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Infecção pelo HIV em adolescentes do sexo masculino: um estudo qualitativo

Infecção pelo HIV em adolescentes do sexo masculino: um estudo qualitativo

Autores:

Stella Regina Taquette,
Adriana de Oliveira Rodrigues,
Livia Rocha Bortolotti

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.20 no.7 Rio de Janeiro jul. 2015

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015207.18102014

Introdução

Na dinâmica atual da epidemia de Aids no Brasil, a faixa etária de 10 a 19 anos, período da vida denominado de adolescência, apresenta peculiaridades em relação ao percurso da infecção pelo HIV. Apesar da redução gradativa da incidência da Aids entre homens que fazem sexo com homens (HSH), isso não tem acontecido entre HSH jovens (JHSH) que, ao contrário, vem aumentando1.

No Brasil, o uso de preservativo ainda é baixo entre adolescentes2. Dentro da lógica de gênero da sociedade, adolescentes do sexo masculino devem iniciar cedo a atividade sexual e com o maior número de parcerias, para comprovar sua virilidade, o que aumenta sua exposição ao risco de contrair uma DST3. No que diz respeito aos adolescentes com orientação homossexual, a situação é mais complexa, pois além das vulnerabilidades que têm por serem homens e jovens, somase a descoberta da atração sexual por pessoas do mesmo sexo, numa sociedade homofóbica. Eles frequentemente se isolam, têm dificuldade para revelar seus sentimentos à família e aos amigos, e, em geral, omitem sua condição nos serviços de saúde. Isso os leva a menor proteção e a agravos à saúde mais intensos. Dados do Ministério da Saúde apontam as relações homossexuais como fator de vulnerabilidade ao HIV em adolescentes masculinos, além da menor escolaridade, a multiparceria, a coinfecção com outras DST1.

Os adolescentes com orientação homossexual se encontram numa posição de desigualdade de poder em relação aos homens mais velhos e aos heterossexuais, portanto, mais expostos a situações de violência, que dificultam a negociação do sexo seguro4. Ressalta-se que as políticas públicas neste campo da saúde sexual e reprodutiva não privilegiam os homens, muito menos os jovens e aqueles que têm sexualidade diversa do padrão hegemônico, não sendo reconhecidos seus direitos5,6.

Diante do exposto, objetivamos conhecer as vulnerabilidades de adolescentes e jovens do sexo masculino soropositivos que favoreceram a infecção pelo HIV, através de suas próprias percepções. Pretendemos contribuir com subsídios às políticas públicas no enfrentamento da epidemia de HIV/Aids na faixa etária da adolescência.

Métodos

O público alvo do estudo foram homens jovens soropositivos cujo diagnóstico ocorreu na adolescência. Optamos pelo método qualitativo, dada a natureza do objeto em questão. As informações foram colhidas em ambiente de intersubjetividade, por meio de entrevistas semiabertas. A entrevista é um instrumento privilegiado: ela nos permite conhecer, através da fala dos interlocutores, o sistema de valores de seu grupo social, é reveladora de suas condições estruturais e, ao mesmo tempo, transmite as representações grupais, em condições históricas, socioeconômicas e culturais específicas7. A amostra foi intencional e composta por homens adolescentes e jovens soropositivos em tratamento.

O Ministério da Saúde do Brasil oferece acesso gratuito e universal ao tratamento com antirretrovirais para pacientes com Aids e o município do Rio de Janeiro conta com 43 serviços públicos de saúde para atendimento a este público. Entre eles se incluem hospitais gerais que prestam assistência a volume maior e variado de sujeitos, advindos de diversos bairros. Por esta pluralidade de indivíduos, recrutamos os possíveis participantes da pesquisa nas seguintes unidades hospitalares: Hospital Universitário Pedro Ernesto, Hospital Gaffrée Guinle, Hospital Universitário Clementino Fraga Filho e Hospital Federal dos Servidores do Estado. Estes estabelecimentos de saúde atendem população de variadas classes sociais, porém majoritariamente de nível socioeconômico inferior. Os serviços foram contatados pela equipe de pesquisadores, composta por médica, assistente social e enfermeira e, após aprovação do comitê de ética e anuência dos participantes e seus responsáveis quando menores de 18 anos, foi iniciada a coleta de dados.

Os critérios de inclusão foram: diagnóstico entre 10 e 19 anos, com tempo de adoecimento de até 5 anos, para garantir certa homogeneidade no grupo quanto à duração da doença. Os adolescentes e jovens que preenchiam este perfil eram encaminhados às entrevistadoras pelos profissionais de saúde que os atenderam nos serviços. Os sujeitos recrutados eram informados sobre o conteúdo da pesquisa e, estando de acordo, eram entrevistados em ambiente com garantia de privacidade. Para compor a amostra, a equipe frequentou estes hospitais no mínimo duas vezes por semana durante 18 meses. Encerramos a coleta de dados quando avaliamos ter ocorrido saturação das informações colhidas. O tempo longo de duração do período de entrevistas se deveu ao fato das entrevistadoras não terem disponibilidade de permanecer em tempo integral e diariamente nestes serviços e também porque houve dificuldade e demora na obtenção da autorização para a realização do estudo em um dos hospitais escolhidos.

As entrevistas realizadas obedeceram a roteiro com questões sobre informações demográficas, familiares, histórico sexual e da infecção/diagnóstico da doença. As autoras gravaram e transcreveram na íntegra as entrevistas. Desde o início e no decorrer do estudo, procedeu-se a análise dos dados textuais oriundos das transcrições, compreendendo os seguintes passos: leitura e releitura dos textos para termos visão singular de cada entrevista, e uma leitura transversal de todas, para identificação do que havia de comum nas narrativas assim como as divergências para compreensão dos conteúdos mais relevantes. Em seguida, buscou-se identificar os sentidos atribuídos pelos sujeitos às questões levantadas, procurando entender a lógica interna deste grupo em diálogo comparativo com a literatura; e, ao final, elaborou-se uma síntese interpretativa respondendo aos questionamentos do estudo.

A pesquisa cumpre os princípios éticos contidos na Declaração de Helsinki, tendo sido aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro em 09/11/2009. Todos os entrevistados e seus responsáveis, quando menores de 18 anos, assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.

Resultados e discussão

Caracterização do grupo

Coletamos os dados entre julho/2010 e dezembro/2011 e a amostra foi composta por 16 sujeitos. Foi feita uma entrevista com cada interlocutor, com média de duração de 50 minutos. Destacamos as seguintes características dos entrevistados: baixo nível socioeconômico, com renda familiar média de 3,5 salários mínimos (variação de 1 a 10 salários); via de exposição sexual, sendo 12 homossexuais e 4 heterossexuais; maioria da raça não branca e a metade deles tinha atraso escolar maior que dois anos. A média de idade da primeira relação sexual foi de 14 anos (de 12 a 18 anos) e a moda 15 anos, sendo que para a maior parte deles (68,7%) aconteceu com 15 anos ou mais. As parcerias sexuais foram em 93,7% dos casos de relacionamentos sem envolvimento afetivo (“ficantes” e abuso). Apenas um entrevistado informou ter se infectado com uma namorada. A multiparceria sexual (mais de 4 no último ano) foi relatada por 81,3% dos entrevistados e 62,5% referiu já ter se prostituído.

As famílias dos entrevistados eram monoparentais em sua maioria. Relatos de conflitos e violência familiar foram frequentes, assim como a fragmentação da família por dificuldades socioeconômicas, com seus membros morando com outros parentes, avós, tios, primos.

Classificamos os dados em quatro categorias que somadas à multiparceria sexual e ao não uso consistente de preservativos se configuram em contextos de vulnerabilidade vivenciados: descrença na possibilidade de transmissão do HIV, sujeição sexual, homofobia e exploração sexual comercial.

Descrença na possibilidade de transmissão do HIV

As narrativas de nossos interlocutores evidenciam que não acreditavam que pudessem se contaminar, apesar da ausência de autocuidado e de segurança nas relações sexuais. Tal fato corresponde à característica considerada por alguns pensadores do campo da psicologia, como normal no período da adolescência. Na perspectiva do desenvolvimento da inteligência, segundo autores seminais como Jean Piaget8, a capacidade de pensamento abstrato, ou seja, de hipotetizar, de pensar nas consequências dos atos, se dá a partir da adolescência, visto que a criança, por outro lado, pensa de modo concreto. Em parte, poder-se-ia atribuir à dificuldade de pensamento abstrato, o comportamento de risco de alguns adolescentes, como observamos quando, ao terem relações sexuais sem proteção, acreditam que nada vai lhes acontecer. Esta característica, denominada por alguns de pensamento mágico, faz parte da “síndrome normal” da adolescência, assim como o comportamento impulsivo e a necessidade de fantasiar, recurso utilizado de forma inconsciente para não incorporar conhecimentos da realidade que incomodam, o que contribui para a incapacidade de avaliar as consequências dos próprios atos, entre outros9. Nas falas de nossos interlocutores percebemos essas características consideradas típicas desta etapa de crescimento e desenvolvimento, expressando essa descrença da possibilidade da transmissão do HIV:

Eu usava camisinha uma vez sim, uma vez não, dependia mais da mulher. No caso tinha hora que lembrava, tinha hora que não, achava que a pessoa era tranquila.

Na hora vem a empolgação, aí diz que não vai usar isso não, vai sem mesmo, aí vai e faz sem.

Os sentimentos exemplificados nas falas acima demonstram que os adolescentes agem sem pensar e se engajam em atividades de risco10. São mais vulneráveis às influências do meio social, assimilando as novidades sem muita reflexão11. Pesquisa realizada por Dessunti e Advincula12 com estudantes universitários brasileiros da área da saúde corrobora nossos dados ao identificar que a percepção de invulnerabilidade (avaliada pelo grau de preocupação/ansiedade relacionada ao perigo de adquirir DST/aids) como fator de risco às DST/Aids.

Os relatos sobre o uso do preservativo demonstram sua pouca utilização ou de forma errada. Não foram raros os entrevistados que referiram ter o preservativo estourado na hora da relação, incomodar ou simplesmente que o parceiro não quis usar. Muitos também relataram que ter o preservativo não é garantia de usá-los. Outros se queixaram de pouco acesso a este insumo e sugeriram sua distribuição facilitada.

Sujeição ao sexo

Incluímos nesta categoria duas situações distintas, mas ambas resultam no que entendemos ser sujeição ou submissão ao sexo, quando as relações sexuais acontecem sem que o sujeito tenha domínio ou escolha consciente do ato que está praticando, se configurando num contexto de vulnerabilidade às DST. A primeira se refere ao cumprimento dos padrões hegemônicos de gênero, e a segunda aos casos de abuso sexual.

Os padrões de gênero hegemônicos da sociedade expõem os homens ao risco de infecções sexualmente transmissíveis associado à precocidade da iniciação sexual, à multiplicidade de parcerias sexuais, sem envolvimento afetivo, e à homossexualidade. O que é ser homem ou mulher na sociedade contemporânea, ou seja, o comportamento esperado para cada sexo está em processo de mudança na atualidade, mas a desigualdade de poder entre eles ainda é grande, principalmente nas classes sociais mais pobres do ponto de vista econômico e de menor escolaridade. Para os representantes do sexo masculino, a atividade sexual é desejada e estimulada precocemente. Para as mulheres, espera-se que aguardem e sejam conquistadas pelos homens. Vejamos algumas falas de nossos interlocutores:

Tive muitas mulheres, comecei a me relacionar com mulheres muito novo.

Era todo dia com um diferente (parceiro sexual).

É, deixa eu ver, também não sou nenhum coelho (risos), mas também não sou santo.

Ah, perdi a conta (do número de parcerias sexuais).

Ainda vivemos sob a égide da heteronormatividade compulsória, uma norma social que se constitui pela obrigatoriedade da heterossexualidade e que constrói uma relação necessária e coerente entre identidade de gênero, desejos e práticas sexuais. É essa normatividade que informa as convenções de gênero e sexualidade na nossa sociedade, marcadas por uma assimetria entre o masculino e o feminino13. Em vista disso, essas convenções podem se traduzir, nas vivências práticas da vida sexual, em relações de submissão e controle da sexualidade. Disso também podem resultar relações de violência de gênero e obstáculos na negociação do uso do preservativo masculino14. No caso de JHSH, como o gênero feminino é considerado inferior e subalterno, os homens que assumem o gênero “não masculino”, tornam-se também objetos de dominação, e, portanto, de sujeição ao sexo4.

Quando adolescentes, os sujeitos em geral são mais vulneráveis a influências externas, vinda dos pares e da própria sociedade. Estes padrões impõem normas de comportamento, das quais dificilmente eles conseguem fugir, sob pena de se sentirem inadequados e não serem aceitos. Por exemplo, quando se referem ao sentimento resultante da primeira experiência sexual, tão estimulada e desejada pelos homens, e também quando demonstram a multiplicidade de parcerias que tiveram15,16.

A segunda situação enquadrada nesta categoria se refere às experiências relatadas por nossos entrevistados de vitimização em situações de violência explícitas. Verificamos nos JHSH além da submissão aos parceiros sexuais, também vivências de abusos perpetrados por homens mais velhos. Algumas falas exemplificam:

… como naquela época eu não sabia realmente o que era o amor, […], eu era muito bobo e ele era uma pessoa mais velha, tinha trinta e poucos anos, eu tinha 17. Então foi quando na verdade ele me usou, entendeu

[Quando] ele abusou de mim, eu tinha 16 anos, 15 pra 16 anos.

O meu tio, no caso, eu era pequeno não sei como tudo começou. Ele mexia comigo.

Fato importante é que as relações homossexuais também são marcadas segundo este sistema de relações de gênero, podendo-se dizer que, pelo menos em princípio, são estruturadas sob um modelo machista. Baseada na hierarquia do gênero, por linhas de atividade e passividade. Os homens passivos ou efeminados assumem o papel simbólico das mulheres, estando sujeitos às formas de dominação.

Homofobia

A heteronormatividade vigente na nossa sociedade determina as normas de gênero hegemônicas e é a principal raiz da homofobia, rejeição violenta a formas diversas da sexualidade. Neste contexto social, adolescentes com atração homossexual podem ter inquietações resultantes destes sentimentos homoeróticos. Estas são, em geral, dramáticas e veladas devido ao medo de serem rejeitados17,18. É difícil para um adolescente assumir sua homossexualidade, por isso, muitos homossexuais para se defenderem desta homofobia não se expõem e se isolam, devido ao medo de se revelar e de compartilhar com alguém este sofrimento.

Os jovens entrevistados expressaram a estranheza e a inadequação aos padrões de comportamento que experimentaram ao se darem conta da atração homossexual. Quando acontecem as primeiras experiências homossexuais, são carregadas de forte sentimento de culpa, que pode ser consequente à homofobia internalizada19. O sofrimento advindo destas situações é intenso e conduz, muitas vezes, a isolamento social com consequências desastrosas para os adolescentes, como as DST, a depressão e até o suicídio20,21. A discriminação, muitas vezes na própria família, e a rejeição social de que são vítimas, levam estes indivíduos frequentemente a sair de casa e a viver em guetos, denominados por alguns de “mundo gay”, onde se sentem mais aceitos e passam a assumir o comportamento destes grupos. As narrativas dos JHSH entrevistados evidenciam a homofobia intrafamiliar e a exposição a riscos à saúde ao vivenciarem o “mundo gay”, onde frequentemente têm relações sexuais com multiplicidade de parceiros e sem proteção22.

Eu moro há uns sete anos só, eu precisava e queria viver a minha vida porque pra mim, eu sou homossexual eu não tinha uma liberdade minha com meu parceiro, eu até tinha meu parceiro fixo.

Meu pai, pelo fato de eu ser homossexual, ele não aceitava… Eles me bateram quando eu tive diagnóstico de HIV.

No mundo gay se tem camisinha usa, se não tem vai assim mesmo. Na festa num encontro casual as pessoas têm relação sem camisinha.

Em balada, algum homem mexia comigo, se desse vontade, eu ia e fazia.

Assim como nas relações sociais entre homossexuais e heterossexuais, as práticas sexuais são social e culturalmente construídas dentro do contexto de roteiros sexuais que são aprendidos durante todo o desenvolvimento e crescimento de um indivíduo – durante a vida. Adolescentes homossexuais tendem a ter iniciação sexual mais precoce e com um maior número de parceiros do que os heterossexuais. A experimentação sexual pode ser o modo mais acessível de aprender como é ser gay.

Outros fatores relacionados à homofobia ampliam este risco como, por exemplo, a grande limitação no acesso à proteção social e aos serviços de saúde, a marginalidade que levam alguns ao comércio sexual e ao consumo abusivo de bebidas alcoólicas e de drogas.

Diversos estudos demonstram a maior vulnerabilidade de adolescentes e jovens gays1,2325. E, apesar destes se perceberem vulneráveis à infecção pelo HIV, não usam preservativo de forma consistente e têm múltiplas parcerias. Trata-se de um grande desafio a identificação e a compreensão das particularidades do exercício da sexualidade deste grupo populacional para o enfrentamento da Aids26,27.

Exploração sexual comercial

Outro contexto de vulnerabilidade verificado entre os jovens soropositivos foi o da exploração sexual comercial. A principal motivação para adolescentes se engajarem nesta atividade é a busca de vantagens econômicas28. Para alguns adolescentes, ter relações sexuais com outros homens não os faz se sentirem menos homens por isso, pois em geral, são ativos na relação, o que lhes garante uma posição viril. Não costumam usar preservativo no sexo oral, pois não o veem como de risco.

Para os adolescentes gays, que sofrem discriminação, o comércio sexual muitas vezes é a única saída para quem vive à margem da sociedade, com pouco acesso à proteção social, escolaridade e emprego29. O atraso escolar é frequente em adolescentes homossexuais devido, entre outros fatores, ao bullying. Por vezes não suportam as agressões e abandonam a escola. A baixa escolaridade representa uma pior qualificação profissional e, portanto, menor chance no mercado de trabalho, resultando em pouquíssimas opções de emprego formal para estes jovens.

Nos entrevistados que relataram a prática do sexo em troca de dinheiro, verificamos certa naturalização do ato da prostituição, mascarando a violência contida na mesma, tanto a estrutural quanto a resultante da desigualdade de poder entre o perpetrador e o adolescente prostituído. Trata-se de um abuso sexual, muitas vezes não percebido por eles como tal. Vejamos algumas narrativas:

Eu já fiz programa, sou bissexual. Tinha que fazer tudo na época, e até por isso que eu fiquei doente e, também assim, tive vários parceiros, perdi a conta.

Assim, eu usava camisinha, mas às vezes o cliente queria que não usasse, eu falava que tinha que pagar mais caro, aí ele pagava mais caro, aí eu não usava.

Foi a necessidade que me levou a fazer programas. Família era carente, quase não tinha dinheiro nem pra alimentação. Aí eu me vi desesperado, aí fui, conheci um amigo…

Eu ganhava a vida me prostituindo. A gente não escolhia não, pegava qualquer um.

A dinâmica da epidemia de Aids tem mostrado acometimento crescente de parcelas da população de menor poder aquisitivo1,30 e os jovens que se engajam nesta atividade se encontram geralmente em posições particularmente desfavoráveis, com baixo nível socioeconômico e de escolaridade. O caráter clandestino que caracteriza a exploração sexual comercial, aliado ao relacionamento com múltiplos parceiros, torna os jovens envolvidos mais vulneráveis à infecção por DST e Aids.

Algumas considerações

Ao pensarmos a epidemia da Aids avaliando-a sob o parâmetro dos contextos de vulnerabilidade, vemos que o extrato populacional entrevistado evidenciou situações em que as políticas públicas necessitam incidir nas dimensões individual, social e programática, instâncias estas entrelaçadas.

Do ponto de vista individual, nossos interlocutores demonstraram um baixo autocuidado. Este depende de melhor informação e de disponibilidade de insumos de prevenção, entre outros. A informação não se limita aos aspectos relacionados à infecção pelo HIV, mas principalmente ao aumento da escolaridade. Os insumos de prevenção devem estar disponíveis em larga escala nos diversos ambientes frequentados pelos adolescentes e de forma livre e desburocratizada. O Programa Saúde e Prevenção nas Escolas, parceria do Ministério da Saúde com o Ministério da Educação, com sua proposta de atividades de promoção da saúde sexual e reprodutiva de adolescentes e jovens nas escolas é uma política pública que deveria ser incrementada31. A via educacional tem tido êxito em gerar mudanças positivas no comportamento sexual de adolescentes e deve ser incentivada32. Na França, onde a prevalência de Aids na faixa etária adolescente é proporcionalmente três vezes menor do que no Brasil, é obrigatório por lei atividades de educação sexual e distribuição de preservativos nas escolas33.

Na dimensão social, vários desafios têm de ser enfrentados para redução da Aids entre adolescentes: a desigualdade social, a violência estrutural e de gênero e a homofobia. Estes problemas já vêm sendo alvo de intervenções por diversos setores da sociedade e devem ser ampliados e intensificados. Outra questão que merece atenção é a erotização precoce que transforma em vítimas principalmente adolescentes mais jovens, que na ânsia de serem aceitos nos grupos a que pertencem, acabam por cedo iniciarem a vida sexual, pois isso é o esperado, sendo mais objeto nas relações entrepares do que sujeitos cientes de sua própria sexualidade, tendo atividade sexual mais frequentemente de forma desprotegida. É necessário que se incentive este debate no país, principalmente no âmbito educacional. No Brasil, a idade média da primeira relação sexual entre adolescentes da zona urbana é em torno de 14,9 anos34. Em países desenvolvidos como a França, esta média situa-se aos 18 anos35.

Do ponto de vista programático, nosso estudo demonstrou a necessidade de se investir na inserção efetiva do homem adolescente e jovem nos programas e serviços de saúde, incluindo ações voltadas às necessidades específicas da população JHSH. Os profissionais de saúde devem ser capacitados para o atendimento à diversidade sexual. Sabe-se que o acesso aos cuidados em saúde qualificados para este público comprovadamente previne comportamentos de risco36. A sexualidade masculina, no que se refere à saúde de homens, deve ser abordada numa perspectiva de gênero visto que o reduzido envolvimento destes nos cuidados em saúde e seus problemas consequentes ocorrem em função dos modelos de masculinidade37.

Por fim, cabe ressaltar que nosso estudo incluiu somente adolescentes e jovens de classes sociais menos favorecidas do ponto de vista econômico, visto tratar-se da parcela da população que mais utiliza os serviços públicos de saúde e, atualmente, é a mais atingida pela Aids, o que limita o alcance dos nossos resultados. Assinalamos a importância em investigações futuras de contemplar sujeitos de estratos sociais mais abastados, com o intuito de ampliar o entendimento de diferentes contextos de vulnerabilidade.

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