versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.32 no.2 São Paulo 2020 Epub 03-Abr-2020
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20192019002
A gagueira é um distúrbio da fluência com início na infância, neurodesenvolvimental, complexo e multifatorial, caracterizado por frequentes interrupções no fluxo da fala(1). Habilidades linguísticas, cognitivas e motoras podem estar relacionadas com o distúrbio(2), e especialmente a variável fonológica tem recebido considerável atenção na literatura(3).
A teoria Covert Repair Hypothesis(4) propõe que a codificação fonológica atrasada em pessoas que gaguejam leva a um aumento da correção interna de erros de codificação, causando eventos de gagueira. Acredita-se também que a maior demanda fonológica prejudica a estabilidade do sistema motor vulnerável nas pessoas que gaguejam(2). Portanto, algumas teorias da gagueira sugerem que a dificuldade na codificação fonológica pode atrasar ou interromper o planejamento e a execução articulatória subsequente, causando as disfluências(5).
Reportadamente, o transtorno fonológico em crianças que gaguejam coocorre em uma taxa substancial: estima-se que de 16% a 30% das crianças com gagueira apresentem também transtorno fonológico, enquanto a prevalência na população em geral é de 6% a 8%(6,7). Apesar da frequente referência na literatura à coexistência de disfluências em crianças que apresentam transtorno fonológico, há poucos estudos que descrevem detalhadamente as manifestações das disfluências que possam diferenciar as duas condições(7).
Destacando-se a coocorrência do distúrbio fonológico e da gagueira, um estudo demonstrou que as crianças com distúrbio fonológico apresentam, com bastante recorrência, disfluências ou marcas hesitativas, como hesitações, reformulações, repetições, alongamentos, pausas silenciosas e preenchidas, além de falsos inícios(8). No entanto, embora as autoras dessa pesquisa descrevam a presença de disfluências em crianças com distúrbio fonológico, a interpretação dada às disfluências é a de que seriam constitutivas no processo de aquisição fônica(8).
Ainda que estudos apontem para a presença de disfluências em crianças com transtorno fonológico(7,8), o número de investigações que aprofundam a análise das disfluências é restrito e, consequentemente, pouco se sabe sobre as semelhanças e as diferenças entre as rupturas que ocorrem nesses dois distúrbios.
Sobre o assunto, particularmente, pressupõe-se que: (H1) sujeitos com gagueira e sujeitos com ambos os distúrbios em comorbidade apresentariam maior frequência de ocorrência tanto em relação às disfluências típicas da gagueira quanto em relação às outras disfluências comparativamente àqueles com transtorno fonológico; (H2) no tocante à tipologia das disfluências, haveria diferenças entre os sujeitos com transtorno fonológico em relação aos sujeitos com gagueira e àqueles com gagueira e transtorno fonológico em comorbidade, ou seja, sujeitos com transtorno fonológico apresentariam predominantemente as outras disfluências, enquanto os sujeitos com gagueira e com gagueira e transtorno fonológico apresentariam predominantemente as disfluências típicas da gagueira.
Acredita-se que o detalhamento das manifestações relativas às disfluências apresentadas por sujeitos com os distúrbios isolados, por um lado, e outros com os distúrbios em comorbidade, por outro lado, poderá auxiliar no diagnóstico diferencial entre as condições e, consequentemente, favorecer a melhor conduta terapêutica.
Assumindo que sujeitos que gaguejam e sujeitos com transtorno fonológico poderiam apresentar diferenças tanto no tocante à frequência de ocorrência quanto no tocante à tipologia das disfluências, o objetivo deste estudo foi identificar os indicadores de fluência da fala entre sujeitos com gagueira, com transtorno fonológico e com os dois distúrbios em comorbidade.
Trata-se de uma pesquisa transversal e observacional prospectiva com comparação entre grupos. O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (nº 2.070.227). Ressalta-se que foram respeitados todos os quesitos que regem a Resolução do Conselho Nacional de Saúde – nº 466/2012, e os sujeitos tiveram sua participação autorizada mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e Termo de Assentimento Livre e Esclarecido.
A coleta de dados para compor a amostra ocorreu durante o primeiro semestre de 2017. A amostra foi composta por 30 sujeitos de ambos os sexos, com idade entre 4 e 11 anos e 11 meses, provenientes do Laboratório de Análise Acústica – LAAc e Laboratório de Estudos da Fluência – LAEF, do Departamento de Fonoaudiologia, Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP - Marília. Os participantes foram divididos em três grupos compostos por dez sujeitos cada: grupo com gagueira do desenvolvimento (GG); grupo com o diagnóstico de transtorno fonológico (GTF); e grupo com os dois diagnósticos em comorbidade (GGTF).
Foram adotados como critérios de inclusão para esta pesquisa os sujeitos falantes nativos do Português Brasileiro, monolíngues, sem atendimento prévio de fonoterapia, na faixa etária de 4 a 11 anos e 11 meses de idade. A média de idade do GG foi de 8,40; do GTF foi de 6,70; e no GGTF foi de 6,10 anos.
Para o GG, foram incluídos aqueles que atenderam ao critério diagnóstico para a gagueira do desenvolvimento persistente com a presença de no mínimo 3% de disfluências típicas da gagueira(9,10) e 12 meses de duração das disfluências.
Especificamente, para o GTF, foram incluídos, após a avaliação da fonologia, os diagnosticados com transtorno fonológico e que na fala espontânea apresentaram menos de 3% de disfluências típicas da gagueira; não cumprindo, portanto, o critério diagnóstico para a gagueira.
O diagnóstico do transtorno fonológico considerou a análise dos processos fonológicos, de acordo com a idade em que eles deveriam ser suprimidos, ou seja, considerou a presença de processos fonológicos persistentes, não mais esperados para a faixa etária da criança, aliada às provas diagnósticas complementares, tais como: avaliação da percepção da fala, prova de diadococinesia oral, repetição de palavras multissilábicas, prova de acento lexical, entre outras.
No terceiro e último grupo, foram incluídos os sujeitos com diagnóstico de gagueira do desenvolvimento persistente em comorbidade ao transtorno fonológico.
Excluíram-se desta pesquisa aqueles que apresentaram alterações neurológicas, auditivas, comportamentais, de aprendizagem, deficiência mental, síndromes genéticas, condições psiquiátricas ou outras alterações pertinentes que poderiam influenciar as manifestações de disfluências ou, ainda, aqueles que, após a coleta e transcrição da amostra de fala, não apresentaram 200 sílabas fluentes. Os dados referentes às diversas possibilidades de alterações que pudessem influenciar o diagnóstico final foram obtidos por meio da análise dos prontuários de cada participante, os quais, no momento da admissão no serviço prestado pela Clínica Escola, foram triados e respectivamente diagnosticados.
Os procedimentos da pesquisa foram distribuídos em duas etapas: avaliação da fluência da fala e avaliação da fonologia.
Para a avaliação da fluência da fala, realizada com todos os sujeitos da amostra, optou-se pela análise da amostra de fala espontânea, que constitui uma tarefa de maior complexidade tanto motora quanto linguística(11), assim como favorece a ocorrência de disfluências na fala se comparada ao canto, à leitura, à fala dirigida, entre outros(12).
Para a coleta de dados, fizeram-se registros audiovisuais em meio digital, de cada sujeito, em interação com a avaliadora. Realizou-se a análise das amostras de fala, que foram transcritas num total de 200 sílabas fluentes. As disfluências foram caracterizadas em Disfluências Típicas da Gagueira (repetição de palavras monossilábicas, repetição de sílabas, repetição de som, bloqueio, prolongamento, pausa, intrusão) e Outras Disfluências (interjeição, hesitação, revisão, palavras não terminadas, repetição de frase, repetição de palavras não monossilábicas), conforme proposto na literatura(13).
Para determinar a frequência das rupturas, utilizaram-se as seguintes medidas: Disfluências Típicas da Gagueira (DTG), Outras Disfluências (OD) e Total de Disfluência (TD). Para calcular a porcentagem de DTG, o número total de eventos de DTG foi multiplicado por 100 e dividido por 200, isto é, o total de sílabas fluentes. Os mesmos cálculos foram realizados com o total de OD e total das disfluências (TD, ou seja, a soma das DTG com as OD).
Para a avaliação fonológica dos GTF, isolado ou em comorbidade com a gagueira, aplicou-se o Instrumento de Avaliação de Fala para Análise Acústica (IAFAC)(14). Este instrumento contém 96 figuras, que engloba a produção de palavras contendo todos os fonemas do sistema fonológico do Português Brasileiro, no contexto das vogais /i, a, u/, considerando tanto a posição de ataque simples, ataque complexo, quanto a posição de coda silábica. Os dados coletados por meio do instrumento IAFAC foram gravados e, posteriormente, transcritos foneticamente.
Fez-se uma análise estatística descritiva e inferencial dos dados com o uso do software STATISTICA 7.0. Na comparação entre os grupos, foi utilizado o teste paramétrico ANOVA One-Way, adotando-se como variável independente os três grupos de sujeitos (GG, GTF e GGTF), e como variáveis dependentes, o total de Disfluências Típicas da Gagueira (DTG) e o total de outros tipos de disfluências (OD). Nos casos em que houve um efeito significante para o grupo, foi utilizado o teste post-hoc Bonferroni, a fim de se verificar quais grupos se diferenciaram.
Na comparação dos grupos, considerando-se cada variável analisada separadamente (disfluências típicas da gagueira: repetição de palavra monossilábica, repetição de parte da palavra, repetição de som, prolongamentos, bloqueios, pausas e intrusões; e outras disfluências: hesitação, interjeição, revisão, repetição de segmento, repetição de frase, repetição de palavra não monossilábica e palavra não terminada), utilizou-se o teste não paramétrico Kruskal-Wallis para comparações múltiplas.
Ao se comparar a frequência das Disfluências Típicas da Gagueira (DTG) e das Outras Disfluências (OD) entre os três grupos estudados, a Anova One-Way mostrou uma diferença estatística entre os grupos para as DTG (F (2,27) =14,83, p<0,00) e o total das disfluências (TD) (F (2,27) =9,74, p<0,00), e não para o total de OD (F (2,27) =1,98, p=0,15) (Figura 1). Em seguida, realizou-se uma análise post-hoc com o uso do Teste Bonferroni, a fim de se verificar quais eram os grupos que se diferenciaram. Constatou-se que os sujeitos do GTF apresentaram menor frequência de ocorrência de DTG e do TD comparativamente aos grupos GG e GGTF (p<0,00), porém não houve diferença entre os grupos GG e GGTF (p=0,17 para DTG e p=0,78 para TD).
Legenda: DTG = Disfluências Típicas da Gagueira; OD = Outras Disfluências; TD = Total de Disfluências; GTF = grupo com diagnóstico de transtorno fonológico; GG = grupo com diagnóstico de gagueira do desenvolvimento; GGTF = grupo com diagnóstico de gagueira do desenvolvimento em comorbidade com o diagnóstico de transtorno fonológico
Figura 1 Gráfico de comparação por pares para a frequência das Disfluências Típicas da Gagueira, Outras Disfluências e Total de Disfluências. Nota: As chaves com os asteriscos representam os grupos que se diferenciaram entre si. Média +/- erro padrão das médias dos eventos de disfluências dos grupos participantes. *Diferença estatística (p<0,05) – teste Bonferroni. Fonte: Elaborado pela autora
Com relação à tipologia das disfluências, pôde-se observar (Tabela 1) diferença do GTF e do GGTF nas seguintes variáveis: “repetição de palavras monossilábicas” (H (2,30) =11,73, p=<0,00); “repetição de parte da palavra” (H (2,30) =8,70, p=<0,01); e “prolongamento” (H (2,30) =8,98, p=<0,01). Ainda no que se refere às DTG, para a variável “bloqueio”, o GTF é diferente tanto do GG quanto do GGTF, (H (2,30) =12,63, p=<0,00), apresentando menor frequência de ocorrência.
Tabela 1 Comparação por tipologia de Disfluências Típicas da Gagueira em função dos grupos
Grupo | Disfluências Típicas da Gagueira | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
RPM | RPP | RSO | P | B | PA | INT | |
GG | 14,20 | 17,15 | 19,55 | 16,80 | 19,80 | 15,95 | 16,50 |
GTF | 9,55 | 9,55 | 11,30 | 9,55 | 8,00 | 12,70 | 16,50 |
GGTF | 22,75 | 19,80 | 15,65 | 20,15 | 18,70 | 17,85 | 13,50 |
Valor de H | 11,73 | 8,70 | 5,99 | 8,98 | 12,63 | 2,40 | 1,44 |
Valor de P | 0,00* | 0,01* | 0,05 | 0,01* | 0,00* | 0,30 | 0,48 |
Legenda: GG = grupo com diagnóstico de gagueira do desenvolvimento; GTF = grupo com diagnóstico de transtorno fonológico; GGTF = grupo com diagnóstico de gagueira do desenvolvimento em comorbidade com o diagnóstico de transtorno fonológico; RPM = repetição de palavra monossilábica; RPP = repetição de parte da palavra; RSO = repetição de som; P = prolongamento; B = bloqueio; PA = pausa; INT = intrusão; Valor de H = valor referente à distribuição da curva H; Valor de P = valor da probabilidade; * = resultado estatisticamente significante. Fonte: Elaborado pela autora
A comparação da frequência de ocorrência das tipologias das outras disfluências em função dos grupos é apresentada na Tabela 2. Em relação às tipologias analisadas nas OD (hesitação, interjeição, revisão, repetição de segmento, repetição de frase, repetição de palavra não monossilábica e palavra não terminada), somente a variável “interjeição” diferenciou o GTF do GG (H (2,30) =12,22, p=0,02).
Tabela 2 Comparação da frequência das tipologias das Outras Disfluências em função dos grupos
Grupo | Tipologia das Outras Disfluências | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
H | I | REV | RSEG | RF | RPNM | PNT | |
GG | 14,05 | 22,10 | 18,65 | 11,80 | 16,05 | 11,85 | 14,40 |
GTF | 14,40 | 8,50 | 16,55 | 14,50 | 14,50 | 14,35 | 17,70 |
GGTF | 18,05 | 15,90 | 11,30 | 20,20 | 15,95 | 20,30 | 14,40 |
Valor de H | 1,28 | 12,22 | 4,11 | 5,22 | 1,03 | 5,65 | 1,11 |
Valor de P | 0,52 | 0,02* | 0,12 | 0,07 | 0,59 | 0,05 | 0,57 |
Legenda: GG = grupo com diagnóstico de gagueira do desenvolvimento; GTF = grupo com diagnóstico de transtorno fonológico; GGTF = grupo com diagnóstico de gagueira do desenvolvimento em comorbidade com o diagnóstico de transtorno fonológico; H = hesitação; I = interjeição; REV = revisão; RSEG = repetição de segmento; RF = repetição de frase; RPNM = repetição de palavra não monossilábica; PNT = palavra não terminada; Valor de P = valor de Probabilidade; Valor de H = valor referente à distribuição da curva H. Fonte: Elaborado pela autora
No presente estudo, realizaram-se a análise e a comparação da frequência e da tipologia das disfluências de sujeitos com gagueira, transtorno fonológico e com os dois distúrbios em comorbidade.
A primeira hipótese levantada foi parcialmente confirmada, tendo em vista que os sujeitos do GG e GGTF manifestaram maior ocorrência de disfluências típicas da gagueira quando comparados com os sujeitos do GTF, no entanto os grupos foram semelhantes quanto às outras disfluências.
A menor frequência de ocorrência das DTG no GTF parece estar relacionada principalmente ao perfil de fluência da fala de sujeitos fluentes, uma vez que as disfluências típicas da gagueira são pouco frequentes em sujeitos fluentes(15) e não caracterizam as manifestações apresentadas pelos sujeitos com transtorno fonológico.
Sujeitos do GG e do GGTF apresentaram semelhanças quanto à frequência de ocorrência das DTG e OD. Esse achado evidencia que as DTG caracterizam as manifestações da gagueira(16-20), independentemente de estar associada ou não ao transtorno fonológico. Considerando-se esse resultado, ainda que o GGTF seja composto por sujeitos com os distúrbios em comorbidade, quanto ao perfil quantitativo de DTG e OD, o grupo apresentou-se semelhante ao encontrado no GG.
Esse achado corrobora descrições da literatura de que o excesso de disfluências típicas da gagueira é a principal característica do distúrbio(16-20), e essas rupturas constituem um dos mais importantes parâmetros para o diagnóstico da gagueira.
Tendo em vista que a fala é a principal forma de comunicação humana e que sua eficiência em transferir informação depende da fluência(21), sujeitos com gagueira ou com gagueira e transtorno fonológico em comorbidade apresentam prejuízos importantes na comunicação. Ressalta-se que gagueira não é uma simples dificuldade de fala, mas um sério problema na comunicação(22).
Portanto, esse achado, somado ao fato de que de 16% a 30% das crianças com gagueira apresentam também transtorno fonológico(6,7), deve ser considerado pelo fonoaudiólogo no processo diagnóstico e, consequentemente, no planejamento de uma terapia personalizada que atenda às reais necessidades de cada paciente. Um sujeito com prejuízo na inteligibilidade, que pode ocorrer devido ao transtorno fonológico(23), somado às disfluências típicas da gagueira involuntárias e frequentes que ocorrem no fluxo da fala, apresentará maior prejuízo na comunicação e estará mais sujeito a sofrer bullying. Conforme descrito na literatura(3), esse pode ser um importante subgrupo de pessoas com gagueira que merece melhor atenção por parte dos pesquisadores.
A análise e a comparação quantitativa das outras disfluências mostraram que os três grupos foram semelhantes. Vale ressaltar que, apesar de os sujeitos dos três grupos analisados apresentarem algum tipo de distúrbio da comunicação, não houve um aumento na quantidade das outras disfluências em relação aos sujeitos com desenvolvimento típico, conforme os valores de referência indicados em estudo anterior(15). Esses achados estão de acordo com os resultados de um estudo(24) no qual as autoras encontraram semelhança na quantidade de OD entre um grupo com transtorno fonológico e um grupo controle.
Relacionadas ao processamento da linguagem, as outras disfluências refletem as incertezas e imprecisões linguísticas, visando ampliar a compreensão da mensagem(25), justificando os resultados desta pesquisa. Essas disfluências são constitutivas da dinâmica da fala de qualquer pessoa, uma vez que o planejamento e a execução da fala são complexos e envolvem a conexão de muitas áreas cerebrais. Elas também podem indicar uma forma de atenuar as dificuldades na fala no momento em que os sujeitos com transtorno fonológico tentam alcançar a pronúncia-alvo(8,24) ou os sujeitos com gagueira tentam evitar as DTG.
A segunda hipótese também foi parcialmente confirmada, uma vez que apenas determinadas tipologias das DTG e OD apresentaram diferenças significantes entre os grupos. No que diz respeito às tipologias analisadas das Outras Disfluências, somente a “interjeição” ocorreu com maior frequência no GG em relação ao GTF.
Com relação às quatro tipologias das DTG (repetição de palavras monossilábicas, repetição de parte da palavra, prolongamento e bloqueio), elas foram menos frequentes no GTF quando comparadas com o GGTF. Parece coerente explicar que a diferença encontrada entre os grupos pode ser resultado da complexidade motora durante a emissão da fala espontânea do GG. Nesta população, as rupturas podem ser explicadas pela diferença entre o comando motor gerado e o comando motor desejado durante a fala, tendo em vista que quanto maior a complexidade motora e melódica durante uma tarefa, maior será o prejuízo na fluência da fala(11).
Quanto à não diferenciação entre o GG e o GGTF para as variáveis “repetição de palavras monossilábicas”, “repetição de parte da palavra” e “prolongamento”, pressupõe-se a presença de disfunção nos circuitos motores dos núcleos da base, característico do diagnóstico de gagueira. Ainda que o GGTF apresente concomitantemente o diagnóstico de transtorno fonológico nos sujeitos com gagueira, está presente um distúrbio no sistema medial(12), justificando a ocorrência das disfluências e sua não diferenciação entre os grupos supracitados, visto que a tarefa escolhida para esta pesquisa foi a fala espontânea, em que a dominância do sistema medial ocorre principalmente quando a fala transmite pensamentos ou emoções (presentes na amostra de fala, tarefa da presente pesquisa).
A não diferenciação destas tipologias entre o GG e GTF pode ter ocorrido em virtude de uma tendência de menor ocorrência destas disfluências no GG em relação ao GGTF. Apesar de a diferença não ser estatisticamente significante, é possível notar que as médias de DTG e do total das disfluências (TD) foram maiores no GGTF quando comparadas ao GG.
No que concerne especificamente à variável “bloqueio”, os sujeitos do GTF apresentaram menor frequência de ocorrência dessa tipologia, tanto do GG quanto do GGTF. O bloqueio representa uma tipologia muito característica da fala de pessoas com gagueira, frequentemente está presente na descrição do distúrbio(26,27) e sua presença é muito rara na fala de pessoas que não manifestam gagueira.
Levando em consideração as experiências, os sentimentos e as atitudes negativas que os sujeitos com alterações de comunicação podem apresentar, mais especificamente os sujeitos que gaguejam, interpreta-se que uma das possibilidades da maior ocorrência de “bloqueios” no GG e GGTF pode resultar dessa resposta de congelamento transferida para a fala desses sujeitos que experimentam emoções negativas percebidas como ameaça e se manifestando como uma “resposta de congelamento”, caracterizada por uma inibição do movimento(28).
Com atenção aos resultados obtidos, parece razoável suspeitar que ambos os distúrbios da fala – transtorno fonológico e gagueira do desenvolvimento – podem compartilhar aspectos subjacentes, como proposto em estudo anterior(29).
O primeiro aspecto compartilhado refere-se ao fato de que ambos os distúrbios constituem “distúrbios da comunicação”. Os sujeitos que apresentam algum “distúrbio de comunicação” podem adquirir um senso de “fracasso” como falante e, consequentemente, podem sofrer em suas tentativas de produção da fala. O segundo aspecto compartilhado diz respeito a uma predisposição comum ao transtorno fonológico e à gagueira do desenvolvimento, que poderia causar manifestações semelhantes nestas condições. Por fim, suspeita-se que um terceiro aspecto compartilhado por ambos os distúrbios seria a presença de um déficit central de processamento neurológico ou mesmo um distúrbio neuromotor ou atraso, que levaria a interrupções na programação temporal(30), propiciando manifestações semelhantes nos sujeitos de ambos os grupos.
Em termos científicos, novos delineamentos de estudos podem ser propostos contemplando tanto a análise da gravidade da gagueira quanto a análise da gravidade do transtorno fonológico. Quanto às implicações clínicas, acredita-se que o fonoaudiólogo precisa, necessariamente, analisar a tipologia das disfluências para distinguir sujeitos com diagnóstico de gagueira, transtorno fonológico e os dois distúrbios em comorbidade. Além disso, a presença de bloqueio representa um importante marcador para o diagnóstico de gagueira.
A comparação da frequência das disfluências mostrou que o GTF apresentou menor quantidade das disfluências típicas da gagueira e do total das disfluências em relação ao GG e GGTF. Repetições de palavra monossilábica, de parte de palavra e prolongamentos ocorreram mais frequentemente no GGTF quando comparadas com o GT. O bloqueio foi menos frequente no GT em relação ao GG e GGTF.
Os três grupos foram semelhantes quanto às outras disfluências. As interjeições foram mais frequentes no GG quando comparado com o GTF.
Uma vez que o transtorno fonológico apresenta todos os tipos de disfluências típicas da gagueira, a tipologia das rupturas parece pouco adequada como indicador para o diagnóstico diferencial entre os quadros estudados, sendo a frequência com que essas tipologias ocorrem o melhor indicador para o diagnóstico diferencial.