versão impressa ISSN 2359-4802versão On-line ISSN 2359-5647
Int. J. Cardiovasc. Sci. vol.31 no.1 Rio de Janeiro jan./fev. 2018
http://dx.doi.org/10.5935/2359-4802.20170068
Eventos cardíacos são raramente associados a acidentes ofídicos, em especial os de serpentes da família Elapidae. Relatamos uma vítima de acidente ofídico que, em poucas horas, desenvolveu infarto do miocárdio em parede inferior com boa evolução clínica.
Paciente de 53 anos, autônomo, residente em área rural, referiu que preparava uma horta no quintal de sua casa quando avistou uma serpente coral vindo em sua direção. Ao tentar matá-la, acabou picado duas vezes na mão direita. Foi encaminhado ao serviço de referência 5 horas após o evento, e mantinha-se consciente, com queixa de dor e edema local. Foram identificadas marcas de presas no segundo quirodáctilo direito (Figura 1), sendo medicado com analgésicos e soroantielapídico.
Exames da admissão evidenciaram leucocitose e aumento do tempo de sangramento e de coagulação, sem outras alterações hematológicas ou nefrológicas. Após 6 horas de observação, iniciou quadro de dor torácica opressiva associado a náuseas, sudorese e palidez cutâneo-mucosa. No exame físico, apresentava bradicardia (frequência cardíaca de 50 bpm) e hipotensão (pressão arterial de 90/60 mmHg), sem alterações na ausculta pulmonar ou cardíaca. Eletrocardiograma demonstrou ritmo de fibrilação atrial com baixa resposta ventricular e supradesnivelamento de ST em D2, D3, aVF e V1-V3 (Figura 2).
Foram administrados 200 mg de aspirina e 600 mg de clopidogrel, e o paciente foi encaminhado à sala de hemodinâmica com achado de artéria coronária direita ocluída proximalmente e lesão moderada na artéria descendente anterior. Foi realizada angioplastia coronária com stent não farmacológico na artéria coronária direita (Figura 2), mas, devido à elevada carga trombótica, fluxo Thrombolysis in Myocardial Infarction (TIMI) II e blush miocárdico 2-3, foi indicada tirofibana, tendo sido encaminhado a unidade de terapia intensiva coronária.
Houve melhora do sintoma e diminuição do supradesnivelamento do ST (Figura 2). Após 24 horas de amiodarona venosa, ainda mantinha-se em fibrilação atrial, sendo submetido à cardioversão elétrica com reversão para ritmo sinusal. Cursou com insuficiência renal aguda e plaquetopenia leve, ambas transitórias. Após 6 dias, houve normalização dos exames hematológicos, nefrológicos e de coagulação. Evoluiu sem queixas clínicas, recebendo alta hospitalar após 7 dias.
O acidente ofídico é um evento prevalente em países tropicais, sendo associado com elevada morbidade. Dados do Ministério da Saúde1 indicam que, no Brasil, ocorrem cerca de 7 mil acidentes ofídicos por ano. As serpentes peçonhentas mais encontradas em nosso meio pertencem ao gêneros Bothrops, Crotalus, Micrurus e Lachesis.2
A intoxicação causada pelo veneno das serpentes é usualmente apresentada por manifestações locais, alterações hemorrágicas, nefrotoxicidade e neurotoxicidade. O envolvimento cardíaco é raro, e os poucos casos descritos ocorrem em pacientes sem maiores fatores de risco cardiovascular ou doença cardíaca conhecida.
Estudo nigeriano3 encontrou apenas 2% de infarto do miocárdio após análise de 108 pacientes vítimas de acidente ofídico. Estudo realizado em Papua-Nova Guiné4 identificou 8,3% de alterações eletrocardiográficas associadas a grande aumento de troponina T, após 69 pacientes serem analisados. Já estudo coreano5 identificou 13,8% de injúria miocárdica, definida por elevação de troponina I em 48 horas ou alteração eletrocardiográfica, após análise de 65 casos de acidentes ofídicos consecutivos.
A plausibilidade biológica para esta associação se deve às propriedades trombóticas e vasoconstritoras do veneno das serpentes.6 Além do efeito das sarafotoxinas e do estímulo para a liberação de endotelinas, ainda colaboram neste processo a anemia secundária às alterações de coagulação e o choque anafilático mediado pelos efeitos cardiotóxicos.7
O tratamento nestes pacientes é um grande desafio. O veneno da serpente provoca plaquetopenia e coagulopatia, predispondo a sangramentos. Estes fenômenos podem limitar o emprego de trombolítico e o implante de stents coronários. No entanto, os doentes que já receberam soro antiofídico e possuem exames iniciais normais parecem ter baixo risco de eventos hemorrágicos.
O uso de inibidor da glicoproteína IIb/IIIa é uma opção nos pacientes muito trombóticos e já foi utilizado em outro relato de caso,8 também em paciente que já recebera soro antiofídico e com exames de coagulação dentro da normalidade.
Em nosso caso, a temporalidade do acidente ofídico com o desenvolvimento de infarto do miocárdio e o achado de elevada carga trombótica ao cateterismo cardíaco reforçam a ideia de associação dessas duas condições.
Apesar de raro, devemos sempre estar alertas para a associação entre acidente ofídico como precipitante de evento coronário. A administração precoce do soro antiofídico e a vigilância para as alterações na coagulação são essenciais para o manuseio adequado desta população.