi que o subgrupo de indivíduos com LDL-C maior ou igual a 100 mg/dl (já tratados com estatinas) e que recebeu alirocumabe apresentou o maior benefício, inclusive com redução da mortalidade total em 29%, comparado com o placebo.
Embora o advento da medicina de precisão e os tratamentos inovadores tenham sido o guia para uma abordagem individualizada na prevenção e no manejo do paciente, as restrições financeiras ao crescente aumento do custo dos sistemas de saúde ao redor do mundo frequentemente requerem que o benefício terapêutico seja balanceado contra o custo de determinada intervenção.
A recentemente atualizada Diretriz Brasileira de Dislipidemias e Prevenção da Aterosclerose recomenda a utilização dos I-PCSK9 (evolocumabe e alirocumabe) somente em pacientes com risco CV elevado, em tratamento otimizado com estatinas na maior dose tolerada, associado ou não à ezetimiba, e que não tenham alcançado as metas do LDL-C ou não HDL-C recomendadas.13
No entanto, a diretriz brasileira não aponta quais indivíduos terão maior benefício com o uso dessa nova classe de medicamento.
Estudos têm demonstrado que a quantificação do “benefício absoluto” de uma terapia adicional é um fator importante para determinar a decisão clínica de usar ou não esse novo tratamento. Aspectos financeiros também devem ser levados em conta, mas, por enquanto, não temos análises de custo-efetividade com os I-PCSK9 no Brasil.14
Considerando que os I-PCSK9 apresentam um custo acima daquele das demais drogas para o tratamento CV, torna-se importante identificar, na população de indivíduos de alto risco, aqueles para quem o tratamento estará associado a maior relevância clínica. Essa pode ser estimada pelo número necessário para tratar (NNT) para prevenir o primeiro desfecho em determinado tempo.15
O cálculo do NNT também pode auxiliar a identificar grupos de pacientes que tenham maior benefício da adição de uma terapia não estatina, usando uma combinação de risco absoluto e limiares do LDL-C.
Dessa maneira, a seleção de pacientes para uso de I-PCSK9 deste posicionamento do Departamento de Aterosclerose da Sociedade de Cardiologia do Rio Grande do Sul é mais conservadora que a maioria das atuais diretrizes para o uso dessas drogas. Sendo assim, é importante enfatizar que indivíduos que não se enquadrem nas indicações para uso dos anticorpos contra PCSK9 apresentadas neste posicionamento não estão proibidos de recebê-los, pois a decisão terapêutica envolve julgamento clínico e consenso entre médico e paciente.
Portanto, o objetivo deste posicionamento é identificar quais são os indivíduos que apresentam maior benefício com o uso dessa nova classe de medicamento para tratar a hipercolesterolemia.
Neste primeiro posicionamento não abordaremos indicações para uso em indivíduos intolerantes às estatinas ou aqueles em prevenção primária de alto risco, como na HF.
Considerando que evolocumabe e alirocumabe reduzem consistentemente o LDL-C em pelo menos 50%, dois fatores devem ser considerados para quantificar o benefício do tratamento: as características clínicas dos indivíduos e os níveis do LDL-C obtidos após tratamento máximo com estatina / ezetimiba.
É importante identificar as características clínicas dos pacientes com risco CV, baseado no risco “absoluto” de eventos CV em 10 anos.16 O maior benefício com o uso dos I-PCSK9 é obtido em indivíduos com risco CV acima de 20% em 10 anos. Dessa maneira, pacientes com eventos ou procedimentos coronários prévios, ou AVC prévio, ou aneurisma de aorta são classificados como “alto risco” (risco entre 20% e 29% em 10 anos).
Pacientes com “muito alto risco” para eventos CV (acima de 30% em 10 anos) são aqueles com síndrome coronária aguda recorrente ou revascularizações arteriais de repetição ou repetidos AVCs, que ocorrem durante o primeiro ano do evento inicial. Idade avançada, diabetes ou doença arterial oclusiva periférica associada também constituem fatores agravantes.
Associado a essas informações clínicas, indicamos os pontos de corte para níveis do LDL-C a partir dos quais existe maior benefício do tratamento com os I-PCSK9.
O Estudo FOURIER mostrou que, mesmo aqueles indivíduos que estavam no menor quartil do LDL-C apresentaram significativa redução de eventos CV ao acrescentar evolocumabe.
No entanto, ao analisar essa variável, é importante lembrar que a redução do risco absoluto para a mesma redução relativa do LDL-C será menor quando o LDL-C basal for mais baixo (Figura 1). Em outras palavras, quanto mais elevado o nível do LDL-C após tratamento com estatinas/ezetimiba, maior será o benefício do tratamento com os I-PCSK9 e menor será o NNT.17
Figura 1 Redução do risco absoluto para a mesma redução relativa do LDL-C a partir de diferentes níveis iniciais do LDL-C. (Figura reimpressa com permissão de Oxford University Press).17
A redução relativa nos eventos CV para estatinas, ezetimiba e anticorpos monoclonais contra PCSK9 tem demonstrado consistência com a relação descrita na meta-análise do CTT (Cholesterol Treatment Trialists) onde cada redução de 39 mg/dl no LDL-C foi associada com 21% de redução nos eventos CV maiores.18
Ao associar as duas variáveis apresentadas em uma excelente análise, Robinson et al.,16 estimaram, de acordo com o risco CV dos indivíduos e dos seus níveis do LDL-C sob tratamento com estatinas, os NNTs em 5 anos para prevenir um evento CV.16 (Tabela 1)
Tabela 1 NNT em 5 anos para prevenir um evento cardiovascular (CV) em indivíduos com "alto risco CV" e "muito alto risco CV", já tratados com estatinas de alta potência, ao adicionar inibidor de PCSK9 (I-PCSK9)
LDL-C inicial | Redução do LDL-C em 50% com I-PCSK9 | Redução do LDL-C em 65% com I-PCSK9 |
---|---|---|
Alto risco (risco de DCVA em 10 anos de 20-29%) | ||
190 | 19 | 15 |
160 | 23 | 18 |
130 | 28 | 22 |
100 | 37 | 28 |
70 | 53 | 40 |
Muito alto risco (risco de DCVA em 10 anos ≥ 30%) | ||
190 | 13 | 10 |
160 | 15 | 12 |
130 | 19 | 15 |
100 | 25 | 19 |
70 | 35 | 27 |
LDL-C: low-density-lipoprotein cholesterol; PCSK9: proprotein convertase subtilisin/kexin type 9; DCVA: doença cardiovascular aterosclerótica. Tabela adaptada com permissão de Elsevier.16
Embora exista um consenso que NNTs até 50 são considerados aceitáveis19 para novas intervenções, devemos lembrar que os I-PCSK9 são drogas de alto custo. Por outro lado, NNTs abaixo de 20 são raramente obtidos em intervenções para tratamento ou prevenção de DCV, resultantes de estudos atuais.20
Dessa maneira, partindo da premissa que os I-PCSK9 reduzem em pelo menos 50% o LDL-C, de maneira consistente, consideramos que NNTs abaixo de 30 são plenamente aceitáveis e identificam um subgrupo de indivíduos que terão grande benefício com o uso dessa nova classe de medicamentos.
Consideramos, portanto, que pacientes com “alto risco” CV, plenamente tratados com estatina de alta potência associada à ezetimiba, e que apresentem LDL-C acima de 130 mg/dl, terão expressiva redução do risco de eventos CV ao associar I-PCSK9.
Da mesma maneira, indivíduos com “muito alto risco” CV e LDL-C acima de 100 mg/dl após uso de estatina e ezetimiba apresentam grande chance de obter significativa redução de desfechos e do risco CV residual com o uso dessa nova classe medicamentosa.
Este posicionamento do Departamento de Aterosclerose da Sociedade de Cardiologia do Rio Grande do Sul identifica pacientes que podem obter o maior benefício clínico secundário à inibição da PCSK9. Esses são os indivíduos com maior risco CV associado à maior probabilidade de atingir grande redução do LDL-C. Leva em conta, também, restrições financeiras dentro do sistema de saúde e do cenário econômico atual.
É importante enfatizar que indivíduos que não se enquadrem nas indicações para uso dos anticorpos contra PCSK9 apresentadas neste posicionamento não estão proibidos de ter indicado este tratamento, pois a decisão terapêutica envolve julgamento clínico e consenso entre médico e paciente.