versão impressa ISSN 1677-5449
J. vasc. bras. vol.12 no.4 Porto Alegre out./dez. 2013
http://dx.doi.org/10.1590/jvb.2013.059
A prevalência de Doença Arterial Coronariana (DAC) em pacientes com Doença Arterial Obstrutiva Periférica (DAOP) é alta, sendo a aterosclerose a causa de ambas as enfermidades na maioria dos casos. Estes doentes são considerados de alto risco cirúrgico1 - 5.
Todos os pacientes portadores de DAOP devem ser submetidos a cuidadosa avaliação cardiológica com o objetivo de identificar os casos de isquemia miocárdica. Tal avaliação é particularmente importante naqueles que são portadores de isquemia crítica dos membros inferiores (MMII) e candidatos a cirurgia de revascularização de membros inferiores, pois o estresse cirúrgico nestes casos - caracterizado pelo aumento da produção de catecolaminas com consequente taquicardia, vasoconstricção e hipóxia miocárdica - aumenta o risco de infarto agudo do miocárdio (IAM)6 - 11 no período perioperatório desses pacientes.
O IAM é a principal complicação cardíaca e causa de morte no período perioperatório da cirurgia de revascularização de membros inferiores (período de 30 dias antes até 30 dias após a cirurgia), ocorrendo mais frequentemente nas primeiras 72 horas de pós-operatório12 - 16.
Apesar de a associação entre DAOP e DAC ser amplamente demonstrada na literatura, poucos estudos estabeleceram claramente a incidência de IAM no período pós-operatório de pacientes submetidos a revascularização infrainguinal. A partir destas considerações, o objetivo deste trabalho foi avaliar a incidência de IAM em pacientes portadores de isquemia crítica, submetidos à revascularização de membros inferiores15 - 19.
Foram avaliados 64 pacientes, submetidos a 82 cirurgias de revascularização infrainguinal por técnica convencional aberta ou endovascular. No grupo de pacientes estudados, todos portadores de isquemia crítica de membros inferiores, 33 eram do sexo masculino e 31, do feminino. Os pacientes eram provenientes da enfermaria de Cirurgia Vascular do IMIP (Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira) e estiveram internados no período de fevereiro de 2011 a novembro de 2012.
Entre os pacientes avaliados, 46 foram submetidos a uma única cirurgia enquanto que 18 foram submetidos a duas revascularizações. Nos pacientes submetidos a dois procedimentos de revascularização, essas foram realizadas em outra internação e tais pacientes foram submetidos a nova avaliação cardiológica pré-operatória.
O modelo de estudo empregado foi o observacional transversal (estudo de série de casos). O tamanho da amostra foi calculado utilizando o Teste de Hipótese para uma Proporção (considerando uma proporção de 15% de IAM nos pacientes submetidos à cirurgia de revascularização arterial segundo dados da literatura, uma proporção estimada de 6%, o nível de significância de 5% e o poder do teste de 85%). O estudo foi aprovado sem restrições pelo Comitê de Ética em pesquisas sobre seres humanos.
Todos os pacientes foram avaliados quanto à ocorrência de infarto agudo do miocárdio no período pós-operatório imediato (até 72 horas de pós-operatório). O diagnóstico de IAM foi feito pela dosagem sanguínea de Troponina I cardíaca, eletrocardiograma (ECG) e a presença de sinais e sintomas de isquemia miocárdica. A Troponina I cardíaca foi medida utilizando a técnica de imunoensaio. O ECG foi realizado em 12 derivações.
Os pacientes eram diagnosticados com IAM quando apresentavam a dosagem de Troponina I igual ou maior que 1,5 ng/mL, associada à presença de dor precordial (e/ou hipotensão) ou ao ECG apresentando supradesnivelamento do segmento ST em, no mínimo, duas derivações consecutivas, de acordo com II Diretriz de Avaliação Perioperatória da Sociedade Brasileira de Cardiologia.
A avaliação cardiológica no pré-operatório foi feita em todas as cirurgias realizadas eletivamente. Além do exame clínico, os pacientes foram submetidos a radiografia simples de tórax, ECG, ecocardiograma e cintilografia de perfusão miocárdica em repouso e com estresse. Os doentes cuja cintilografia sugeria isquemia miocárdica foram encaminhados à cineangiocoronariografia para avaliação da necessidade de revascularização miocárdica prévia à revascularização do membro inferior. O antiagregante plaquetário, ácido acetilsalicílico (AAS), na dosagem de 100 mg / dia, foi iniciado 15 dias antes da cirurgia e mantido no pós-operatório nos casos de cirurgia eletiva e prescrito apenas após a cirurgia nos casos dos pacientes que ainda não faziam uso da medicação e foram submetidos a cirurgia de urgência.
Considerando os 64 pacientes avaliados, a idade mínima encontrada foi de 31 anos e a máxima de 98 anos (média de 64,3 anos).
Quanto às manifestações clínicas da DAOP, 61 (95,3%) pacientes apresentavam perda tecidual menor (classe 4 de Rutherford), enquanto 3 (4,7%) apresentavam dor em repouso (classe 3 de Rutherford).
Quanto aos fatores de risco, 57 (89%) pacientes eram portadores de hipertensão arterial sistêmica (HAS); 42 (73,4%) eram diabéticos; 32 (50%) tinham história positiva para tabagismo; e 11 (17,2%) apresentavam insuficiência renal crônica (IRC), Figura 1.
Em relação à avaliação pré-operatória, 11 (17%) pacientes foram submetidos a cineangiocoronariografia, dos quais, 4 (6%) foram submetidos à revascularização do miocárdio antes da revascularização infrainguinal. A avaliação cardiológica pré-operatória foi realizada em 59 pacientes correspondendo a 77 (94%) das cirurgias, enquanto que em 5 (6%) casos, nos quais as cirurgias foram realizadas em caráter de urgência, não foi possível a avaliação cardiológica prévia.
Entre as 82 revascularizações infrainguinais realizadas, 52 (63,4%) foram feitas por técnica cirúrgica convencional aberta, enquanto que 30 (36,6%) foram realizadas por técnica endovascular, Figura 2.
Entre as 82 cirurgias de revascularização inguinal realizadas, foram diagnosticados 5 (6%) casos de IAM no pós-operatório. Desses 5 pacientes que sofreram IAM, 4 (80%) haviam sido submetidos a avaliação cardiológica pré-operatória, enquanto que, em 1 (20%) caso, ela não havia sido realizada pelo fato do paciente ter sido operado de urgência. Nenhum dos casos de IAM ocorreu em pacientes que foram submetidos a cineangiocoronariografia e revascularização miocárdica previamente à revascularização infrainguinal.
Nos pacientes em que ocorreu IAM no pós-operatório, a média de idade foi de 63,6 e a mediana de 68 anos. A Tabela 1 apresenta as características dos pacientes que sofreram IAM no pós-operatório.
Tabela 1 Pacientes que sofreram IAM no pós-operatório.
Paciente | Sexo | Idade | HAS | DM | Tabagismo | IRC | Óbito |
---|---|---|---|---|---|---|---|
1 | F | 68 | • | • | • | ||
2 | F | 79 | • | • | • | ||
3 | M | 69 | • | • | |||
4 | M | 48 | • | • | • | • | |
5 | F | 54 | • | • |
Todos os casos de IAM ocorreram após revascularização por meio de técnica cirúrgica convencional. Se forem consideradas somente as cirurgias abertas isoladamente, o índice de IAM nesse grupo será de 9,6%.
Em todos os casos de IAM, houve elevação da troponina I e alteração do ECG (supradesnivelamento ST), e 2 pacientes também apresentaram hipotensão.
Vários estudos têm estabelecido a relação entre complicações cardiológicas e os vários tipos de cirurgia de reconstrução arterial, porém a associação entre IAM e a cirurgia de revascularização infrainguinal nos portadores de isquemia crítica dos membros inferiores, como feita no presente estudo, tem sido raramente descrita. Já o risco de IAM nas cirurgias da aorta para tratamento dos aneurisma, por exemplo, tem sido amplamente descrito20 - 26.
O risco de IAM em outros tipos de reconstrução arterial, além das cirurgias da aorta, foi bem descrito por Flu et al.24, em 2010, quando revisaram 13 artigos publicados no período de 2000 a 2009, que avaliavam o risco de IAM em diversos tipos de reconstrução arterial, incluindo as cirurgias da aorta, carótida e as revascularizações infrainguinais dos membros inferiores, como no presente estudo. Nessa revisão, a incidência de IAM variou de 1% a 26 %, porém faltaram dados mais específicos sobre o risco de IAM nas revascularizações infrainguinais.
De forma semelhante, Landesberg et al.25, em 2001, relataram a incidência de IAM em 185 pacientes após diversos tipos de reconstrução arterial, entre os quais havia 73 casos de revascularização infrainguinal. Nesse trabalho, 12 (6,5%) pacientes apresentaram IAM no período pós-operatório, porém não foi descrita a incidência de IAM no grupo específico de pacientes submetidos à revascularização infrainguinal.
Landesberg et al.26, em 2003, em estudo prospectivo, analisaram 447 pacientes submetidos a revascularização em diversos sítios arteriais tais como, aorta, carótida e artérias infrainguinais, e relataram que 23,9% dos pacientes apresentaram IAM no período pós-operatório, porém também, neste estudo, não foi descrita a taxa de IAM específica para os pacientes submetidos à revascularização infrainguinal.
A menor incidência de IAM (6%) encontrada no presente estudo, quando comparada à da literatura, poderia ser justificada pelo fato de que a maioria dos trabalhos incluem doentes submetidos a cirurgias de reconstrução da aorta; e, nestes casos, o maior estresse hemodinâmico, consequente a fatores como o clampeamento aórtico, a maior perda sanguínea e o maior tempo de anestesia, aumenta o risco de IAM. O menor estresse hemodinâmico poderia justificar também a não ocorrência de IAM nos pacientes submetidos à revascularização por técnica endovascular20 - 26.
Além disso, o uso dos antiagregantes plaquetários, a partir do período pré-operatório, como feito neste estudo, tem sido descrito como fator protetor contra o IAM. O papel do AAS na prevenção de morte, infarto agudo do miocárdio e acidente vascular cerebral, em pacientes que apresentam alto risco de eventos cardiovasculares oclusivos, foi bem demonstrado pelo Antithrombotic Trialists Collaboration (ATC), em 2002, quando avaliaram 287 estudos envolvendo 135.000 pacientes, que comparavam a terapia antiplaquetária e o placebo1 , 27.
A baixa incidência de IAM encontrada neste trabalho poderia também ser explicada pela rigorosidade da avaliação cardiológica pré-operatória que permitiu a identificação dos doentes que necessitavam de revascularização coronária prévia à revascularização dos membros inferiores, mesmo não tendo sido realizada esta avaliação em todos os pacientes, já que em cinco casos foram realizadas cirurgias de emergência.
A indicação da revascularização coronária prévia seguiu as orientações da II Diretriz de Avaliação Perioperatória da Sociedade Brasileira de Cardiologia que estabelece a necessidade de realização de cintilografia do miocárdio nos casos de impossibilidade de realização do teste ergométrico por limitação física, situação na qual se encontra a maioria dos pacientes portadores de isquemia crítica dos membros inferiores. No presente estudo, foram selecionados para a cineangiocoronariografia aqueles que apresentavam alterações isquêmicas à cintilografia2.
No presente estudo, a incidência do infarto agudo do miocárdio nos pacientes submetidos à revascularização arterial dos membros inferiores por doença arterial obstrutiva periférica foi de 6%, porém, se considerados apenas os pacientes submetidos à revascularização por técnica cirúrgica convencional, a incidência de IAM encontrada foi de 9,6%.