versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.40 no.1 São Paulo jan./mar. 2018 Epub 19-Abr-2018
http://dx.doi.org/10.1590/1678-4685-jbn-3812
Muitos pacientes pediátricos desenvolvem doença renal crônica (DRC) secundária à anomalias congênitas no sistema urinário.1 Pacientes renais crônicos são mais suscetíveis a complicações hospitalares2 e infecções por Pseudomonas aeruginosa tais como infecções do trato urinário, peritonite, infecções cirúrgicas e bacteremia. Bacteremia e sepse resultam em altas taxas de mortalidade, especialmente em pacientes com câncer, DRC, diabetes e distúrbios cardiopulmonares3.
A Pseudomonas aeruginosa é um bacilo gram-negativo, aeróbio, não-esporulado, não-fermentador de glicose e móvel devido à presença de um flagelo polar.3,4 É frequentemente associada a infecções em pacientes imunossuprimidos internados em unidades de terapia intensiva (UTI), devido à exposição constante a procedimentos invasivos, como cateteres, sondas, instrumentos e dispositivos de ventilação mecânica.3
Esta espécie bacteriana é considerada um agente patológico oportunista, uma vez que raramente está associada à infecção em indivíduos imunocompetentes.3,5 A P. aeruginosa também está associada à osteomielite mandibular por disseminação intraóssea6 e à lesões necróticas da mucosa oral em pacientes imunossuprimidos.7
A cavidade oral pode servir de reservatório para P. aeruginosa e, em pacientes debilitados, idosos e imunocomprometidos, as infecções causadas pelo patógeno representam um importante problema de saúde8. Assim, o objetivo do presente estudo foi relatar o caso de uma criança com DRC submetida à diálise peritoneal com lesões orais graves causadas por infecção por P. aeruginosa.
Criança com seis anos de idade, sexo feminino com DRC (rim único, congênita) submetida à diálise peritoneal apresentou febre e lesão sugestiva de eritema linear em toda a gengiva marginal. A paciente relatou dor na região gengival e dificuldade para a ingestão de líquidos e sólidos.
O diagnóstico inicial foi pneumonia com neutropenia febril e hipoalbuminemia. Devido à condição clínica, a paciente foi internada na UTI pediátrica. Após alguns dias de internação, toda a extensão da gengiva marginal e inserida, tanto nos lados vestibular quanto palatino, apresentou coloração branca sugestiva de necrose (Figura 1). Não foi observada cárie dentária.
Um fragmento da gengiva marginal foi colhido para exame de cultura, na qual a presença de P. aeruginosa foi detectada. Como o patógeno também foi detectado em culturas de sangue e secreção nasal, o caso foi diagnosticado como choque séptico por esta bactéria.
Foi iniciada antibioticoterapia sistêmica (vancomicina, ampicilina-sulbactam, amicacina, piperacilina-tazobactam e polimixina B) e, após um período de internação, foi observada uma eliminação gradual da mucosa gengival necrótica. Algumas regiões acima da gengiva normal remanescente apresentavam um tecido duro que se assemelhava a osso, porém apresentava-se como uma estrutura frágil (Figura 2).
Figura 2 Aspecto da arcada superior após o primeiro ciclo de antibioticoterapia sistêmica (eliminação da necrose gengival).
A paciente apresentava mobilidade dentária patológica e perda óssea, especialmente entre os primeiros molares permanentes e os incisivos tanto na maxila quanto na mandíbula (Figura 3). Houve perda de inserção clínica, mas sem bolsas periodontais (Figura 2).
Figura 3 Radiografia panorâmica mostrando perda óssea, especialmente entre incisivos e molares permanentes.
Figura 4 Aparência após raspagem supragengival, uso de clorexidina 0,12% e segundo ciclo de antibioticoterapia sistêmica.
Foram realizadas sessões de raspagem supragengival e aplicação de clorexidina 0,12% durante a internação na UTI. Após a biópsia do tecido gengival e do tecido duro exposto, foi confirmada presença de hiperplasia gengival inflamatória e o tecido duro foi confirmado como tecido ósseo (Figuras 4 e 5). O tecido ósseo foi submetido à cultura, que também mostrou a presença de P. aeruginosa. Antibioticoterapia sistêmica baseada em levofloxacina foi estabelecida por mais quinze dias.
As lesões ósseas e alguns dentes decíduos com grande mobilidade foram removidos cirurgicamente, sob profilaxia antibiótica. A antibioticoterapia foi mantida após a cirurgia por sete dias. O material coletado foi enviado para exames de histopatologia e cultura (Figura 6).
A histopatologia revelou um processo inflamatório crônico em meio a tecido necrótico, obtendo-se o diagnóstico de Osteomielite Crônica. P. aeruginosa não foi detectada no exame de cultura.
Quinze dias mais tarde a paciente apresentou melhora significativa na saúde bucal (Figura 7). Após o período de tratamento de seis meses, foi detectado o vírus da imunodeficiência humana (HIV), embora a paciente tivesse sorologia negativa em exames anteriores.
Embora a maioria dos casos de osteomielite maxilar sejam secundários à infecções dentárias, osteomielite hematogênica também pode ocorrer, sendo mais comum em pacientes pediátricos6. Os patógenos mais comumente relacionados à esta condição são Staphylococcus, Peptostreptococcus e P. aeruginosa, entre outros9. O caso apresentado concorda com essa informação, pois a paciente apresentou osteomielite maxilar devido à disseminação hematogênica de P. aeruginosa.
Pacientes debilitados em UTI ou em uso prolongado de cateter podem desenvolver osteomielite por Pseudomonas.6 As infecções por esta bactéria são frequentes e de grande importância em pacientes infectados pelo HIV, devido à tendência de recidiva e fácil disseminação. O amplo espectro de características clínicas, possíveis complicações graves e suscetibilidade antimicrobiana imprevisível tornam esta uma infecção de difícil tratamento.10 Durante o tratamento, a paciente estava provavelmente no período da “janela imunológica”, pois apresentara sorologia negativa em exames anteriores. A infecção por HIV explica a baixa imunidade e o alto grau de destruição óssea maxilar.
Foram encontradas lesões necrotizantes focais na mucosa oral de pacientes HIV positivos, diferentes dos padrões de doença periodontal e associadas à presença da Pseudomonas aeruginosa. Sendo observada a cura das lesões após tratamento com antibioticoterapia sistêmica, com concomitante desaparecimento da Pseudomonas aeruginosa nos exames de cultura posteriores.7 O mesmo foi observado no presente caso.
Na maioria das infecções por P. aeruginosa, os sinais e sintomas não são específicos e estão relacionados ao órgão afetado. O patógeno penetra na pele ou mucosa afetada, invade localmente e pode entrar na corrente sanguínea causando septicemia.11 No presente caso, as bactérias se estabeleceram na cavidade oral, sangue e pulmões.
Por conta da alta morbidade e mortalidade em pacientes imunocomprometidos, Barasch et al.7 sugerem a inclusão de infecção por P. aeruginosa no diagnóstico diferencial de lesões necróticas orais na ausência de doença periodontal necrosante, enfatizando a importância da realização de exames de cultura para direcionar a terapia adequada ao patógeno específico. Procedimentos semelhantes foram realizados neste caso, em que lesões necróticas na gengiva marginal e inserida induzidas por P. aeruginosa foram tratadas com antibióticos sistêmicos com base no perfil de susceptibilidade.
Devido às condições sistêmicas da paciente, renal crônica e portadora do vírus HIV, houve um quadro de grande alteração do sistema imunológico, favorecendo a infecção por Pseudomonas aeruginosa. O tratamento antibiótico eliminou o agente causal, restaurando as condições de saúde. Este relato é extremamente importante para os profissionais de saúde, uma vez que a cavidade oral pode ser afetada por este patógeno ou servir de sítio de colonização do mesmo.