versão impressa ISSN 1806-3713versão On-line ISSN 1806-3756
J. bras. pneumol. vol.43 no.6 São Paulo nov./dez. 2017
http://dx.doi.org/10.1590/s1806-37562016000000211
Os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde, que vêm sendo desenvolvidos com o intuito de organizar esse sistema e os serviços de saúde, têm como um dos seus pilares a descentralização. Nessa perspectiva, a atenção básica, pela sua dinamicidade e capilaridade, constitui-se na porta de entrada preferencial e centro de comunicação entre os usuários e a rede de atenção à saúde. A Estratégia Saúde da Família (ESF) constitui o modelo assistencial que orienta e reorganiza esse âmbito de atenção para diferentes agravos e necessidades da assistência à saúde, inclusive no que diz respeito às políticas públicas voltadas para um grave e complexo problema de saúde pública, que é a tuberculose.1,2
Apesar de ser uma das mais importantes causas de morbidade e mortalidade no mundo,3 a tuberculose continua sendo um problema negligenciado nos países de baixa e média renda e um importante agravo na saúde pública.4 Entre os grupos de risco para essa infecção estão os profissionais da área da saúde, sendo esse grupo um dos mais vulneráveis, como já demonstrado em algumas publicações.5-7 Esse risco tem sido associado ao tempo de exposição a pacientes com a doença durante o serviço, à demora no diagnóstico e na comprovação laboratorial da tuberculose, à categoria profissional e a atividades em determinados locais, bem como à falta de medidas administrativas, de controle ambiental e de proteção individual.5
Em 2004, o Ministério da Saúde enfatizou a integração das atividades do Programa Nacional de Controle da Tuberculose com todos os serviços do Sistema Único de Saúde. Seguindo suas diretrizes de “horizontalização” no combate à tuberculose,8 foram redirecionadas e descentralizadas as ações de controle para a atenção básica que, nesse caso, ficaria a cargo da ESF e do Programa de Agentes Comunitários de Saúde.
Por essa razão, a hipótese levantada seria a de que, apesar de já terem sido desenvolvidos estudos que comprovaram uma chance maior de infecção em âmbito hospitalar,5,9-12) os profissionais que atuam na atenção básica e que representam a porta de entrada no acolhimento dos pacientes suspeitos e com diagnóstico de tuberculose também apresentem uma maior probabilidade de infecção, como demonstram outras publicações.13-15
Sendo assim, o presente estudo foi delineado com o objetivo de estimar a prevalência de infecção latente por Mycobacterium tuberculosis (ILTB) e analisar os fatores de risco associados à infecção entre os profissionais de saúde da atenção básica no município de Vitória (ES).
Trata-se de um estudo transversal, sendo a população-alvo os profissionais de saúde - agentes comunitários de saúde (ACS), auxiliares ou técnicos em enfermagem, enfermeiros e médicos - inseridos na rede de atenção básica e nos Programas de Controle da Tuberculose (PCT) do município de Vitória (ES).
Foram estabelecidos como critérios de inclusão pertencer às categorias profissionais anteriormente mencionadas e apresentar resultado negativo para o teste rápido anti-HIV. Foram considerados como critérios de exclusão ser sabidamente portador da infecção pelo HIV, já ter recebido profilaxia para tratamento de ILTB, já ter recebido tratamento para tuberculose ativa ou estar grávida. Como critério de perda, consideramos o fato de o participante não ter retornado para a leitura do resultado do teste tuberculínico (TT) na data agendada.
Para o cálculo amostral, adotamos uma prevalência de infecção tuberculosa de 30% entre os profissionais de saúde, uma vez que, na literatura, essa taxa variou de 10% a 40%.8 A menor prevalência esperada foi de 20%, com um poder do teste de 90% e perda de 10%, totalizando 230 profissionais para a análise final.
A seleção das Unidades Básicas de Saúde (UBS) foi feita por amostragem aleatória simples, enumeradas em suas respectivas categorias sanitárias - UBS tradicional; UBS com ESF; UBS com Programa de Agentes Comunitários de Saúde; e UBS com PCT. A participação dos profissionais de saúde se deu mediante sua concordância e assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido. Todos os profissionais de saúde incluídos no estudo foram submetidos a radiografia de tórax e avaliação médica para a avaliação de aspectos epidemiológicos e clínicos a fim de afastar a possibilidade da presença de tuberculose ativa, de acordo com as orientações do Ministério da Saúde.1
Foi aplicado um questionário contendo dados sociodemográficos, clínicos e de exposição e conhecimento sobre tuberculose, e realizou-se um teste diagnóstico, o TT, para a identificação de ILTB. Para o teste, foi utilizado PPD RT23 (State Serum Institute, Copenhague, Dinamarca) com 2 unidades de tuberculina na dose de 0,1 ml administrada por via i.d. no terço médio da face anterior do antebraço esquerdo. A leitura do teste foi realizada 72 h após a aplicação, medindo-se o maior diâmetro transverso da área de enduração palpável com uma régua milimetrada.1 O efeito booster não pôde ser verificado entre os participantes do estudo. O teste foi aplicado por um profissional treinado pela Secretaria de Estado da Saúde do Espírito Santo e certificado pelo Programa Estadual de Tuberculose. Como procedimento de triagem e critério de exclusão, foi realizado um teste rápido anti-HIV (HIV Rapid Check; Núcleo de Doenças Infecciosas, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Brasil) de acordo com as instruções do fabricante.
A fim de validar o questionário face a face para a coleta de dados do projeto de pesquisa, foi realizado um estudo piloto na Unidade de Saúde de Maruípe, em Vitória (ES), pelo qual uma enfermeira que participou do processo de elaboração daquele instrumento o aplicou em 10 profissionais de saúde convidados para essa avaliação. Como consequência dessa etapa, realizamos alterações nas questões referentes à estrutura física das UBS.
As variáveis independentes consideradas para este estudo foram: sexo (masculino ou feminino); faixa etária (19-30; 31-40; 41-50; ou 51-70 anos); ocupação (ACS, auxiliares ou técnicos em enfermagem, enfermeiros ou médicos); trabalho em UBS com PCT implantado (não ou sim); tempo de trabalho na função na atenção básica (< 5 anos ou ≥ 5 anos); trabalho somente na atenção básica (não ou sim); trabalho em ambiente com alto risco de tuberculose alguma vez na vida (não ou sim); participação em algum treinamento/capacitação sobre tuberculose (não ou sim - se sim, há menos de 5 anos ou há 5 anos ou mais e avaliação da contribuição daquele treinamento para a prática clínica [ruim, regular ou boa]); frequência com que busca informações sobre tuberculose (nunca, às vezes ou sempre); frequência de equipamento de proteção individual (EPI) disponível na unidade de saúde (nunca, às vezes ou sempre); EPI de fácil acesso na unidade de saúde (não ou sim); frequência de uso do EPI durante atendimento de paciente sintomático respiratório (nunca, às vezes ou sempre); presença de cicatriz vacinal de BCG (não ou sim); convivência com alguém com tuberculose alguma vez na vida (não ou sim); presença de alguma comorbidade ou uso de alguma droga imunossupressora (não ou sim); tabagismo (não, sim ou ex-fumante); e etilista (não ou sim).
A variável de desfecho foi obtida pelo resultado do TT, em mm, conforme preconizado pelo Ministério da Saúde.1 Como método de avaliação, foram estabelecidos pontos de corte positivos de 10 mm e de 5 mm de enduração na leitura de 72 h a partir do resultado do teste, sendo esse representado e distribuído em grupos de comparação da seguinte maneira: resultados < 10 mm e < 5 mm (TT negativo) e resultados ≥ 10 mm e ≥ 5 mm (TT positivo).1
Todas as informações foram codificadas e armazenadas anonimamente em um banco de dados criado em Excel for Windows® para esse fim. Os dados foram coletados em formulários de relato de caso.
Foi empregado o teste do qui-quadrado para diferenças de proporções e o teste t de Student ou o teste de Mann-Whitney, para diferenças de médias, quando apropriado. Para estimar associações com a presença de infecção pelo M. tuberculosis, foi utilizada OR, estimada com IC95%. Na análise bivariada, p ≤ 0,20 foi definido como indicativo de alguma diferença estatisticamente significante, enquanto, na análise multivariada, considerou-se um valor de p ≤ 0,05. Para o cálculo do tamanho amostral e para as análises estatísticas, foi utilizado o programa estatístico Stata, versão 13 (StataCorp LP, College Station, TX, EUA).
O presente estudo foi previamente autorizado pela Secretária Municipal de Saúde de Vitória e obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Espírito Santo (registro CEP 007/2010).
No período de vigência da coleta de dados, o número de profissionais de saúde cadastrados na rede de atenção básica do município de Vitória (ES) era de 911. Desse total, como ilustrado no fluxograma (Figura 1), 568 atuavam nos serviços de saúde selecionados para o estudo e, portanto, eram potencialmente elegíveis. Entretanto, somente 231 aceitaram participar voluntariamente do estudo. A distribuição amostral dos profissionais de saúde elegíveis e participantes para o estudo por UBS está demonstrada na Tabela 1. Dos 231 participantes voluntários, 5 (2,1%) foram perdidos por não compareceram para a leitura do TT após 72 h de aplicação, 5 (2,1%) já haviam recebido tratamento para ILTB, e 3 (1,3%) haviam sido tratados para tuberculose ativa, sendo todos excluídos do estudo. Dessa forma, a amostra foi composta por 218 participantes submetidos à triagem. Não houve diagnóstico de tuberculose ativa entre os profissionais de saúde incluídos no estudo, e nenhum deles recebeu indicação para profilaxia contra ILTB.
Tabela 1 Distribuição amostral dos profissionais de saúde da atenção básica no município de Vitória (ES), 2012.
Categoria sanitária | Serviços de saúde | Total de profissionais de saúde elegíveis | Total de profissionais de saúde entrevistados |
---|---|---|---|
UBS com PCT | Unidade de Saúde Maruípe | 83 | 15 |
Unidade de Saúde Geny Grijó (Centro) | 40 | 15 | |
UBS tradicional | Unidade de Saúde Ilha de Santa Maria | 15 | 11 |
Unidade de Saúde Dr. Carlito Von Schielgen (Jabour) | 26 | 14 | |
Unidade de Saúde Raul Oliveira Nunes (Jardim Camburi) | 51 | 7 | |
UBS com PACS | Unidade de Saúde Dr. Jolindo Martins (Bairro República) | 52 | 16 |
Unidade de Saúde Avelina Maria Lacerda Gonçalves (Bairro do Quadro) | 10 | 9 | |
UBS com ESF | Unidade de Saúde Maria Rangel dos Passos (Consolação) | 52 | 27 |
Unidade de Saúde Santo André | 24 | 19 | |
Unidade de Saúde Dr. Manoel Rocha Coutinho (Ilha do Príncipe) | 20 | 6 | |
Unidade de Saúde Dr. Bolivar de Abreu (Forte São João) | 37 | 16 | |
Unidade de Saúde Dr. José Moysés (Santa Luíza) | 49 | 30 | |
Unidade de Saúde Thomaz Tommasi (Medicina Comunitária/Bonfim) | 31 | 13 | |
Unidade de Saúde Grande Vitória | 43 | 19 | |
Unidade de Saúde Dr. Affonso Schawb (Fonte Grande) | 15 | 3 | |
Unidade de Saúde Dr. Luiz Castellar da Silva (Jesus de Nazareth) | 20 | 11 | |
Total | 16 | 568 | 231 |
UBS: Unidade Básica de Saúde; PCT: Programa de Controle da Tuberculose; PACS: Programa de Agentes Comunitários de Saúde; e ESF: Estratégia Saúde da Família.
Figura 1 Fluxograma de participação do estudo e dos resultados do teste tuberculínico em profissionais de saúde da atenção básica no município de Vitória (ES), 2012. TCLE: termo de consentimento livre e esclarecido; TT: teste tuberculínico; ILTB: infecção latente pelo Mycobacterium tuberculosis; TB: tuberculose; ACS: agente comunitário de saúde; AUX/TEC ENF: auxiliar ou técnico em enfermagem; ENF: enfermeiro; e MED: médico; Foi estabelecido como ponto de corte para o resultado do TT: TT+ (≥ 10 mm e ≥ 5 mm de enduração) e TT− (< 10 mm e < 5 mm de enduração).
A prevalência de ILTB entre os 218 participantes incluídos no estudo, de acordo com os resultados do TT para os pontos de corte ≥ 10 mm e de ≥ 5 mm, respectivamente, foi de 39,4% (IC95%: 32,9-45,9) e de 54,1% (IC95%: 47,4-60,7).
Em relação às características gerais dos profissionais de saúde incluídos no estudo, 200 (91,7%) eram do sexo feminino e 197 (90,3%) apresentavam cicatriz vacinal de BCG. A média de idade dos participantes foi de 43 anos (IC95%: 41,7-44,4), com distribuição normal.
A Figura 1 apresenta o fluxograma do estudo de acordo com a distribuição dos profissionais de saúde segundo os pontos de corte do TT (≥ 10 mm e ≥ 5 mm). Em relação às categorias profissionais, observou-se que 99 (45,3%) e 103 (47,5%) daqueles que apresentaram resultado positivo para o TT nos pontos de corte de 10 mm e 5 mm, respectivamente, eram ACS. A média de tempo de exercício dos profissionais em sua função específica na atenção básica era de aproximadamente 8 anos (IC95%: 7,38-8,95).
A análise bivariada (Tabelas 2 e 3) para o ponto de corte ≥ 5 mm do TT revelou que as variáveis tempo de trabalho na atenção básica ≥ 5 anos (p = 0,04), ter realizado TT anteriormente (p = < 0,01), ser fumante (p = 0,01) e ser etilista (p = 0,13) foram associadas com o resultado positivo ao TT. Para o ponto de corte ≥ 10 mm, faixa etária (p = 0,09), avaliação do treinamento ou capacitação sobre tuberculose (p = 0,16), ter feito TT anteriormente (53,1%; p = < 0,01) e fumante (p = 0,03) foram as variáveis que apresentaram associação estatisticamente significante com o resultado positivo ao TT. Apesar da alta cobertura de vacinação com BCG entre esses profissionais (Tabela 3), essa variável não se mostrou significativa na associação com o resultado positivo ao TT, independentemente do ponto de corte considerado.
Tabela 2 Distribuição das características sociodemográficas e epidemiológicas entre os profissionais de saúde da atenção básica participantes do estudo (N = 218).
Variáveis | TT ≥ 10 mm | p | TT ≥ 5 mm | p | ||
---|---|---|---|---|---|---|
TT+ | TT− | TT+ | TT− | |||
n (%) | n (%) | n (%) | n (%) | |||
Sexo | ||||||
Masculino | 8 (44,4) | 10 (55,6) | 0,65 | 11 (61,1) | 7 (38,9) | 0,53 |
Feminino | 78 (39,0) | 122 (61,0) | 107 (53,5) | 93 (46,5) | ||
Faixa etária, anos | ||||||
19-30 | 5 (20,0) | 20 (80,0) | 0,09 | 10 (40,0) | 15 (60,0) | 0,22 |
31-40 | 26 (36,6) | 45 (63,4) | 35 (49,3) | 36 (50,7) | ||
41-50 | 33 (47,8) | 36 (52,2) | 42 (60,9) | 27 (39,1) | ||
51-70 | 22 (41,5) | 31 (58,5) | 31 (58,5) | 22 (41,5) | ||
Ocupação | ||||||
ACS | 39 (36,1) | 69(63,9) | 0,24 | 56 (51,8) | 52 (48,1) | 0,50 |
AUX/TEC ENF | 34 (46,0) | 40 (54,0) | 44 (59,5) | 30 (40,5) | ||
ENF | 9 (47,4) | 10 (52,6) | 11 (57,9) | 8 (42,1) | ||
MED | 4 (23,5) | 13 (76,5) | 7 (41,2) | 10 (58,8) | ||
Trabalha em US com PCT implantado | ||||||
Não | 55 (38,0) | 90 (62,0) | 0,33 | 76 (52,4) | 69 (47,6) | |
Sim | 25 (47,2) | 28 (52,8) | 32 (60,4) | 21 (39,6) | 0,56 | |
Não sabe | 6 (30,0) | 14 (70,0) | 10 (50,0) | 10 (50,0) | ||
Tempo que trabalha na função na atenção básica, anos | ||||||
< 5 | 22 (33,3) | 44 (66,7) | 0,22 | 29 (43,9) | 37 (56,0) | 0,04 |
≥ 5 | 64 (42,1) | 88 (57,9) | 89 (58,5) | 63 (41,4) | ||
Trabalha somente na atenção básica | ||||||
Não | 48 (37,5) | 80 (62,5) | 0,48 | 69 (53,9) | 59 (46,0) | 0,93 |
Sim | 38 (42,2) | 52 (57,8) | 49 (54,4) | 41 (45,6) | ||
Já trabalhou em ambiente com alto risco de TB | ||||||
Não | 56(36,8) | 96(63,2) | 0,23 | 82 (53,9) | 70 (46,0) | 0,93 |
Sim | 30(45,4) | 36 (54,6) | 36 (54,5) | 30 (45,4) | ||
Recebeu algum treinamento/capacitação sobre TB | ||||||
Não | 32 (36,8) | 55 (63,2) | 0,64 | 46 (52,9) | 41 (47,1) | 0,54 |
Sim | ||||||
Há menos de 5 anos | 41 (43,2) | 54 (56,8) | 50 (52,6) | 45 (47,4) | ||
Há 5 anos ou mais | 13 (37,1) | 22 (62,9) | 22 (62,9) | 13 (37,1) | ||
Como avalia a contribuição de treinamento para a prática clínica | ||||||
Boa | 20 (47,6) | 22 (52,4) | 0,16 | 22 (52,4) | 20 (47,6) | 0,51 |
Regular | 24 (34,3) | 46 (65,7) | 38 (54,3) | 32 (45,7) | ||
Ruim | 9 (56,2) | 7 (43,7) | 11 (68,7) | 5 (31,2) | ||
Frequência em que busca informações sobre TB | ||||||
Nunca | 11 (52,4) | 10 (47,6) | 0,27 | 15 (71,4) | 6 (28,6) | 0,22 |
Às vezes | 54 (35,8) | 97 (64,2) | 79 (52,3) | 72 (47,7) | ||
Sempre | 19 (43,2) | 25 (56,8) | 22 (50,0) | 22 (50,0) |
TT: teste tuberculínico; ACS: agente comunitário de saúde; AUX/TEC ENF: auxiliar e técnico em enfermagem; ENF: enfermeiro; MED: médico; PCT: Programa de Controle da Tuberculose; TB: tuberculose; US: unidade de saúde. Foi estabelecido como ponto de corte para o resultado do TT: TT+ (≥ 10 mm e ≥ 5 mm de enduração) e TT− (< 10 mm e < 5 mm de enduração).
Tabela 3 Distribuição das características ocupacionais entre os profissionais de saúde da atenção básica do estudo (N = 218).
Variáveis | TT ≥ 10 mm | p* | TT ≥ 5 mm | p* | ||
---|---|---|---|---|---|---|
TT+ | TT− | TT+ | TT− | |||
n (%) | n (%) | n (%) | n (%) | |||
Frequência de EPI disponível na UBS | ||||||
Nunca | 38 (38,4) | 61 (61,6) | 0,80 | 52 (52,5) | 47 (47,5) | 0,77 |
Às vezes | 17 (37) | 29 (63) | 24 (52,2) | 22 (47,8) | ||
Sempre | 31 (42,5) | 42 (57,5) | 42 (57,5) | 31 (42,5) | ||
EPI de fácil acesso na UBS | ||||||
Não | 10 (45,5) | 12 (54,5) | 0,58 | 14 (63,6) | 8 (36,4) | 0,39 |
Sim | 38 (39,2) | 59 (60,8) | 52 (53,6) | 45 (46,4) | ||
Frequência de uso do EPI durante atendimento de paciente sintomático respiratório | ||||||
Nunca | 60 (37,3) | 101 (62,7) | 0,46 | 87 (54,0) | 74 (46,0) | 0,83 |
Às vezes | 16 (44,4) | 20 (55,6) | 19 (52,8) | 17 (47,2) | ||
Sempre | 9 (50,0) | 9 (50,0) | 11 (61,1) | 7 (38,9) | ||
Apresenta cicatriz vacinal de BCG | ||||||
Não | 10 (47,6) | 11 (52,4) | 0,42 | 11 (52,4) | 10 (47,6) | 0,86 |
Sim | 76 (38,6) | 121 (61,4) | 107 (54,3) | 90 (45,7) | ||
Já conviveu com alguém com TB | ||||||
Não | 69 (37,5) | 115 (62,5) | 0,23 | 97 (52,7) | 87 (47,3) | 0,40 |
Sim | 16 (48,5) | 17 (51,5) | 20 (60,6) | 13 (39,4) | ||
Já fez TT | ||||||
Não | 35 (29,2) | 85 (70,8) | < 0,01 | 53 (44,2) | 67 (55,8) | < 0,01 |
Sim | 51 (53,1) | 45 (46,9) | 63 (65,6) | 33 (34,4) | ||
Possui alguma comorbidade ou faz uso de alguma droga imunossupressora | ||||||
Não | 64 (40,5) | 94 (59,5) | 0,60 | 89 (56,3) | 69 (43,7) | 0,29 |
Sim | 22 (36,7) | 38 (63,3) | 29 (48,3) | 31 (51,7) | ||
Fumante | ||||||
Não | 59 (36,9) | 101 (63,1) | 78 (48,7) | 82 (51,2) | ||
Sim | 9 (75,0) | 3 (25,0) | 0,03 | 10 (83,3) | 2 (16,7) | 0,01 |
Ex-fumante | 18 (39,1) | 28 (60,9) | 30 (65,2) | 16 (34,8) | ||
Etilista | ||||||
Não | 47 (36,7) | 81 (63,3) | 0,33 | 64 (50,0) | 64 (50,0) | 0,13 |
Sim | 38 (43,2) | 50 (56,8) | 53 (60,2) | 35 (39,8) |
TT teste tuberculínico; EPI: equipamento de proteção individual; UBS: unidade básica de saúde; e TB: tuberculose. Foi estabelecido como ponto de corte para o resultado do TT: TT+ (≥ 10 mm e ≥ 5 mm de enduração) e TT− (< 10 mm e < 5 mm de enduração). *Teste do qui-quadrado de Pearson.
A análise de regressão logística (Tabela 4) mostrou que apenas “ter sido submetido ao TT anteriormente” manteve uma associação estatística significativa com o resultado positivo ao TT para os pontos de corte ≥ 10 mm (OR = 2,5; IC95%: 1,17-5,30) e ≥ 5 mm (OR = 2,18; IC95%: 1,23-3,87).
Tabela 4 Regressão logística para a identificação de fatores associados ao resultado positivo do teste tuberculínico (≥ 10 mm e ≥ 5 mm) entre os profissionais de saúde da atenção básica do estudo (N = 218).
Variáveis | TT ≥ 10 mm | TT ≥ 5 mm | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
OR ajustado | p | IC95% | OR ajustado | p | IC95% | |
Faixa etária, anos | ||||||
19-30 | Referência | |||||
31-40 | 1,78 | 0,44 | 0,40-7,84 | |||
41-50 | 2,42 | 0,24 | 0,54-10,85 | |||
51-70 | 1,95 | 0,40 | 0,40-9,53 | |||
Tempo que trabalha na função na atenção básica, anos | ||||||
< 5 | Referência | |||||
≥ 5 | 1,48 | 0,20 | 0,80-2,73 | |||
Como avalia a contribuição de treinamento para a prática clínica | ||||||
Boa | Referência | |||||
Regular | 0,65 | 0,32 | 0,28-1,50 | |||
Ruim | 1,47 | 0,52 | 0,44-4,97 | |||
Fumante | ||||||
Não | Referência | Referência | ||||
Sim | 2,78 | 0,28 | 0,43-17,83 | 4,34 | 0,06 | 0,89-21,12 |
Ex-fumante | 1,21 | 0,69 | 0,45-3,24 | 1,87 | 0,08 | 0,92-3,80 |
Etilista | ||||||
Não | Referência | |||||
Sim | 1,23 | 0,48 | 0,68-2,19 | |||
Já fez TT | ||||||
Não | Referência | Referência | ||||
Sim | 2,50 | 0,01 | 1,17-5,30 | 2,18 | < 0,01 | 1,23-3,87 |
TT: teste tuberculínico. *Teste do qui-quadrado de Pearson.
A hipótese de alta exposição ao M. tuberculosis é corroborada pelo aumento da prevalência de ILTB, de 39,4% para 54,1%, entre os profissionais da atenção básica de Vitória (ES), tendo em vista a nova proposta do Ministério da Saúde ao considerar o ponto de corte para leitura do TT ≥ 5 mm.1 Outras pesquisas nacionais também apontam a elevada prevalência de ILTB entre os profissionais de saúde desse âmbito de atenção.13,15-18
O presente estudo apresentou algumas limitações. Primeiro, o estudo transversal é limitado em sua capacidade de identificar associações causais, de modo que um estudo longitudinal seria mais adequado para identificar as taxas de conversão ao TT e fatores associados.19 A segunda limitação foi quanto a problemas logísticos, que impossibilitaram a repetição do TT entre os profissionais de saúde não reatores ao teste em um primeiro momento e, consequentemente, a impossibilitaram a avaliação do efeito “booster”. Indica-se a avaliação desse efeito, pois indivíduos infectados pelo M. tuberculosis podem ter sua capacidade de reação ao TT diminuída com o tempo, devido à perda da resposta dos linfócitos T de memória, o que levaria algumas pessoas à resposta negativa ao teste mesmo quando infectadas por esse agente.20,21 Diante disso, essa avaliação busca uma reativação da resposta imunológica à tuberculina pelas células de memória, por meio de reforço do estímulo com nova aplicação de tuberculina após uma a três semanas do primeiro teste.20
Os pontos fortes na presente pesquisa foram a realização de um estudo piloto antes do período da coleta de dados; a padronização na aplicação e leitura do TT e na identificação da cicatriz vacinal de BCG, feitas pela mesma pesquisadora; e a disponibilidade de informações sobre o status sobre HIV obtidas mediante o resultado do teste rápido aplicado a todos os participantes.
No que diz respeito à prevalência de ILTB de acordo com a categoria profissional, o presente estudo revelou que a maior proporção de positividade ao teste, independentemente do ponto de corte do TT, estava entre os ACS. Esses profissionais fazem parte tanto da mesma comunidade de seus pacientes, quanto do serviço de saúde que assiste o portador de tuberculose. Isso pode levar os agentes a negligenciar ou mesmo ignorar, por diversas razões, as medidas de proteção que deveriam adotar na relação institucional com o indivíduo portador da doença.14,18 Tais pontos nos levam a refletir se o conhecimento e a convivência com a clientela, associados aos limites da informação e mesmo de conhecimento, podem se constituir em fatores de desproteção, negligência, constrangimento e limitação, por parte dos ACS, para incorporarem, em sua rotina profissional, as medidas adequadas de proteção contra a tuberculose.22) Além disso, vários fatores de risco têm sido associados com a alta prevalência de TT positivo entre os profissionais de saúde.6,7,14,15 Aqui, identificou-se que aqueles profissionais que já haviam sido submetidos ao TT anteriormente apresentaram maiores chances de resultado positivo ao novo exame, independente do ponto de corte considerado. Acreditamos que esse achado possa indicar maior tempo de atuação desse profissional na área da saúde e, consequentemente, submissão ao TT por mais de uma vez. Contudo, para caracterizar a viragem tuberculínica, não basta o resultado de o teste subsequente ser positivo, uma vez que é necessário o incremento de 10 mm para o segundo teste em relação ao primeiro. Atendendo a essa premissa, deve-se estabelecer a profilaxia contra ILTB entre os profissionais de saúde nessa condição.1 Em nosso estudo, a viragem tuberculínica não pôde ser avaliada, pois os profissionais não apresentaram registro do resultado quantitativo de TT anterior.
Um resultado falso-positivo para o TT pode ocorrer quando o profissional de saúde foi sensibilizado previamente pela vacinação com BCG ou por exposição a micobactérias ambientais, pois alguns dos antígenos presentes nessa vacina e nesses microrganismos compõem a mistura antigênica que está presente no PPD RT-23,3 o que poderia levar a uma reatividade cruzada com o teste.23 Entretanto, ter cicatriz vacinal do BCG, presente na quase totalidade dos profissionais de saúde participantes do estudo, não apresentou associação estatística significativa com o resultado positivo do TT, independente do ponto de corte considerado.
A obtenção de informações sobre a biossegurança foi um diferencial no presente estudo e de fundamental importância para o impacto das ações de vigilância em saúde, particularmente no que se refere à saúde do trabalhador. Embora a máscara N95 seja reconhecidamente um tipo de proteção individual, seu uso não é praticado pela grande maioria dos profissionais de saúde, o que pode ser justificado pela indisponibilidade do EPI no serviço, conforme relatado pela maioria dos profissionais participantes do estudo. Contudo, além da implantação das medidas de proteção individual, que incluem a disponibilização do EPI, as unidades de atenção primária à saúde também devem estabelecer medidas administrativas e de controle ambiental, tais como a simples mudança na organização dos serviços; o treinamento dos profissionais; a reorganização do atendimento na avaliação do percurso do paciente bacilífero; a manutenção do ambiente de longa permanência de possíveis pacientes sintomáticos respiratórios o mais ventilado possível; a disponibilidade de exaustores, filtros ou ventiladores; e a designação de um local adequado para coleta de escarro e, quando disponível, a identificação do ambiente apropriado para esse fim. Essas medidas, em conjunto, são necessárias para assegurar que as pessoas com sintomas sugestivos de tuberculose possam ser prontamente identificadas e, caso estejam infectadas, possam ser atendidas em local e horário adequados e, subsequentemente, tratadas.1 Além disso, destacamos que essas medidas, administrativas e ambientais, são consideradas as mais importantes para evitar a transmissão do M. tuberculosis.3
Diante do exposto, o presente estudo revelou que os profissionais de saúde da atenção básica dessa amostra apresentaram uma alta prevalência de ILTB e que a indicação da terapia preventiva contra essa infecção pode suscitar reflexões e questionamentos, ao se reduzir o ponto de corte do TT para 5 mm, uma vez que, possivelmente, será identificado um número maior de indivíduos infectados, que seriam encaminhados para tratamento, gerando novos atendimentos e custos para o sistema de saúde. Além disso, deve-se considerar que a ampla cobertura vacinal com BCG e a exposição a micobactérias ambientais poderiam estar associadas com o resultado positivo ao TT quando o menor ponto de corte é considerado.
Logo, recomenda-se a instituição de um programa de triagem periódica para a identificação e o acompanhamento dessa infecção entre esses profissionais, além do estabelecimento de medidas administrativas, ambientais e de proteção individual efetivas para a prevenção da infecção nos profissionais sob risco de exposição ao M. tuberculosis. Tais medidas são necessárias, pois contribuem para o alcance das metas estabelecidas pela Organização Mundial de Saúde,24 principalmente em relação ao primeiro pilar dessa estratégia, na qual a integração dos cuidados e a prevenção centrada no paciente incluem a triagem sistemática dos grupos sob risco elevado para M. tuberculosis, assim como o tratamento para ILTB.
Os resultados obtidos no presente estudo, juntamente com um estudo multicêntrico, contribuirão para a elaboração do Plano Nacional de Controle de Infecção pelo M. tuberculosis, previsto pela Organização Mundial de Saúde e recomendado pelo Ministério da Saúde.