versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
Braz. J. Nephrol. vol.42 no.1 São Paulo jan./mar. 2020 Epub 30-Maio-2019
http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2018-0260
Infecções do trato urinário (ITU) são causadas por diversos microrganismos, e o principal patógeno envolvido é a bactéria Escherichia coli, seguida por Klebsiella pneumoniae, Proteus mirabilis, Enterococcus faecalis e Staphylococcus saprophyticus.1,2 As mulheres são mais acometidas, fenômeno explicado por vários fatores, sejam anatômicos ou comportamentais; em homens, a hiperplasia prostática e a instrumentação das vias urinárias são fatores que favorecem a ocorrência de ITUs.
A tuberculose urogenital (TBUG) deve ser considerada como um diagnóstico diferencial de ITU; o quadro clínico é inespecífico, os sintomas mais comuns são disúria, polaciúria e lombalgia, podendo haver piúria e hematúria microscópica.3 O diagnóstico de TBUG é baseado no crescimento do agente em cultura de urina semeada em meio específico e, raramente, em achados anatomopatológicos.
Micobactérias não tuberculosas (MNT) ou Mycobacteria other than tuberculosis (MOTT), são aquelas não pertencentes ao complexo Mycobaterium tuberculosis (M. tuberculosis e M. bovis), e ao M. leprae.4 Mais de 125 espécies de MNT causadoras de doenças em seres humanos já foram identificadas.4 São patógenos habitualmente isolados a partir do solo e de fontes de água natural ou canalizada.4 Não há evidência de transmissão animal-humana ou inter-humanos, e a doença resulta de exposição ambiental, embora a fonte de infecção não seja usualmente identificada.4 Em países industrializados, a taxa de incidência varia entre 1 e 2 casos por 100.000 habitantes; porém, como micobacterioses não tuberculosas não são doenças de declaração compulsória, sua real incidência é desconhecida.4 Infecção pulmonar crônica é a manifestação clínica mais frequente, correspondendo a 90% dos casos, seguida de doença disseminada, infecção de linfonodos e infecção de pele ou tecidos moles.4 Relata-se o caso de homem adulto com infecção urinária por M. abscessus, um microrganismo que tem sido raramente descrito como agente etiológico de ITU.
Homem de 50 anos, contador, procedente de uma localidade do interior de Alagoas. Procurou atendimento médico dois anos antes da avaliação nefrológica, com queixa de dor em fossa ilíaca direita e suprapúbica, náuseas, vômitos e disúria intensa. Negava hematúria, febre ou perda de peso. Após consulta na Urologia, fez uso de ciprofloxacino e tansulosina durante 7 dias. Como não houve melhora dos sintomas, foi modificado o esquema de tratamento para ciprofloxacino por mais 14 dias. Na investigação foram solicitados: ultrassonografia de vias urinárias, dosagem do antígeno prostático específico e estudo urodinâmico, cujos resultados permaneceram dentro dos padrões de normalidade. O sumário de urina mostrou pH 7 e numerosos piócitos; e a velocidade de hemossedimentação foi 75 mm/1ª hora. As imagens de tomografia computadorizada e de ultrassonografia do abdome revelaram discreta ectasia da pelve renal e calcificações na próstata (Figuras 1 A e B).
O exame físico inicial da avaliação nefrológica não detectou alterações significativas além de desconforto à palpação profunda na região hipogástrica. Foram solicitados marcadores inflamatórios, urocultura e EAS para controle. Como os marcadores inflamatórios estavam alterados, no EAS persistia leucocitúria, e a urocultura repetidamente negativa, aventou-se a possibilidade de infecção urinária por M. tuberculosis tem sido solicitada cultura específica para esse agente infeccioso. Dois meses depois, o paciente retornou para consulta referindo a permanência da disúria, desconforto vesical (pressão), urgência miccional e nictúria. O resultado de urocultura foi positivo para M. abscessus. Em meio solidificado de Löwenstein-Jensen, micobactérias de crescimento rápido formaram colônias acromógenas com morfologia rugosa a lisa. Os testes bioquímicos revelaram redução do nitrato (-), β-glicosidase (-), tolerância ao cloreto de sódio a 5% (+), utilização do citrato de sódio (-), fermentação de frutose (-), fermentação de manitol (-); ácido pícrico (+) e hidrólise do Tween 80 (+).
Iniciado tratamento com claritromicina (500 mg, duas vezes ao dia) e amicacina (15 mg/dia) para uso durante 18 meses. No quinto mês de tratamento, o paciente permanecia com sintomas urinários; porém, no décimo mês já apresentava melhora importante. No décimo oitavo mês de acompanhamento ambulatorial, não havia queixa clínica e duas uroculturas para micobactérias foram negativas.
A tuberculose continua representando um sério problema mundial de saúde,5 e as localizações extrapulmonares podem ocorrer em aproximadamente 15% dos casos.6 A TBUG é o segundo local desse tipo de acometimento e se manifesta com quadro clínico insidioso sem sintomas específicos, geralmente levando a diagnósticos tardios.7 A confirmação diagnóstica é estabelecida pelo isolamento do M. tuberculosis em cultura de urina ou em exame anatomopatológico de amostras de tecidos.
O paciente relatado apresentava ITU com muitos sintomas, e não respondia ao tratamento com os antibióticos de uso rotineiro. Considerando a persistência dos sintomas na presença de urocultura estéril, de calcificações teciduais e discreta alteração anatômica da pelve direita, aventou-se a hipótese de TBUG e foi solicitada urocultura em meio específico. O resultado foi positivo para M. abscessus, uma das micobactérias não tuberculosas que muito raramente têm sido descritas como etiologia de ITUs.
As MNTs são patógenos oportunistas ambientais vivendo no solo e em sistemas de água potável.8 Há relatos de contaminação hospitalar, inclusive sob a forma de surtos epidêmicos.9 Não há registro de transmissão de animais para humanos, nem entre humanos.4 Água de chuveiro, material de solo ou água de piscina podem ser fontes de infecção.10 Acredita-se que as MNTs são adquiridas do ambiente pela ingestão, inalação ou contatos cutâneos.10 A infecção oportunista está relacionada com pacientes imunodeprimidos, como aqueles infectados pelo HIV, indivíduos com doença pulmonar obstrutiva crônica, fibrose cística, e sequelas de tuberculose pulmonar.9,11
O diagnóstico é realizado pela identificação das micobactérias, levando em consideração características fenotípicas, testes bioquímicos e produção de pigmentos carotenoides, ou ainda através da reação em cadeia da polimerase necessária em casos de persistência de dúvidas diagnósticas.12,13
O tratamento é prolongado, tem efeitos adversos e um grande número de pacientes são oligossintomáticos; portanto, a decisão terapêutica deve levar em consideração o risco de progressão da doença, o tipo de MNT envolvido e o estado geral do paciente.4 A terapêutica é considerada bem-sucedida quando os sintomas são erradicados ou controlados e as culturas de controle são negativas.4 A melhora dos sintomas geralmente ocorre a partir do quarto ou sexto mês de tratamento e as culturas negativam-se entre o sexto e décimo segundo mês.4 Quando isso não ocorre, considera-se falha terapêutica.4 A terapia medicamentosa deve ser mantida por 12 meses após a negativação das culturas, e assim, o tempo médio de tratamento varia de 12 a 18 meses.4
Quanto à resposta terapêutica, as MNTs são categorizadas em dois grupos: as de fácil tratamento (o principal representante é o M. kansasii) e as de difícil tratamento.4 A doença pulmonar causada pelo M. kansasii geralmente é tratada com rifampicina, etambutol e isoniazida; associa-se aminoglicosídios em casos de doença pulmonar grave ou extensa.4 Os macrolídeos (claritromicina e azitromicina) são utilizados nas MNTs de difícil tratamento.4 As bactérias de crescimento rápido e de difícil tratamento (incluindo M. fortuitum e M. abscessus) não respondem à terapêutica farmacológica rotineiramente utilizada, e seu tratamento deve ser baseado em testes de sensibilidade aos fármacos.4 Deve-se testar amicacina, claritromicina, quinolonas, doxiciclina, imipenem, linezunide, sulfametoxazol e tigeciclina.4 O M. abscessus é uma espécie de crescimento rápido e multirresistente que causa infecções nosocomiais.14,15 As infecções pulmonares, da pele e de tecidos moles são as principais formas de apresentação clínica da enfermidade.16 A contaminação pode ocorrer após a inoculação do patógeno em lesões de pele, durante pequenos traumas ou durante procedimentos cirúrgicos.17 Surtos da doença após a realização de procedimentos invasivos têm sido descritos na literatura, relacionados a procedimentos médicos distintos: pós-artroscopia, laparoscopia e abdominoplastias.14 As principais hipóteses aventadas para esses casos de infecção são a esterilização deficiente e o uso de água contaminada para limpeza dos equipamentos.14
Na terapêutica de infecções causadas por esse agente, é mandatória a remoção de corpos estranhos como próteses, tecido lesionado ou necrosado.14 O patógeno é sensível à azitromicina, claritromicina e amicacina.14 Estudos com testes de sensibilidade in vitro de isolados de micobactérias de crescimento rápido indicam que a amicacina é a droga de escolha, seguida pelas fluoquinolonas.18 Para infecções de pele, tecido mole e infecções ósseas causadas pelo M. abscessus, o medicamento deve ser claritromicina (1.000 mg/dia) ou azitromicina (250 mg/dia) combinado com um antibiótico parenteral (amicacina, imipenem ou cefoxitina).19 Em adultos com função renal normal, a amicacina é usada em doses de 10 a 15 mg/dia.19 Procedimento invasivo é indicado em lesões extensas e abscessos, ou quando não se obtém uma boa resposta à terapêutica.19
No presente estudo de caso, não foi possível esclarecer o mecanismo de contaminação, mesmo após extensa avaliação. O diagnóstico foi estabelecido depois de aventar-se a hipótese de infecção por um desses germes com base em leucocitúria estéril que, uma vez detectada, deve ser incluída na investigação dessa rara patologia.