versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.24 no.4 Rio de Janeiro abr. 2019 Epub 02-Maio-2019
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018244.06062017
A doença de Chagas ainda representa um importante problema de saúde pública, dada a prevalência atual de infecção pelo Trypanosoma cruzi de aproximadamente 5,7 milhões de indivíduos na América Latina, com o maior número de infectados na Argentina, México e Brasil. Neste último, especificamente, estima-se que 1,2 milhão de pessoas sejam acometidas pela doença1.
A transmissão vetorial, a qual ocorre pela penetração de parasitos na corrente sanguínea através da porta de entrada criada na pele pela picada do inseto hematófago, ainda se apresenta como a mais importante via de infecção de humanos pelo T. cruzi1, sendo facilitada pela grande variedade de triatomíneos no Brasil, o qual abriga sessenta e duas espécies, das quais trinta estão no ambiente domiciliar e dez são consideradas epidemiologicamente importantes2.
Em relação ao Nordeste brasileiro, o mesmo destaca-se quanto às taxas de dispersão, infestação domiciliar, colonização e infecção natural, antropofilia e número de capturas das espécies Triatoma brasiliensis, Triatoma pseudomaculata e Panstrongylus megistus. Além disso, as espécies Triatoma brasiliensis e Triatoma pseudomaculata encontram-se em todos os estados nordestinos, sendo uma preocupação devido a sua grande dispersão e difícil controle3.
No estado do Rio Grande do Norte, a primeira descrição científica de infecção pelo T. cruzi foi realizada em estudo de soroprevalência, o qual apontou 15,5% de positividade4 e, apesar dos programas de controles vetoriais adotados a partir desta época, registra-se a presença de nove espécies de triatomíneos, dentre elas: Triatoma brasiliensis, Triatoma pseudomaculata, Panstrongylus megistus, Panstrongylus lutzi, Panstrongylus diasi, Rhodnius nasutus, Triatoma melanocephala, Triatoma petrochiae, Triatoma rubrofasciata3. Dados recentes demonstraram a estimativa de soroprevalência do T. cruzi em 6,5% na população rural da mesorregião Oeste Potiguar sem, no entanto, haver descrição dos índices de infecção natural triatomínica, infestação e colonização domiciliar5.
A partir do exposto, objetivou-se descrever as espécies capturadas no peridomicílio e intradomicílio, a ocorrência da infestação, a colonização doméstica e as taxas de infecção natural das diferentes espécies de triatomíneos para a compreensão dos desafios no controle da transmissão vetorial em área rural endêmica para infecção chagásica.
Trata-se de um estudo descritivo, transversal e retrospectivo, desenvolvido por meio de análise da série histórica de informações sobre a captura de triatomíneos fornecidas pelo Programa de Controle de Doença de Chagas (PCDCh), correspondentes ao período de 2008 a 2013.
O Rio Grande do Norte situa-se na região Nordeste do Brasil, limitando-se, ao norte e ao leste com o Oceano Atlântico, ao sul com a Paraíba e ao oeste com o Ceará (Figura 1) e apresenta uma população de 3.168.027 habitantes6. O mesmo apresenta um dos índices mais baixos de desenvolvimento humano do Nordeste brasileiro, com vasta área ruralizada e alto índice de moradias humanas de baixa qualidade, as quais caracterizam-se como favoráveis para o abrigo de triatomíneos.
Figura 1 Mapa do Brasil demarcando o Estado do Rio Grande do Norte, a Mesorregião Oeste e os municípios avaliados.
A área deste estudo localiza-se à Oeste do estado e possui 448.904 habitantes, caracterizando-a como a segunda região mais populosa6. Apresenta predomínio do clima semiárido, baixo índice pluviométrico e a caatinga como principal vegetação. Apesar da atuação dos programas de habitação, ainda possui casas de taipa e de alvenaria sem reboco, além de peridomicílio com presença de criadouros de animais, amontoados de palhas, tijolos, telhas e madeiras, condições propícias para o aparecimento do vetor. Para o estudo, foram considerados 9 (nove) municípios da região que apresentam relevância epidemiológica frente à doença de Chagas, os quais incluem: Apodi, Campo Grande, Caraúbas, Felipe Guerra, Governador Dix-Sept Rosado, Janduís, Messias Targino, Mossoró e Upanema (Figura 1).
Para a análise, foram considerados os seguintes indicadores entomológicos: número de triatomíneos capturados (machos, fêmeas, ninfas e infectados), número de triatomíneos encontrados no intradomicílio e no peridomicílio, densidade triatomínica intradomiciliar (número de triatomíneos capturados em intradomicílio/número de intradomicílios investigados); densidade triatomínica peridomiciliar (número de triatomíneos capturados em peridomicílio/ número de peridomicílios investigados); índice de colonização (número de domicílios com ninfas/ número total de domicílios com triatomíneos x 100), índice de infestação (número de domicílios infestados/número de domicílios investigados x 100) e índice de infecção natural (número de triatomíneos infectados/número de triatomíneos examinados x 100).
As capturas dos triatomíneos no peridomicílio e intradomicílio se deram de forma ativa (captura manual), havendo sido realizadas pelos agentes de endemias dos municípios em visitas domiciliares programadas ou diretamente por moradores das residências estudadas.
No intradomicílio, foram verificadas todas as dependências das casas, além de quaisquer possibilidades de abrigo para os triatomíneos, como fendas, buracos, frestas no piso, paredes internas e externas, móveis e objetos. No ambiente peridomiciliar, a busca se deu em anexos de criação de animais (aves, ovinos, caprinos, suínos, bovinos e equinos), amontoados de madeira, tijolos, telhas, palhas e armazéns ou paióis.
Foram utilizadas pinças metálicas de tamanhos variados e lanternas para a inspeção de frestas e locais desprovidos de luminosidade que pudessem servir de abrigo para os triatomíneos, não sendo adotadas armadilhas. Todos os triatomíneos capturados foram colocados em frascos de polietileno com papel picado ou sanfonado e fechados com tampa perfurada para melhor preservação. Os frascos foram devidamente etiquetados, identificados e registrados em formulário do Programa de Controle da Doença de Chagas.
Os registros de ocorrência das espécies de triatomíneos dos municípios investigados foram fornecidos pela Coordenação Regional do Controle de Doença de Chagas da II Regional de Saúde do Rio Grande do Norte.
A pesquisa de infecção natural dos triatomíneos pelo T. cruzi foi realizada no Laboratório da II Regional, localizada no município de Mossoró (RN).
Adotou-se a técnica parasitológica direta pela compressão abdominal do inseto para coleta do material fecal em solução salina (NaCl 0,9%), o qual foi depositado em uma lâmina e examinado em microscópio óptico com o aumento de 400x. Nos casos de positividade, as lâminas foram coradas pela técnica de Giemsa e enviadas para confirmação no Laboratório Central, em Natal (RN). O índice de infecção natural foi obtido a partir da razão entre o número de triatomíneos infectados e o número de triatomíneos examinados.
Apropriou-se de estatística descritiva para obtenção das frequências relativas e absolutas dos dados dos triatomíneos. Para verificar a associação entre a distribuição do número de triatomíneos capturados e as localidades do estudo, foi utilizado o teste de Kruskal Wallis. Em relação à identificação de diferença significativa dos índices entomológicos entre as localidades do estudo, foram utilizados os testes ANOVA e Tukey (múltiplas comparações). O teste T Student foi selecionado para observar a diferença de médias entre o índice de infestação intradomiciliar e o índice de infestação peridomiciliar no período do estudo. O teste de regressão linear simples foi realizado para verificar a correlação entre os índices entomológicos e os anos do estudo.
As análises foram realizadas através do programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 20 (Chicago, IL, USA) e foi estabelecido um nível de significância de 5%.
De acordo com relatório fornecido pelo Programa de Controle de Doença de Chagas, foram capturados 5.370 triatomíneos, dos quais 50,6% (2.662/5.370) encontravam-se na forma de ninfas e 75,5% (4.053/5.370) ocupavam o ambiente peridomiciliar (Tabela 1), de maneira que detectou-se relevância estatística entre as densidades intradomiciliar e peridomiciliar, sobressaindo-se esta última.
Tabela 1 Triatomíneos sinantrópicos capturados e positivos para Trypanosoma cruzi correspondentes à Mesorregião Oeste (RN), Brasil, no período de 2008 a 2013.
Espécies | Intradomicílio | Peridomicílio | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Macho | Fêmea | Ninfa | Infectado | Macho | Fêmea | Ninfa | Infectado | |
Triatoma brasiliensis | 317 | 226 | 401 | 4 | 502 | 414 | 1199 | 5 |
Triatoma pseudomaculata | 116 | 86 | 127 | 2 | 566 | 363 | 996 | 5 |
Rhodnius nasutus | 15 | 1 | 1 | ... | 8 | 2 | ... | ... |
Panstrongylus megistus | 6 | 2 | ... | ... | 2 | ... | ... | ... |
Panstrongylus lutzi | 24 | 5 | 2 | ... | 6 | 3 | 1 | 1 |
Total Capturado | 478 | 320 | 531 | 6 | 1084 | 782 | 2196 | 11 |
Fonte: Programa de Controle da Doença de Chagas da II Regional de Saúde do Estado do Rio Grande do Norte.
A densidade triatomínica domiciliar geral foi de 0,11. Detectou-se diferença estatística (p < 0,05) entre o número de triatomíneos capturados e as localidades incluídas no estudo, sendo observado maior quantidade de exemplares na zona rural do município de Apodi.
As espécies capturadas foram: Triatoma brasiliensis, representando 56,9% (3.053/5.370), Triatoma pseudomaculata, com percentual de 41,8% (2.247/5.370), Panstrongylus lutzi, correspondente a 0,7% (35/5.370), Rhodnius nasutus, com 0,5% do total (25/5.370) e Panstrongylus megistus, indicado por 0,2% (10/5.370) (Tabela 1).
As espécies que apresentaram maiores densidades triatomínicas corresponderam a T. brasiliensis e a T. pseudomaculata (Tabela 2).
Tabela 2 Valores das densidades triatomínicas intra e peridomiciliar e índice de infecção natural por espécie capturada, relativos aos municípios da Mesorregião Oeste (RN), Brasil, no período de 2008 a 2013.
Espécies | Densidade triatomínica intradomiciliar | Densidade triatomínica peridomiciliar | Índice de infecção natural (%) |
---|---|---|---|
Panstrongylus megistus | 0,00017 | 0,00004 | 0,0 |
Panstrongylus lutzi | 0,00055 | 0,00019 | 2,5 |
Rhodnius nasutus | 0,00031 | 0,00021 | 0,0 |
Triatoma brasiliensis | 0,01990 | 0,04490 | 1,2 |
Triatoma pseudomaculata | 0,00690 | 0,04074 | 0,1 |
Fonte: Programa de Controle da Doença de Chagas da II Regional de Saúde do Estado do Rio Grande do Norte.
O índice de infecção natural geral dentre os triatomíneos foi de 0,8%. Dentre as espécies infectadas encontradas em intradomicílio, destacaram-se a T. brasiliensis e a T. pseudomaculata, com 9 e 7 exemplares contaminados, respectivamente (Tabela 1). Embora a P. lutzi tenha representado menor concentração de triatomíneos, foi responsável pelo maior índice de infecção natural dentre os triatomíneos capturados (Tabela 2).
Das 47.095 residências investigadas, 5,6% (2.630/47.095) apresentaram triatomíneos, traduzindo o índice de infestação domiciliar geral. A distribuição dos domicílios infestados entre as localidades estudadas apresentou significância estatística (p < 0,05), destacando-se o município de Campo Grande com o maior índice de infestação visualizado no período de análise, relativo a 47,7% no ano de 2012 (Tabela 3).
Tabela 3 Índices entomológicos dos triatomíneos nos municípios da Mesorregião Oeste (RN), Brasil, no período de 2008 a 2013.
Municípios | Índices* (%) | Ano | X | |||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
2008 | 2009 | 2010 | 2011 | 2012 | 2013 | |||
Apodi | IID | 11,0 | 4,4 | 7,1 | 3,9 | 5,2 | 7,8 | 6,8 |
IC | 46,8 | 23,8 | 24,0 | 11,1 | 47,0 | 37,3 | 31,7 | |
IIN | ... | 0,3 | 1,4 | ... | 0,5 | 0,4 | 0,4 | |
Campo grande | IID | 37,3 | 4,9 | 6,1 | 38,2 | 47,7 | 17,8 | 25,5 |
IC | 54,0 | 7,4 | 43,7 | 40,0 | 34,4 | 31,8 | 35,2 | |
IIN | ... | ... | 0,8 | ... | ... | ... | 0,1 | |
Caraúbas | IID | 11,0 | 2,9 | 3,7 | 2,7 | 11,5 | 5,2 | 6,0 |
IC | 100,0 | 60,0 | 66,6 | 50,0 | 37,5 | 100,0 | 69,0 | |
IIN | ... | 2,2 | ... | ... | ... | ... | 0,3 | |
Felipe guerra | IID | 11,0 | 2,0 | 2,8 | 1,1 | 4,9 | 1,0 | 3,8 |
IC | 28,5 | 33,3 | 50,0 | 33,3 | 50,0 | 49,2 | ||
IIN | ... | ... | ... | 5,0 | ... | ... | 0,4 | |
Gov. Dix Sept Rosado | IID | 16,4 | 2,0 | 8,3 | 5,2 | ... | ... | 5,3 |
IC | ... | 75,0 | 27,7 | 52,9 | ... | ... | 25,9 | |
IIN | ... | ... | ... | 0,7 | ... | ... | 0,1 | |
Janduís | IID | 16,9 | 8,4 | 11,8 | 10,0 | 8,6 | ... | 9,2 |
IC | ... | ... | ... | ... | 50,0 | ... | 8,3 | |
IIN | 1,8 | ... | ... | 1,6 | ... | ... | 0,6 | |
Messias Targino | IID | 2,5 | 3,6 | 3,4 | 3,1 | ... | ... | 2,1 |
IC | ... | ... | 20,0 | ... | ... | ... | 3,3 | |
IIN | 36,3 | 2,5 | 3,1 | ... | ... | ... | 7,0 | |
Mossoró | IID | 1,1 | 2,5 | 1,1 | 3,4 | 2,9 | 6,5 | 2,9 |
IC | 11,1 | 35,1 | 46,1 | 38,4 | 68,7 | 57,1 | 42,8 | |
IIN | ... | ... | ... | ... | ... | ... | 0,0 | |
Upanema | IID | 15,0 | 10,0 | 2,5 | 7,4 | 5,7 | 11,0 | 9,3 |
IC | 30,7 | 100,0 | 35,1 | 40,0 | 66,6 | 75,0 | 61,6 | |
IIN | ... | 1,5 | ... | ... | ... | ... | 0,3 |
*Índices: IID- Índices de Infestação Domiciliar, IC - Índices de Colonização, IIN - Índices de Infecção Natural.
Fonte: Programa de Controle da Doença de Chagas da II Regional de Saúde do Estado do Rio Grande do Norte.
O índice de colonização geral correspondeu a 49,6%, de maneira que 17,3% (472/2.727) das ninfas foram localizadas no espaço intradomiciliar. Considerando as espécies capturadas no intradomicílio, 71,3% (938/1.317) pertenciam a T. brasiliensis. Da espécie T. pseudomaculata, 85,4% (1.919/2.247) encontrava-se no peridomicílio (Tabela 1). Comparando-se o coeficiente de colonização entre as localidades consideradas no estudo, observou-se diferença significativa (p < 0,05), sublinhando o município de Caraúbas, com 100% de domiciliação em 2013 (Tabela 3).
Todos os municípios do estudo apresentaram espécimes contaminadas no período analisado (Tabela 3).
A distribuição dos índices de colonização e de infestação domiciliar demonstra a progressão destes valores entre os anos de 2009 a 2012, denotando a descontinuidade no controle dos indicadores entomológicos ao longo do período analisado. Houve diferença estatística (p < 0,05) entre os índices de infestação intradomiciliar e peridomiciliar ao longo do período analisado, de forma que o peridomicílio apresentou índice de infestação maior em todos os anos do estudo (Gráfico 1).
Decorridas mais de quatro décadas de combate à transmissão da doença de Chagas por via vetorial no Brasil, o cenário investigado ainda apresenta ampla distribuição de triatomíneos, estando entre as regiões originalmente de risco para a transmissão vetorial, ao lado dos estados de Alagoas, Bahia, Distrito Federal, Goiás, entre outros, condição explicada pelo número de espécies autóctones e potencialmente vetoras7, como a T. brasiliensis4-8 e a T. pseudomaculata9, e o surgimento de “novas espécies”, como a P. lutzi10, todas encontradas no campo deste estudo.
A prevalência de ninfas dentre os exemplares capturados na região é característica da ação adaptativa dos triatomíneos ao ecótopo artificial, consolidado no processo de domiciliação11,12, o qual não demonstrou declínio na maioria dos anos considerados, podendo estar relacionado à invasão deste ambiente por fêmeas em período fértil13.
A maior concentração de triatomíneos no espaço extradomiciliar, reafirmada pela diferença significativa entre as médias das densidades intradomiciliar e peridomiciliar, também foi um achado denotado em outros estudos13, podendo ser explicada pelo enfoque em medidas de combate aos vetores domiciliados14 e pelas condições apropriadas para a aglomeração de colônias no peridomicílio promovidas pelo descuido quanto à limpeza dos anexos domiciliares15. Além disso, a ocupação deste espaço pode funcionar como um mecanismo de defesa dos triatomíneos em resposta à redução das espécies nas residências mediante controle químico, os quais compõem resíduos no peridomicílio, local onde os inseticidas não atuam de maneira satisfatória15-17 em decorrência dos efeitos das variações climáticas, da incidência direta dos raios solares e das chuvas18.
A ocupação do ambiente domiciliar, ainda que tenha demonstrado menor representatividade frente ao quantitativo de exemplares detectados, não deve ser ignorada, indicando a necessidade de vigilância rotineira nas residências de localidades com alta carga de triatomíneos no peridomicílio14. Estudos sinalizam os riscos de transferência dos insetos do espaço extradomiciliar para o interior das residências, relacionados aos hábitos dos indivíduos transportarem para o domicílio e seus arredores madeira e seus próprios pertences do ambiente silvestre, a qual pode conter triatomíneos, especialmente nas formas mais jovens, podendo provocar a dispersão passiva dos vetores19. Ademais, as possibilidades de transmissão remontam também ao desenvolvimento de atividades como a pecuária e o processo de apropriação do ambiente natural de maneira desregrada, seguido por alterações bruscas na vegetação e pela redução dos animais silvestres20.
A alta prevalência das espécies T. brasiliensis e da T. pseudomaculata5 também foi um achado que se repetiu nos estados de Sergipe, Ceará3, Piauí21-24 e Pernambuco25, confirmando o panorama geral da doença de Chagas no Nordeste, no que se refere à relação entre as espécies P. megistus e T. brasiliensis, tendo o P. megistus diminuído sua ocorrência em praticamente todo o Nordeste, sobressaindo-se como espécie principal a T. brasiliensis, seguida da T. pseudomaculata13.
Em quaisquer dos anos analisados, o estudo apresentou índices de infestação superiores aos da região Nordeste, em pesquisa realizada na década de 1990, semelhante ao do Ceará, nesta mesma década3, e inferior ao estado de São Paulo26, dado este que se reafirma na estagnação dos índices de colonização e infestação intradomiciliar e peridomiciliar ao longo dos anos tratados, com destaque para este último índice, superior à invasão do intradomicílio em todo o período analisado. Nesta perspectiva, a redução dos índices entomológicos relativos ao peridomicílio da região em estudo configura-se como um importante desafio, uma vez que a infestação do ambiente domiciliar não se deve à ineficácia na atuação do inseticida, mas a elementos como a modificação das áreas naturais, a utilização de material para construção de anexos advindo diretamente do espaço silvestre e sem nenhum tratamento específico quanto ao manuseio25 e à criação de animais27.
O índice de colonização da região aproximou-se do relatado no Piauí21 e superou as taxas de focos respectivas ao estado de São Paulo11, Minas Gerais9 e Rondônia28, condição que pode haver sido provocada pela redução da demanda alimentar28,29, pela modificação dos ambientes silvestres29 através do desmatamento ou realização de queimadas e pela diminuição da fauna por meio da caça predatória, práticas inerentes ao campo de estudo.
Embora tenha representado a maior expressão dentre os triatomíneos encontrados no intradomicílio, dado que se assemelha à realidade do estado do Piauí21, a espécie T. brasiliensis apresentou comportamento peculiar na região avaliada, considerando-se que o espaço extradomiciliar foi o seu ambiente de preferência. A mesma persiste como uma preocupação e prioridade em Saúde Pública nas áreas de sua ocorrência23 e é caracterizada por grande capacidade de infestação, colonização8,13 e reinvasão do domicílio por focos silvestres24, constituindo-se como alvo prioritário das campanhas de controle vetorial entre municípios de estados como o Piauí21. Neste cenário, entendida a classificação desta como espécie principal13 e considerada a elevada soroprevalência da doença de Chagas, em realce na mesorregião Oeste5, reafirma-se o papel da espécie T. brasiliensis como disseminadora vetorial da infecção por T. cruzi.
A espécie T. pseudomaculata, característica do espaço extradomiciliar30,31, como em outros cenários investigados, esteve predominante no peridomicílio13,21,22,31-33, ainda que a quantidade de ninfas capturadas no intradomicílio tenha superado a do Ceará31, Piauí e Paraíba21,31. A condição de ocupação do T. pseudomaculata restrita ao peridomicílio determina a dificuldade para o controle químico tradicional, uma vez que os inseticidas demonstram efeito transitório em situação na qual o habitat corresponde ao extradomicílio, de maneira que a reinfestação torna-se um processo comum24,34, atribuído à grande pressão de recolonização por esta espécie24. Entretanto, a sua classificação como segunda espécie em densidade triatomínica intradomiciliar, posicionando-se depois da T. brasiliensis, reforça a sua adaptação progressiva ao ecótopo artificial, conforme relatado em outros estudos3,35. Hábitos como o manejo passivo da lenha para o uso diário e o transporte de madeira são considerados como possíveis fatores facilitadores para a domiciliação do T. pseudomaculata21, além de, na situação de maior número de exemplares, este colonizar o interior dos domicílios e assumir o posto do T. brasiliensis. Além disso, constatou-se que determinadas estruturas feitas pelo homem foram ocupadas por ambas as espécies, o que indica que o T. pseudomaculata está gradativamente se tornando dominante16, mantendo níveis de infestação e de colonização tanto no domicílio como no peridomicílio, com grande potencial invasivo, além de difícil controle13. Portanto, a adaptação do T. pseudomaculata ao comportamento intradomiciliar suscita a necessidade de novas investigações, haja vista que a aproximação dos vetores com os espaços de vivência humana elevam o risco de transmissão da doença de Chagas22.
O estudo mostra que ainda persiste a existência de triatomíneos com capacidade para a transmissão do T. cruzi na região, de maneira que o índice de infecção natural foi semelhante ao encontrado no próprio estado na década de 19803, ainda que a proporção de triatomíneos infectados com T. cruzi tenha sido baixa, conforme demonstrado em outro estudo36, sendo inferior ao observado no estado do Piauí6 e em Minas Gerais11,37.
Dentre as espécies infectadas detectadas em ambiente intradomiciliar, merece destaque a P. lutzi que, embora tenha apresentado densidade intradomiciliar e peridomiciliar menores do que a T. brasiliensis, apresentou o maior índice de infecção natural dentre as espécies consideradas e esteve distribuída em quase todas as localidades do estudo, merecendo atenção pelo aumento no número de capturas no Brasil38, pela facilidade para formar colônias no interior das residências13 e por apresentar um dos maiores índices de infecção natural em outras localidades21,38.
O T. brasiliensis também demonstrou representatividade, o qual configura-se como o principal vetor na transmissão do T. cruzi na região Nordeste do Brasil8,9,21 e maior poder de sinantropia8,39,40.
A espécie T. pseudomaculata também apresentou exemplares capturados infectados, embora alguns estudos considerem que o risco para transmissão vetorial por meio desta espécie seja reduzido quando comparado ao T. brasiliensis41, devido à sua baixa taxa de conversão para tripomastigotas metacíclicas32,40,42, forma infectante dos vertebrados32. Em contrapartida, enquanto alguns estudos revelam taxa natural de infecção baixa13,43, em um inquérito realizado no estado da Bahia, observou-se que todas as amostras do T. pseudomaculata recolhidas para soroprevalência responderam positivamente ao teste do T. cruzi, o que denota a representatividade desta espécie na transmissão em regiões onde é clara a presença do vetor10.
A espécie P. megistus, apesar de se configurar como um agente de grande dispersão no território brasileiro, com reconhecido potencial para infestação e colonização de domicílios21 e altos níveis de infecção21,44,45, apresentou baixa densidade na região avaliada, além de não haver apresentado nenhuma espécie positiva para T. cruzi10,21, diferentemente do Estado do Ceará e da Bahia da década de 1990 e do Distrito Federal10,13,46. Acrescente-se que esta foi a única espécie dentre as encontradas a qual não apresentou nenhuma ninfa capturada no ambiente intradomiciliar. Contudo, este achado não desqualifica a importância epidemiológica da espécie para a área, uma vez que a presença de adultos no peridomicílio pode desencadear a formação de colônias no intradomicílio e a manutenção do ciclo de transmissão do parasito13.
De maneira semelhante, a espécie R. nasutus apresentou número reduzido de exemplares capturados e nenhum dos triatomíneos avaliados estava contaminado, conforme demonstra a literatura23. Entretanto, é válido ressaltar que dois terços do quantitativo detectado encontravam-se no intradomicílio, achado que divergiu de outras realidades relatadas8,13,21, mostrando que, apesar desta espécie não colonizar os domicílios com frequência, há a possibilidade de invasão das casas a partir de ambientes silvestres, elevando o risco de transmissão vetorial domiciliar sem que ocorra de fato a colonização47-49.
Detectou-se associação estatística significante entre a distribuição de triatomíneos e as localidades de estudo, semelhante aos achados encontrados no Distrito Federal47 e no Piauí8. Diversos fatores podem explicar esta situação, desde a assiduidade das ações de vigilância dos agentes de endemias nos municípios9, perpassando pela extensão da área rural característica de cada localidade, pelas condições ambientais, pelo estado e organização dos domicílios, até o comprometimento da comunidade quanto à vigilância dos triatomíneos8.
A ausência de declínio dos índices de infestação e colonização na maioria dos anos tratados no estudo pode ser explicada mediante o surgimento de outras doenças, como a dengue26,50 e a leishmaniose visceral americana26, as quais desencadearam o redirecionamento das atividades na área da educação em saúde e interferiram nas ações de notificação dos triatomíneos pelas populações51. Além disso, os baixos índices de prevalência doença de Chagas em algumas regiões e questões político-administrativas relativas aos programas de controle sistemáticos46 colaboraram para a ruptura no seguimento das pesquisas entomológicas ao longo dos anos26,46.
Os achados do estudo demonstram que o principal obstáculo a ser superado no controle da transmissão vetorial da doença de Chagas se conforma pela continuidade da vigilância, assumindo-se que as invasões domiciliares advindas do ambiente extradomiciliar sempre serão uma possibilidade11. Neste contexto, torna-se necessária a participação comunitária no processo de detecção de triatomíneos47, de maneira a descentralizar as ações da vigilância entomológica pelas equipes de campo48, medida que institui impacto significativo, conforme demonstrado em algumas regiões11,13,47,49-51.
O cenário de enfoque demonstrou uma área ainda crítica para a proliferação da infecção chagásica, dados os números de triatomíneos capturados e as espécies potencialmente vetoras detectadas na região, a exemplo da T. brasiliensis, representando a maior densidade intradomiciliar entre os triatomíneos capturados; a P. lutzi, caracterizando o maior índice de infecção natural; e a T. pseudomaculata, a qual tem adentrado os domicílios, traduzindo a ação adaptativa desta aos diversos ecótopos de vivência humana. Destaca-se, ainda, que foram enfrentadas limitações neste estudo, as quais partiram da inexistência de dados referentes a algumas localidades, fator que pode ter subestimado os reais índices analisados.
O reconhecimento dos indicadores entomológicos relativos aos triatomíneos na região oportunizou a aproximação com a distribuição dos vetores e a vulnerabilidade das comunidades à infecção pelo T. cruzi, constituindo relevante ferramenta para o delineamento de ações de controle e vigilância que afastem a possibilidade de propagação das espécies mais encontradiças e impeçam o recrudescimento das espécies extirpadas.
Sugere-se o seguimento sistemático da vigilância entomológica por parte das equipes de campo, além do envolvimento das comunidades locais frente à detecção, reconhecimento e consequente notificação dos vetores nos espaços intradomiciliar e peridomiciliar e na reorganização dos arredores dos domicílios, destacando-se a apropriação de medidas que promovam a educação popular em saúde como o elemento fortalecedor desse processo.