versão impressa ISSN 1808-8694
Braz. j. otorhinolaryngol. vol.80 no.1 São Paulo jan./fev. 2014
http://dx.doi.org/10.5935/1808-8694.20140004
A apneia obstrutiva do sono (AOS) é causada por episódios recorrentes de obstrução total ou parcial das vias aéreas superiores (VAS) com duração superior a 10 segundos durante o sono, que provocam queda da saturação de oxihemoglobina e aumento da descarga adrenérgica. A avaliação completa da via aérea superior é muito importante para detectar os pontos de obstrução. Em 1999, a Academia Americana de Medicina do Sono1 estabeleceu os critérios definidores de diagnósticos da SAOS, que incluem a presença de sonolência diurna excessiva não explicada por outros fatores; a presença de no mínimo dois dos seguintes: engasgos noturnos, despertares recorrentes, sono não reparador, fadiga diurna e queda de concentração; e a presença de Índice de Apneia e Hipopneia (IAH) maior que cinco eventos por hora.
A fisiopatogenia da AOS não foi totalmente elucidada. Durante os eventos respiratórios há queda da saturação de oxigênio, que leva à ativação dos baroreflexos, desencadeando uma ativação generalizada do sistema nervoso autônomo simpático. Há uma descarga adrenérgica levando a picos de taquicardia e de hipertensão. Esse processo se repete inúmeras vezes durante o sono em pacientes apneicos. e leva. em longo prazo, a alta sensibilidade do quimioreflexo periférico, com resposta exagerada mesmo em normoxia, disfunção do baroreflexo, aumento da descarga adrenérgica, disfunção cardiovascular em longo prazo, inflamação sistêmica e desregulação metabólica com resistência insulínica e diabetes melittus tipo II.2 Todas essas alterações levam a uma inflamação crônica de toda a via aérea superior, causando o aparecimento de sintomatologia variada nesses pacientes.
As pesquisas mostram a diversidade da prevalência da AOS por acometer crianças, adultos jovens e idosos. É associada a diferentes fatores de risco, como alterações anatômicas, doenças e hábitos. Estudo epidemiológico realizado em São Paulo (Brasil) demonstra que a prevalência da AOS é de 32,8% da população adulta da cidade. Os fatores de risco associados ao desenvolvimento da síndrome foram: sexo masculino, Índice de Massa Corpórea (IMC) > 25 kg/m2, baixo nível socioeconômico, idade avançada e mulheres na menopausa.3 O ronco tem prevalência de 19,1% entre homens e de 7,9% entre as mulheres, na população de 30 a 60 anos.4 Cerca de 20% da população adulta queixa-se de ronco, aumentando para 60% se consideramos o sexo masculino acima de 40 anos de idade.5
Refluxo faringolaríngeo (RFL) é uma variante da doença do refluxo gastroesofágico (DRGE) que afeta a laringe e a faringe. Na maioria dos casos é secundária ao fluxo retrógrado de conteúdo gástrico na laringofaringe, resultando em uma série de sintomas e sinais laríngeos.6 Tornou-se uma das condições mais comuns em Otorrinolaringologia. É diagnosticada em aproximadamente 10% dos pacientes otorrinolaringológicos, e em no mínimo 50% dos pacientes com queixas relacionadas à voz.7 De importância também reconhecida está a obesidade, a cada dia mais prevalente na população mundial.
O RFL tende a ocorrer durante o dia e não tem associação clara com a obesidade, em contraste com a DRGE.
Belafsky et al. validaram dois questionários para sistematizar a avaliação das queixas relacionadas com RFL. O primeiro, chamado Reflux Sympton Index (RSI), avalia a sintomatologia do RFL. A escala é composta por nove itens pontuados de 0 a 5, com pontuação mínima de 0 (assintomático) e máxima de 45 (máxima pontuação possível).8 O índice de RSI ≥ 13 é definido na literatura como sugestivo de RLF.
A outra escala desenvolvida por Belafsky et al. foi a Reflux Finding Score (RFS) de achados laringoscópicos sugestivos de RFL. A pontuação o RFL > 7 é considerada positiva para RFL.8
A AOS e RFL são duas situações que provocam inflamação crônica de via aérea superior. Os sintomas como pigarro, globus faríngeo, disfagias e engasgos podem ser encontrados em ambas as doenças. A associação entre AOS e RFL tem sido discutida na literatura nos últimos anos, porém a correlação entre as duas doenças não é consenso. A motilidade gastroesofágica é diminuída durante o sono. A pressão intraesofagiana diminui em pacientes com AOS, porém Kuribayashi et al. demonstraram que o esfíncter esofagiano superior e a junção gastroesofágica aumentam o seu tônus, diminuindo os eventos de RFL.9
A presença de RFL ou DRGE está associada ao aumento do número de despertares, independentemente da presença da AOS. Pacientes com AOS leve e moderada apresentam uma maior influência do RFL no número de despertares que pacientes com AOS grave. Poucos estudos avaliaram a influência da obesidade na relação entre a AOS e RFL. A importância dessa avaliação se mostra útil, pois a incidência da obesidade vem aumentando de forma consiste e apresenta importante influência na história natural da AOS.
Avaliar a influência da obesidade na relação entre RFL e AOS em uma população de pacientes com AOS.
Estudo aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa sob o protocolo 113/08 e devidamente registrado no Clinical Trials Registry sob o ID NCT00883025. Foi delineado um estudo do tipo observacional transversal retrospectivo. A avaliação foi feita por meio da revisão de protocolo de atendimento de pacientes com AOS do serviço de otorrinolaringologia.
O protocolo de avaliação incluiu amnamese, escala de Epworth, escala do ronco, classificação de Friedman, questionários validados para RFL (RSI e RFS) e exame otorrinolaringológico completo com nasofibroscopia e polissonografia.
Na classificação de Friedman são avaliados: tonsilas palatinas, escore de Mallampati modificado e IMC (Índice de Massa Corpórea). Dessa maneira, os pacientes são classificados em quatro estágios (I, II, III e IV).10
Os pacientes foram submetidos a nasofibroscopia com nasofibroscópio Machida modelo ENT PIII de 3,2 mm. O nível de obstrução das vias aéreas superiores foi avaliado pela classificação de Fujita.11 Os pacientes foram encaminhados para polissonografia do tipo I feita no laboratório de sono com assistência de técnico habilitado. A monitorização incluiu dos seguintes canais: movimentos oculares, movimentos de perna, fluxo aéreo nasal, movimento torácico, EEG, ECG, frequência cardíaca, saturação de oxigênio. Os pacientes foram alocados quanto à gravidade da doença, de acordo com os critérios da Força Tarefa da Academia Americana de Sono.1
Para a análise dos dados foi usado modelo de estudo para variáveis contínuas com o teste T. Foi utilizado o teste T de Levene para igualdade das variâncias e o teste T de Student para igualdade das médias.
No modelo estatístico adotado foram analisadas as seguintes hipóteses estatísticas:
• Hipótese nula - A gravidade da AOS por meio do IAH não está relacionada ao RFL avaliado por meio do RSI.
• Hipótese Alternativa - A gravidade da AOS por meio do IAH está relacionada positivamente ao RFL avaliado por meio do RSI.
O nível de significância utilizado na análise foi de 0,05 para o erro do tipo α e 0,2 para o erro do tipo β. Para a análise foi utilizado o programa SSPS for Mac versão 20.0.
1. Pacientes pertencentes à coorte do ambulatório de AOS;
2. Pacientes com protocolo completo;
3. Pacientes com idade entre 18 e 80 anos;
4. Pacientes de ambos os sexos.
1. Pacientes com tumores e/ou polipose em via aérea superior;
2. Pacientes com deformidade crânio-facial do tipo cranissinostose e craniodisostoses;
3. Histórico prévio de cirurgia de via aérea e/ou cirurgia abdominal;
4. Protocolo incompleto e/ou sem análise das variáveis chaves do estudo, como RSI, RFS e polissonografia.
Os pacientes pertencentes à coorte descrita nos materiais e métodos totalizam 343 pacientes. Foram incluídos 105 pacientes que possuíam dados sobre a avaliação de RFL por meio de avaliação das escalas RSI, RFS e de polissonografia.
A amostra foi dividida de acordo com o IMC e utilizando um ponto de corte 30 Kg/m2, em um grupo de obesos com 39 pacientes (37,1%) e um grupo de não obesos totalizando 66 pacientes (62,9%). Quanto à distribuição por gênero, 57 (53,3%) eram do sexo masculino e 50 (46,7%) do sexo feminino.
A tabela 1 mostra a descrição das variáveis contínuas avaliadas neste estudo.
Tabela 1 Descrição das variáveis contínuas
Mínimo | Máximo | Média | Desvio-padrão | |
---|---|---|---|---|
IMC | 20,00 | 44,11 | 29,0202 | 4,58815 |
Idade | 18,00 | 76,00 | 44,5701 | 12,97757 |
RSI | 0 | 42 | 10,96 | 7,645 |
RFS | 0 | 14 | 5,22 | 3,356 |
IAH | 4 | 76 | 21,51 | 15,634 |
IMC, índice de massa corpórea; RSI, Reflux Sympton Index; RFS, Reflux Finding Score; IAH, índice de apneia e hipopneia.
Para efeitos de análise pareada utilizando o teste T e para maximizar o poder estatístico, o IAH foi dividido em dois grupos, com o ponto de corte de 15 eventos por hora. O total foi de 51 (48,5%) pacientes com AOS leve e de 53 (51,5%) com AOS moderada e grave. Dessa forma, as duas categorias citadas foram estão relacionadas às variáveis contínuas RSI e RFS por meio do teste T. A tabela 2 mostra os resultados do pareamento no grupo de pacientes não obesos. Este estudo foi delineado buscando o isolamento da obesidade como fator de confusão a partir de amostras equilibradas quanto à obesidade pelo IMC.
Tabela 2 Teste T para igualdade das médias em pacientes não obesos
Média | Desvio-padrão | p | ||
---|---|---|---|---|
RSIa | AOS leve | 11,96 | 8,470 | 0,333(NS) |
AOS moderada-grave | 11,43 | 8,S91 | ||
RFSb | AOS leve | 6,00 | 3,651 | 0,587(NS) |
AOS moderada-grave | 5,35 | 3,673 |
aReflux Sympton Index.
bReflux Finding Score.
Na análise de pacientes não obesos observamos, conforme a tabela 2, a relação entre a gravidade da apneia e os í ndices validados na análise do RFL (RSI e RFS). Nesse subgrupo não houve significância estatí stica. Já em relação à mesma análise feita na tabela 3, no grupo de pacientes obesos, houve significância estatística entre o RSI e a gravidade da AOS pelo teste da igualdade das médias com p < 0,05. A relação entre o RFS e a gravidade da AOS não foi significante. A ilustração gráfica dessa relação se encontra na figura 1.
A importância da AOS e do RFL na otorrinolaringologia cresceu consideravelmente nos últimos anos. Presentes entre as principais queixas nos consultórios da especialidade, essas doenças afetam a via aérea causando inflamação crônica da mucosa e queda da qualidade de vida. Segundo Wise et al., o DRGE é mais comum em pacientes com AOS, mas a correlação direta não foi significativa.12
Em revisão sistemática recente Karkos et al. concluíram que existe descrição de relação entre RFL e AOS na literatura, mas as pesquisas são de nível de evidência baixo com estudos pouco controlados.13 Diversos fatores podem gerar vieses nesta análise, pois trata-se de doenças multifatoriais que são influenciadas por alterações anatômicas da via aérea superior, peso e comorbidades.
A obesidade tem relação estreita com a AOS, sendo considerado pela literatura um fator preditor independente.10 A relação com o DRGE também é bastante clara, porém a relação com o RFL isolado não é clara segundo Halum et al.14 Xiao et al. estudaram a correlação entre RFL e AOS utilizando pHmetria multicanal e não encontraram correlação significativa, mas listaram o IMC como variável de confusão, que poderia interferir nos resultados de associação e de predição do RFL na AOS.15
Quando avaliamos a correlação em pacientes com IMC < 30 kg/m2, ou seja, não obesos, não observamos um aumento do RSI e do RFS em pacientes com AOS moderada a grave (IAH > 15). As médias foram parecidas, demonstrando que nesse subgrupo de pacientes RFL e AOS são independentes.
Ao avaliarmos o grupo de pacientes obesos observamos uma mudança de comportamento. O RSI dos pacientes obesos é significantemente maior em pacientes com AOS moderada a grave, apresentando quase o dobro da média do RSI. A mesma correlação não foi encontrada na avaliação do RFS.
A obesidade tem importante influência na história natural da AOS e relação direta com a gravidade da doença.16 Em nossa casuística, os pacientes obesos e com AOS apresentam maior incidência de RFL. Esse subgrupo de pacientes apresenta, portanto, vários fatores (AOS, RFL e a própria obesidade) que promovem o aumento da inflamação da via aérea superior, agravando o edema e causando maior flacidez da mucosa e da musculatura, com piora da morbidade de ambas as doenças. Os fatores citados anteriormente agem em conjunto, promovendo alterações inflamatórias que aumentam os sintomas de irritação da via aérea superior, o que justifica a elevação do RSI em pacientes obesos com AOS moderada a grave.
A obesidade eleva a pressão intra-abdominal, e esse mecanismo traz implicações fisiopatológicas importantes no RFL e na AOS. Nesta última, provoca o aumento do esforço respiratório, causando diminuição da amplitude de movimentação torácica. A depuração do estômago é menor e a incidência de episódios de refluxo é maior.
Este estudo não encontrou correlação positiva entre a gravidade da AOS pelo IAH e as alterações laringoscópicas de RFL medidas pelo RFS. A obesidade não influenciou no comportamento dessa variável, e em ambos os grupos o RFS se manteve com médias parecidas e dentro da normalidade em pacientes com AOS leve e AOS moderada a grave.
Os sintomas de RFL e de AOS se confundem com os sintomas de inflamação crônica da via aérea. Nos pacientes obesos com AOS moderada e grave esses sintomas se tornam muito mais intensos. Essa correlação não se estendeu na avaliação laringoscópica e não podemos ignorar a possibilidade de um resultado falso positivo em tal avaliação.
Durante a avaliação de pacientes com AOS deve-se estar atento à coexistência de RFL, que deve ser tratada promovendo o aumento da qualidade de vida, reduzindo a inflamação da via aérea e atenuando os efeitos deletérios na via aérea superior.
O refluxo faringolaríngeo, a síndrome da apneia obstrutiva do sono e a obesidade se correlacionam positivamente. Os pacientes obesos e com AOS moderado a grave apresentam sintomas mais intensos que os pacientes não obesos. Demonstra-se a importância do diagnóstico e tratamento do RFL em pacientes com AOS e obesos.