versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.39 no.2 São Paulo abr./jun. 2017 Epub 27-Abr-2017
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20170020
A hepatite pelo vírus B (HBV) é a infecção crônica mais comum no mundo e cerca de 240 milhões de pessoas vivem cronicamente com a doença.1 Em 2010, o Global Burden of Disease study considerou a infecção por HBV como uma das prioridades de saúde no mundo, já que ocasiona 786.000 mortes por ano, devido às suas consequências agudas ou crônicas.2
A prevalência da infecção pelo HBV em indivíduos sob hemodiálise, segundo revisão recente, varia de 1,2 a 6% nos diferentes continentes.3 O portador de doença renal crônica (DRC) está sujeito a risco de infecções pelo HBV, principalmente por quebra nas medidas de prevenção padrão preconizadas para prevenção de agentes transmitidos por sangue, dentro das unidades de diálise.4 A imunização contra o vírus é uma das principais medidas de prevenção contra essa infecção.5,6
As taxas de soroconversão da vacina para o HBV, em portadores de DRC, atinge níveis protetores de anti-HBs entre 50 e 80%.7 A resposta deficiente à vacinação, se comparada com indivíduos com função renal normal, é atribuída a deficiências imunológicas, entre as quais processamento de antígenos, formação de anticorpos e resposta celular imunomediada inerentes à própria deficiência da função renal e da uremia.6 Outros fatores foram associados a resposta subótima da vacinação para o HBV, entre portadores de DRC, como idade superior a 60 anos, diálise ineficiente, desnutrição, presença de diabetes mellitus (DM), grau de DRC, tempo em diálise e coinfecção com o vírus C.8-12
De acordo com a recomendação do Centro de Referência para Imunobiológicos Especiais (CRIE) do Brasil, o esquema vacinal para indivíduos com DRC é de quatro doses (0, 1, 2 e 6 meses), utilizando o dobro da dose habitual para a idade.13
O objetivo deste estudo foi avaliar a resposta vacinal contra o HBV e identificar fatores associados, em portadores de doença renal crônica submetidos à hemodiálise, em duas unidades de terapia renal substitutiva (TRS) em São Luís, MA.
Trata-se de um estudo transversal analítico, que utilizou o banco de dados do estudo "Hepatite B oculta em pacientes portadores de doença renal crônica em hemodiálise", aprovado pelo Comitê de Ética da instituição sob o número de protocolo 004913/2009-40 (Anexo 1), cujos resultados foram recentemente publicados.14
A referida pesquisa foi realizada entre 2010 e 2013 nas duas maiores unidades de hemodiálise na cidade de São Luís, capital do Maranhão. As referidas unidades somaram, na ocasião, mais de dois terços da população em diálise na cidade.
Foram entrevistados todos os pacientes das duas unidades em terapia renal substitutiva (TRS), modalidade hemodiálise (com tempo de tratamento mínimo de seis meses), incluindo um total de 342 pacientes, que tinham resultado de HBsAg negativos registrados nos prontuários. Após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, aceitaram participar do estudo 302 indivíduos.
Todos os pacientes selecionados foram submetidos à coleta de sangue e foram realizados os testes sorológicos: HBsAg, anti-HBc (total), anti-HBs e anti-HCV. Todos tinham registro no prontuário de esquema de vacinação completa para o HBV com o esquema recomendado pelo CRIE.13 Foram resgatados dos prontuários: idade, sexo, estado civil, etiologia da doença renal e tempo de duração de TRS.
Os exames sorológicos foram realizados com ensaio imunoenzimático (ELISA) (SIEMENS, ADVIA CENTAUR).
HBsAg negativo foi confirmado para todos os pacientes. Foram selecionados para esta pesquisa os indivíduos com anti-HBc negativos e agrupados quanto ao nível de anti-HBs: < 10 mUI/mL ou ≥ 10 mUI/m. Calcularam-se as diferenças entre os dois grupos quanto à idade, tempo em diálise, gênero, presença de diabetes mellitus (DM) e positividade do anti-HCV.
Para análise dos dados, utilizou-se o software IBM, SPSS, Statistic versão 22.0. As variáveis numéricas são apresentadas na forma de média ± desvio padrão (DP) e as frequências em números (n) e porcentagens (%). As diferenças entre variáveis numéricas foram calculadas pelo teste t de Student e entre as nominais pelo Qui-Quadrado ou Teste Exato de Fisher, quando indicados.
Uma análise de regressão logística multivariada foi realizada para identificar os fatores independentemente associados com anti-HBs ≥ 10 mUI/m. Considerou-se significante um valor de p ≤ 0,05.
A amostra foi composta por 188 pacientes (HBsAg e anti-HBc negativos). A maioria (54,8%) era do sexo masculino, a média de idade foi 46,1 anos variando de 11 a 83 anos. O tempo médio de diálise foi de 40,9 meses. Cinquenta pacientes (26,6%) tinham diagnóstico de DM e 10 (5,3%) eram positivos para o anti-HCV. Estes dados estão resumidos na Tabela 1.
Tabela 1 Características clínicas e demográficas dos pacientes vacinados contra hepatite b em hemodiálise, São Luís, Maranhão, 2010-2013 (N = 188)
n (%) | ||
---|---|---|
Idade (anos) média ± DP | 46,1 ± 15,4 | |
Sexo | Feminino | 85 (45,2) |
Masculino | 103 (54,8) | |
Estado civil | Solteiro | 55 (29,3) |
Casado | 112 (59,6) | |
Divorciado/separado | 1 (0,5) | |
Viúvo | 5 (2,7) | |
União estável | 15 (8) | |
Hemodiálise (meses) média ± DP | 40,9 ± 30,9 | |
Causa da Doença Renal Crônica | Hipertensão | 50 (26,6) |
Diabetes mellitus | 50 (26,6) | |
Infecção do trato urinário | 5 (2,7) | |
Doença Autoimune | 17 (9) | |
Doença Renal Hereditária | 7 (3,7) | |
Obstrução do Trato urinário | 10 (5,3) | |
Desconhecida | 49 (26,1) | |
Anti-HCV | Positivo | 11(3) |
Negativo | 178(97) |
Cento e trinta e dois pacientes (70,2%) apresentavam anti-HBs ≥ 10 UI/mL e 56 (29,8%) tinham anti-HBs < 10 UI/mL. Quando os grupos foram comparados, as médias de idade em anos (45 ± 15,6 e 48,7 ± 14,4) e tempo em diálise em meses (40,4 ± 30,1 e 41,9 ± 32,7) foram semelhantes (p = 0,13 e p = 0,76, respectivamente).
Também não houve diferença entre os grupos quanto ao gênero e presença de DM. Somente a positividade para o anti-HCV foi estatisticamente associada à presença de baixos títulos do anti-HBs (p = 0,008) (Tabela 2). A análise de regressão logística, incluindo todas as variáveis da análise univariada, manteve apenas o anti-HCV negativo como fator independentemente associado a níveis de anti-HBs ≥ 10 mUI/mL (OR = 5.239 IC:1.279-21.459, p = 0.021) (Tabela 3).
Tabela 2 Comparação da resposta imunológica à vacina contra hepatite b entre pacientes sob hemodiálise em São Luís, Maranhão, 2010-2013 (N =188)
(n = 56) | > 10mUI/mL (n = 132) |
||
---|---|---|---|
Sexo masculino | 28 (50%) | 75 (56,8%) | 0,39 |
Idade (anos) | 48,7 ± 14,4 | 45 ± 15,6 | 0,13 |
Tempo em hemodiálise (meses) | 41,9 ± 32,7 | 40,4 ± 30,1 | 0,76 |
Diabetes Mellitus | 13 (23,2%) | 37 (28%) | 0,49 |
Anti-HCV(+) | 07(12,5%) | 03 (2%) | 0,008 |
Tabela 3 Fatores associados a soroconversão do anti-HBS (≥ 10 MUI/ML) em portadores de doença renal crônica em hemodiálise submetidos à vacinação para o vírus da hepatite B (HBV ) em são luis, Maranhão, 2010-2013 (n = 188)
Idade (anos) | 0,984 | 0,962-1,006 | 0,15 |
Tempo em diálise (em meses) | 0,999 | 0,988-1,009 | 0,82 |
Sexo masculino | 0,662 | 0,343-1,279 | 0,22 |
Diabetes Mellitus | 0,729 | 0,337-1,577 | 0,42 |
Anti-HCV negativo | 5,239 | 1,729- 21,459 | 0,021 |
Pacientes com DRC em diálise são mais susceptíveis a infecções de transmissão parenteral como a HBV. A obediência a medidas universais de prevenção de transmissão de patógenos no ambiente da diálise tem diminuído a prevalência dessa infecção ao redor do mundo.15 Entre essas medidas, inclui-se a vacinação para o HBV, que se constitui em um dos principais meios de prevenção da infecção.16
Este estudo identificou que 70% dos indivíduos susceptíveis ao HBV, submetidos à vacinação, apresentaram níveis acima de 10 mUI/ml, considerados protetores contra a infecção. O resultado é semelhante ao descrito em vários outros estudos, que mostram taxas de soroconversão variando entre 50 e 80%3,6-10. A patogenia dessa característica foi recentemente revisada por Sit et al.17 e tem sido atribuída a diferentes variáveis tais como características genéticas, fatores nutricionais, doses e vias de administração da vacina, fase da DRC, presença de diabetes mellitus, tempo em diálise, adequação da diálise, coinfecção com HIV ou HCV e outros.
Entre os fatores avaliados aqui, em análise multivariada, apenas a positividade do anti-HCV esteve negativamente relacionada com a soroconversão do anti-HBs. Indivíduos com anti-HCV negativo apresentaram cinco vezes mais chances de ter anti-HBs com níveis protetores do que aqueles com HCV positivo.
A associação entre a infecção pelo vírus da hepatite C (HCV) e a resposta imunológica diminuída à vacina na população em diálise é controversa. Uma metanálise, recentemente publicada, envolvendo oito estudos (incluindo 520 pacientes), não foi capaz de demonstrar efeito negativo da infecção pelo HCV na soroconversão do antiHBs,18 contudo, os autores reconhecem que a qualidade dos estudos envolvidos e o número de pacientes podem ter introduzido vieses que tenham potencial de diminuir a acurácia dos resultados.
Entre os incluídos na metanálise havia um estudo randomizado brasileiro realizado no Rio Grande do Sul, que identificou a presença da infecção pelo HCV (OR = 8.69 IC:1.26-58.8 p = 0.028) e idade avançada (OR = 1.2 IC:1.02-1.30 p = 0.022) como os únicos fatores independentemente associados à não soroconversão do anti-HBs.9
Outra possibilidade para a não resposta vacinal do HBV, entre portadores do HCV, poderia ser a presença de hepatite B oculta (infecção crônica pelo HBV com HBsAg negativo), porque o HCV pode inibir a replicação do HBV, favorecendo a não positividade do HBsAg, mas mantendo a infecção.19,20 Hepatite B oculta (HBO) tem sido observada frequentemente entre portadores de DRC com infecção pelo HCV.21,22 De fato, o estudo do nosso grupo, envolvendo 302 indivíduos com HBsAg negativo (entre os quais estão os 188 aqui estudados), identificou a infecção pelo HCV como único fator associado à presença de HBO.14
Outra possibilidade para a não soroconversão do anti-HBs entre estes indivíduos poderia ser a presença de doença hepática, já que alterações da função do fígado possivelmente causariam maiores deficiências imunológicas, dificultando a resposta à vacina.23,24 Infelizmente, essa informação não pôde ser obtida porque o estudo foi realizado a partir de um banco de dados no qual não havia informações sobre graus de doença hepática entre os portadores do HCV.
Em conclusão, este estudo observou que a taxa de resposta à vacina para o HBV esteve dentro do esperado para portadores de DRC em diálise e que indivíduos com anti-HCV negativo apresentam chances mais elevadas de resposta. Pesquisas com número maior de pacientes, incluindo avaliação de graus de doença hepática, poderão esclarecer se, de fato, a presença da infecção pelo HCV favorece a não resposta a vacinação para o HBV em indivíduos sob hemodiálise.